Um blogue escrito por três pares de mãos separados por águas atlânticas. Uma viagem com escalas no Rio de Janeiro, em Londres e Senhora da Hora.
sexta-feira, junho 27, 2003
Caio Fernando Abreu
Acabei hoje de ler "O Ovo Apunhalado" (1975), do escritor brasileiro Caio Fernando Abreu. Esta obra e considerada o marco de uma viragem na literatura do Pais do Carnaval, a par com "Feliz Ano Novo", de Rubem Fonseca, "A Festa", de Ivan Angelo, e ainda "Zero", de Ignacio de Loyola.
Para mim, contudo, possui um sabor outro: um dos seus contos, talvez o mais belo do volume, bateu a minha porta sob a forma de palavras ditas. O actor Jose Mauro, um dos "livros de carne" da Casa da Leitura, no Rio de Janeiro, contava esse texto com frequencia nos seus espectaculos. No dia do meu aniversario, algures no inicio dos anos 90, ele presenteou-me precisamente com "Harriett". Carreguei comigo essa prenda intangivel durante os ultimos anos. Esforcava-me para lembrar frases da historia. Mas a verdade e que, como nunca a tinha lido no papel, as palavras recordadas simbolizavam apenas o prazer que eu havia sentido durante a sua audicao.
Nunca encontrei a obra nas livrarias e imaginava como aquelas letras, que faziam de Harriett uma imagem mental muito forte em mim, seriam uma vez dispostas em tinta sobre a celulose. A minha mae, ha cerca de um mes, conseguiu realizar o meu desejo. A LPM lancou no mercado brasileiro uma edicao de bolso de "O Ovo Apunhalado". Um volume de capa vermelha que veio ter aos meus dedos ha duas semanas. Quando o abri, procurando imediatamente a "Harriett", senti a alegria das criancas que se aninham num espaco concavo do corpo materno. Estava ali a carta de Harriett nunca enviada ao narrador, a nao ser de forma extemporanea:
"sabe que o meu gostar por voce chegou a ser amor pois se eu me comovia vendo voce pois se eu acordava no meio da noite so para ver voce dormindo meu deus como voce me doi vezenquando eu vou ficar esperando voce numa tarde cinzenta de inverno bem no meio duma praca entao os meus bracos nao vao ser suficientes para abracar voce e a minha voz vai querer dizer tanta mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme so olhando voce sem dizer nada so olhando olhando e pensando meu deus ah meu deus como voce me doi vezenquando".
quinta-feira, junho 26, 2003
Al Berto
"Mas ninguém possui verdadeiramente alguma coisa. As coisas do mundo pertencem a todos e, sobretudo, a quem aprendeu a nomeá-las", é o que me diz agora Al Berto, com as suas asas de "O Anjo Mudo". E então fiquei triste por só ter nomeado os textos de Al Berto - quando os tive entre os dedos - depois dele ter desaparecido. Descobri-o alguns anos depois, já residente em Portugal. Ouvi recitais com as suas palavras, li algumas coisas soltas. Um dia fui visitar um amigo ao hospital. Tinha feito uma cirurgia na perna. Estava triste. Havia lido "Horto de Incêndio" de uma vez só, sobre os leçóis brancos. Teria alta dentro de meia hora e entregou-me a obra com uma generosidade imprópria dos que sentem dor. E depois ainda houve o "Baía dos Tigres", designadamente a parte em que Pedro Rosa Mendes fala ao telefone com Francisco Sena Santos e recebe a notícia da morte de Al Berto. A leitura fez com que, pelo menos para mim, o poeta hoje morresse. Um luto extemporâneo.
quarta-feira, junho 25, 2003
Se hoje tivesse que escrever um conto, começaria assim (e não me pergunte por que):
Há muito que não dormia nos horários adequados. A insónia activava a minha máquina fotográfica mais íntima. E eu registava Lili com as pupilas, ela deitada de lado, com as pernas aconchegadas no lençol em forma de ninho. Um ninho aos seus pés. Lili com asas. Liliana, um anjo. Tinha as coxas depiladas, lisas, mas agora ganhando pouco a pouco uma penugem de pássaro. E ela voava, posicionava-se em vários ângulos para a foto. Lili de bruços para não magoar as asas no colchão. Levitando sobre o meu corpo, eu também de bruços, com a cabeça apoiada sobre as mãos, os joelhos flexionados. Lili beijando a minha nuca, como numa estátua de Rodin. Já não fotografava, era um sonho em mármore.
Há muito que não dormia nos horários adequados. A insónia activava a minha máquina fotográfica mais íntima. E eu registava Lili com as pupilas, ela deitada de lado, com as pernas aconchegadas no lençol em forma de ninho. Um ninho aos seus pés. Lili com asas. Liliana, um anjo. Tinha as coxas depiladas, lisas, mas agora ganhando pouco a pouco uma penugem de pássaro. E ela voava, posicionava-se em vários ângulos para a foto. Lili de bruços para não magoar as asas no colchão. Levitando sobre o meu corpo, eu também de bruços, com a cabeça apoiada sobre as mãos, os joelhos flexionados. Lili beijando a minha nuca, como numa estátua de Rodin. Já não fotografava, era um sonho em mármore.
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