quarta-feira, março 10, 2004

Cinema mental



O médico britânico Oliver Sacks, num texto publicado originalmente na "New York Review of books", coloca-nos questões sobre o fluxo de consciência. É que, nos últimos tempos, a neurociência investiga se, como num filme, a percepção mental é o resultado de um somatório de vários instantâneos captados pelo nosso cérebro. Já ouvimos falar muitas vezes do "fluxo de consciência" na literatura, ou seja, quando os escritores reproduzem a torrente de ideias dos seus personagens utilizando uma técnica homónima. Sacks questiona a aparente continuidade destas imagens mentais. A percepção do movimento, sustenta o investigador radicado nos Estados Unidos, pode ser uma construção feita segundo uma determinada actividade neural. Assim, o "filme" das nossas vidas que (dizem) assistimos quando estamos prestes a morrer seria, por exemplo, montado a partir de frameworks.

"Em outras palavras, o senso de continuidade resulta da sobreposição contínua de momentos perceptivos sucessivos", escreve Sacks, num texto traduzido por Clara Allain para o suplemento Mais!.

Nós, os humanos, fomos brindados com estas pequeninas câmeras internas. Temos um laboratório cinematográfico dentro das nossas cabeças, com sala de montagem e tudo. Este dispositivo terá surgido primeiro nos répteis, há um quarto de bilhão de anos. As rãs, por exemplo, não têm consciência dinâmica. O dom que temos nos permite ter uma singularidade, uma forma própria de apreendermos o real.

"Enquanto escrevo, estou sentado num café da Sétima Avenidam observando o mundo passar. Minha atenção se volta para um lado e para outro - uma garota de vestido vermelho passa ao lado, um homem passeando com o seu cachorro engraçado, o sol finalmente emergindo de trás das nuvens.
Todos estes acontecimentos que captam a minha atenção por um momento, enquanto acontecem. Por que, entre mil percepções possíveis, são essas que eu tenho? Reflexões, memórias e associações estão por trás delas. Pois a consciência é sempre activa e selectiva - carregada de sentimentos e sentidos exclusivamente nossos, informando nossas escolhas e refundindo nossas percepções. Assim, não é simplesmente a Séptima Avenida que eu vejo, mas a minha Séptima Avenida, marcada pela minha própria identidade, o meu eu."

No fim do seu brilhante artigo, Sacks diz que, assim, "somos os directores do filme que fazemos- mas também, em grau igual, seus sujeitos". "Cada quadro, cada momento, é nós, é nosso - como diz Proust, nossas formas estão esboçadas em cada um, mesmo que não tenhamos outra existência, outra realidade senão essa."




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