domingo, novembro 30, 2003

Os cárceres de Goethe



A versão primitiva de "Fausto", de Goethe (1749-1832), encantou o encenador Nuno M Cardoso sobretudo pela "relação que era estabelecida entre amor e morte, personificada pela personagem Gretchen". No texto de apresentação da peça "Gretchen", em cartaz no Teatro Carlos Alberto, lê-se:

"Gretchen torna-se, então, personagem principal, pelo desespero, pela ascese na perda, pelo acolher da morte com alegria. [...] Gretchen é também o reconhecimento da inevitabilidade da morte."

No ensaio de João Barrento - responsável pela tradução do texto -, regressamos à questão da mulher que, de alguma forma, rouba a cena ao Fausto.

"O fragmento abre com uma cena que se situa no universo claustrofóbico do protagonista (mas teremos de nos interrogar desde já sobre o "protagonismo" de Fausto numa montagem que preferiu o título "Gretchen", e que pretende claramente deslocar esse protagonismo para a figura da mulher), e fecha com a condenação e morte de Gretchen num cárcere real. [...]
No entanto, nesta primeira versão ainda sem a estrutura e o escopo épico-simbólicos da versão definitiva do Fausto, a acção decorrerá de certo modo em circuito fechado, de cárcere a cárcere: o primeiro, de Fausto, é o laboratório da cena inicial, cárcere de invenções, mas não de vida, que gera outro, o cárcere do coração fechado e morto; o segundo, de Gretchen, mãe solteira, infanticida condenada e enlouquecida, é aquele para onde a lançam a lei e as normas sociais e morais vigentes."

Temos então, parece-me, duas linhas interessantes nesta montagem de Nuno M Cardoso: a questão da mulher "pobre e seduzida" (e, no entanto, protagonista) e a ideia de um círculo fehado que encarcera o drama. E é sobre esta que recaio quando penso na cenografia de Paulo Capelo Cardoso: há várias paletes de madeira sobre o palco, umas empilhadas com rigor, outras dispersas. Formam volumes de diferentes alturas. E sugerem precisamente um ambiente fechado e ao mesmo tempo contraditório. Um armazém lacrado? Um contentor vazio de mercadorias? Mas esses espaços não são feitos para conter, armazenar? E se estão vazios não traem a sua própria essência? É esse incómodo do cenário que reaparece num outro comentário de João Barrento:

"De desejo se trata, de facto, e de uma dinâmica muito goethiana: a da oscilação dialéctica entre sístole e diástole, abertura e fechamento, liberdade e necessidade."

As paletes empilhadas trazem em si não só a carga simbólica do consumo - comparece aqui a burguesia de que fala Goethe -, mas também a diáléctica asfixiante de Gretchen. Traduzem-se em uma oscilação entre cheio e vazio, em um movimento cíclico. As paletes estão em constante movimento para o transporte de mercadorias ,de um lado para o outro, mas o seu carácter funcional não se altera com a mudança de sítio. E, de resto, obedecem a um ritmo de carga e descarga sem ruptura possível. Como o círculo fechado e inevitável que aprisiona Gretchen. Essas ideias são depositadas no cenário subliminarmente, a par com a óbvia plasticidade da madeira traçada: cruz, grade, cárcere e caixão.

Hoje é o último dia para ver "Gretchen", de Goethe, no Teatro Carlos Alberto, no Porto.

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