sábado, março 11, 2006

Desenhar com luz


Muitos portugueses já conhecem (sim, o 400 Asas já teve até direito a referência no Abrupto), mas os brasileiros também têm direito a saber da novidade: Adriano Miranda, fotojornalista do Público, já tem um blogue.

segunda-feira, março 06, 2006

Declaração de amor para uma jovem sábia, uma filha do coração

As teias da vida e do acaso (?) fizeram com que nossos caminhos se cruzassem, apesar de vivermos em países distantes, com o Atlântico no meio. Bendita hora. Desde o início percebi que você era uma pessoa muito especial e que a grande afinidade que senti de imediato ia além da coincidência do seu nome com o de alguém muito querido. Da sua boca escutei as palavras sábias e ponderadas que eu mais precisava ouvir no momento de maior dor. Elas ajudaram-me a atravessar a turbulência e a vislumbrar possibilidades de saída, quando tudo parecia desmoronar. De você veio o gesto que, agindo no tempo e no lugar certos, decidiu o futuro a favor da vida. E o caminho que esse gesto abriu deu origem a novas paisagens florescentes, cuja contemplação extasia.

Não sou poeta, mas um dia encontrarei o poema que quero lhe dar. Um poema que diga de forma plena e bela aquilo que gostaria de lhe dizer. Enquanto ele não chega, receba um buquê com algumas palavras da língua portuguesa, colhidas no instante em que as escrevo, ao sabor do adejar da memória. Escolho-as – algumas por sua sonoridade, outras por suscitarem imagens ligadas ao campo dos afetos e a coisas que tornam a vida mais digna de ser vivida – e entrego-as a você, minha filha especial, gerada no coração:

A - acalanto, afeto (como amor, amizade), alma, amora, andorinha,...
B- bebê, beija-flor (ou colibri),...
C- criança, coração, carrossel, corpo, cálice, cereja,...
D- dádiva, dom, divino, diadema, dança,...
E- estrela,...
F- fada, flor, felicidade, framboesa, ...
G- gerânio, giesta,...
H- hortênsia, ...
I- imaginação, Iansã, Iara, infante,...
J- jardim, jasmim, jangada, joaninha,...
L- lua, luz, libélula, ...
M - mãe, menininha, mar, música, miosótis,...
N- ninar, namorado, nenúfar, navio,...
O- ovelha, orvalho,...
P- pai, passarinho, poesia, pão,...
Q- querida,...
R- realejo, rosa, romã, rosmaninho, ...
S- sabiá, sol, sonho, som, silêncio, saudade,...
T- tamarindo, tecer, tiara, ternura...
U- unicórnio, ...
V- violeta, vida, vibração,...
X- xale, xamã, Xodó, ...
Z – zêlo,...

Ps.: Para melhor compor o ramo, ponha nas reticências as flores-palavras que mais amar.

quinta-feira, março 02, 2006

Sobre a pneumonia

Outro Poema Para o Meu Amor Doente, de Eugénio de Andrade

Outono, pássaro de melancolia
num céu sem cor que não promete nada,
mar de insónia onde o teu corpo paira
ou um aroma de terra molhada

Respiração humana

Por que choramos ao ler determinadas passagens de um livro ou ao assistir cenas de alguns filmes? Ou mais especificamente, por que a emoção por vezes vem-nos aos olhos e derrama-se em certos momentos que deixam os demais leitores ou espectadores impassíveis?

Percebo-me a chorar durante a projeção de As chaves de casa, filme sobre Paolo, um jovem com deficiências físicas e psicológicas provocadas por complicações durante o seu parto, a que se seguiu a morte da mãe e a rejeição do pai. Na cena que me provocou lágrimas, a personagem Nadine, cuja filha tem problemas ainda mais sérios do que os do rapaz, diz ao pai de Paolo, atarantado ante as dificuldades de enfim assumir o filho: faltou “respiração humana” junto ao berço do menino recém-nascido.

Esta afirmação punge-me intensamente. Ela toca-me porque nela descubro parte da minha história e que talvez nem com anos de Psicanálise pudesse aflorar. Narrativas familiares contam que minha mãe, numa época e numa região de extrema escassez, a ponto de meu pai precisar emigrar, viu-se sozinha, às voltas com o papel de maternar duas crianças pequenas – a minha irmã, de menos de dois anos de idade, e eu, recém-nascida e gravemente doente –, e acumulando ainda a função de provedora do lar. De manhã cedo até ao anoitecer, trabalhava como jornaleira (mulher-a-dias) no campo, semelhante à bóia-fria do Brasil. E, sem tempo para choro ou lamentações, ia secando as lágrimas e suportando como podia as saudades do marido distante e a dureza da vida.

Para que não percebêssemos a sua longa ausência, ela mantinha o nosso aposento o máximo possível no escuro, assim julgaríamos que era noite e dormiríamos mais. Se acordávamos e chorávamos, não havia ninguém ali para ouvir e acudir. Para nós, e em especial para mim, praticamente só havia a noite e quase nenhum colo. Nesse tempo não havia fraldas de papel, alimentação infantil industrializada nem outros recursos semelhantes. E se houvesse, ela não teria condições de adquirir. A alimentação das filhas pequenas só podia ser dada muito cedo, antes de ela sair para a lavoura, e muito tarde, quando regressava, extremamente exausta e faminta, e ainda tendo que cuidar da nossa higiene e da rotina doméstica.

Na fase do berço, minha irmã, primeira filha do casal, nascida quando nosso pai e nossa mãe iniciavam o casamento e o sonho de uma vida familiar com menos pobreza, conseguiu pegar um pouco do colo e do convívio com os dois. Quando começou a andar, ia com o meu pai para os trabalhos do campo. Admirava-se com o regato de água que irrigava os campos de milho – “ai tanta água!”, aprendeu a dizer ao nosso pai, que achava graça do espanto da menina - e distraía-se tentando pegar maçãs meio apodrecidas que caíam no caminho. Quando eu nasci, a situação de penúria aumentou, e meu pai tomou a difícil decisão de deixar a família e a terra natal, em busca de um futuro melhor para nós.

Só conheci meu pai aos quatro anos de idade, quando a família finalmente se reencontrou. Faltou-me no berço “respiração humana”, não por morte de mãe ou abandono de pai, mas por contingências da vida madrasta, que nos abandonou a todos. Entender isso conforta. Mas a quase total ausência do sopro que acalenta o bebê é uma lacuna que não poderá ser preenchida. Permanece como falta, ainda que sem culpas. E as marcas da longa noite da infância ainda permanecem, em forma de hipersensibilidade a qualquer tipo de luz: só no mais pleno escuro consigo adormecer.