Leio num jornal antigo - adoro ler edições velhas, de semanas anteriores - que dois soldados norte-americanos foram ontem mortos a tiros em Mossul, Norte do Iraque. Nada de novo se não lêssemos em seguida, nesta edição do Publico de 24 de Novembro de 2003, que testemunhas oculares relataram o ultraje dos cadáveres por "uma multidão de adolescentes", que durante vários minutos atiraram blocos de cimento para cima dos defuntos. Depois, os corpos dos dois soldados foram arrastados pelo solo.
Sei que a crueldade habita dos dois lados desta linha bélica. Mas não consigo deixar de pensar no Heitor da "Ilíada" de Homera enquanto leio esta notícia, porque também o guerreiro troiano ultrajado pelos gregos após a sua morte. O grande Aquiles estava magoado pelo anterior assassinato do seu grande amigo, o guerreiro Pátroclo, que não resistiu ao combate com os troianos. O ódio mútuo, há três mil anos, provocou a mesma atrocidade simbólica de destruir o corpo inerte de um rival. Assim foi nos nove anos de guerra entre gregos e troianos, assim foi na guerra do Iraque, assim será enquanto houver mais de um homem na Terra a se considerar diferente do outro.
"O Pelida [Aquiles], no entanto, chorava / o companheiro dileto, a virar-se de um lado para o outro, / sem pelo sono, a que todos domina, sentir-se vencido. / Lembra-lhe a força de Pátroclo, a indigente e provada coragem, / bem como os trabalhos que juntos haviam sofrido / nas cruas guerras dos homens e, assim, sobre as ondas revoltas, / Essas visões o levavam o pranto a verter amaríssimo [...] / Por fim, levantando-se, / anda ao comprido na praia do mar. Porém logo que a Aurora / via raiar, reflectindo-se na água e na areia nitente, / ao jugo atava os cavalos velozes, de origem divina, / atrás do carro o cadáver de Heitor amarrando. / E, após o corpo arrastar por três vezes à volta do túmulo / do ínclito Pátroclo, à tenda voltava a acolher-se, deixando-o / na branca areia, de bruços."
(Trecho retirado da edição brasileira da Ilíada, traduzida em versos por Carlos Alberto Nunes e publicada pela Ediouro em 2001)
As diferenças, obviamente, são muitas. Uma está no facto de, no poema homérico, a ira de Aquiles estar personificada pela figura de Pátroclo - ao contrário do ódio entre iraquianos e norte-americanos, suportado por razões circunstanciais que todos conhecemos. Contudo, não podemos nos esquecer que cada mágoa iraquiana está igualmente associada à perda sucessiva de pessoas próximas. Sob ambas as guerras paira um conflito lato que tem sempre dimensões particulares a cada esquina em ruínas. Mas esta porção particular do universal não vem na notícia.
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