Biografar um escritor é sempre um exercício de restauração. Encontra-se uns caquinhos aqui, cola-se com outros ali, deduz-se as partes que faltam a partir de documentos e fotos. Nádia Batella Gotlib fez algo semelhante para compor "Clarice - Uma Vida que se Conta" (Editora Ática, 1995, a minha edição é brasileira). E fez mais: entrelaçou vida e obra, adicionou leituras críticas dos textos ficcionais. Porque desenhar Clarice sempre foi algo muito difícil, pelo seu jeito fugidio, pela sua alma inquieta. O pintor Carlos Scliar conseguiu uma imagem da autora de "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres". Mas é um retrato entre tantos possíveis. Nádia Gotlib explica assim a sua dificuldade:
"Num universo em que o documental e o fictício se misturam, procuro examinar como os ingredientes dessa narrativa de vida e de obra se organizam, considerando-os na complexa alquimia criativa em que ferve o líquido de mutações. metamorfoses, tranfigurações, cujo segredo, em última instância, parece inviolável.
Contudo, não se pode negar que há... coincidências. E tais coincidências a feiticeira Clarice conhecia bem. E tanto praticava como eficácia o parecer como se fosse que, nesse jogo, nós, leitores de sua vida e de sua obra, por vezes nos sentimos ludibriados, de modo até magicamente perverso, e enredados numa das grandes questões que essa narrativa de vida traduz: os limites entre o histórico e o ficcional. De quem é a voz? Quais as pessoas e quais as personagens? O que é a história e o que é a ficção? Enfim, o que é real e o que é imaginário, nesta história de Clarice?"
Ao ler a biografia elaborada por Nádia Gotlib, senti-me então no direito de imaginar a minha Clarice a partir das impressões que coleccionei desde que conheci a sua obra. Se o jogo que ela propõe dissolve as fronteiras entre arte e vida, por que não imaginá-la à minha maneira?
Foi então que comecei a construí-la.
Contaram-me que era feiticeira e que isso se notava muito bem em "Onde Estiveste de Noite" (1974). A minha mãe falava-me de uma conferência de bruxaria na qual ela havia participado, levando consigo o seu célebre conto do ovo.
Disseram-me, quando eu estagiava no Jornal do Brasil, que Clarice nos anos 70 escrevia umas crónicas femininas mais inócuas do que as de Margarida Rebelo Pinto. E que, segundo a jornalista Gilse Campos contou à filha, Clarice era "estranhíssima", aparecendo na redacção com roupas bizarras e comportamentos arredios. Fazia-o, claro está, desde que mandou às favas o marido diplomata que, estou certa, era um chato de primeira linha. De regresso ao Brasil, Clarice tinha de sustentar a si e aos dois filhos homens - Pedro e Paulo, salvo erro.
Clarice era linda, diga-se de passagem. Com olhos de sedutora nata, Clarice podia ser louca a ponto de esquecer de dar comida aos peixes ou de adormecer com cigarros acesos, imolando-se acidentalmente. Mas não deixo de imaginá-la a passear tranquila no calçadão na praia do Leme (onde morava a escritora), seguindo até ao fim da marginal de Copacabana. Era o que fazia a Lóri de "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres".
Não vale a pena encaixá-la em nenhum parámetro fixo ou fazer dela um tipo social. Clarice simplesmente viveu, só que o fez muitas vezes DENTRO da literatura. E assim já não se pode mais distinguir uma coisa da outra. Como ela própria escreveu algures, "não se preocupe em endender, viver ultrapassa todo o entendimento".
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