Por que choramos ao ler determinadas passagens de um livro ou ao assistir cenas de alguns filmes? Ou mais especificamente, por que a emoção por vezes vem-nos aos olhos e derrama-se em certos momentos que deixam os demais leitores ou espectadores impassíveis?
Percebo-me a chorar durante a projeção de As chaves de casa, filme sobre Paolo, um jovem com deficiências físicas e psicológicas provocadas por complicações durante o seu parto, a que se seguiu a morte da mãe e a rejeição do pai. Na cena que me provocou lágrimas, a personagem Nadine, cuja filha tem problemas ainda mais sérios do que os do rapaz, diz ao pai de Paolo, atarantado ante as dificuldades de enfim assumir o filho: faltou “respiração humana” junto ao berço do menino recém-nascido.
Esta afirmação punge-me intensamente. Ela toca-me porque nela descubro parte da minha história e que talvez nem com anos de Psicanálise pudesse aflorar. Narrativas familiares contam que minha mãe, numa época e numa região de extrema escassez, a ponto de meu pai precisar emigrar, viu-se sozinha, às voltas com o papel de maternar duas crianças pequenas – a minha irmã, de menos de dois anos de idade, e eu, recém-nascida e gravemente doente –, e acumulando ainda a função de provedora do lar. De manhã cedo até ao anoitecer, trabalhava como jornaleira (mulher-a-dias) no campo, semelhante à bóia-fria do Brasil. E, sem tempo para choro ou lamentações, ia secando as lágrimas e suportando como podia as saudades do marido distante e a dureza da vida.
Para que não percebêssemos a sua longa ausência, ela mantinha o nosso aposento o máximo possível no escuro, assim julgaríamos que era noite e dormiríamos mais. Se acordávamos e chorávamos, não havia ninguém ali para ouvir e acudir. Para nós, e em especial para mim, praticamente só havia a noite e quase nenhum colo. Nesse tempo não havia fraldas de papel, alimentação infantil industrializada nem outros recursos semelhantes. E se houvesse, ela não teria condições de adquirir. A alimentação das filhas pequenas só podia ser dada muito cedo, antes de ela sair para a lavoura, e muito tarde, quando regressava, extremamente exausta e faminta, e ainda tendo que cuidar da nossa higiene e da rotina doméstica.
Na fase do berço, minha irmã, primeira filha do casal, nascida quando nosso pai e nossa mãe iniciavam o casamento e o sonho de uma vida familiar com menos pobreza, conseguiu pegar um pouco do colo e do convívio com os dois. Quando começou a andar, ia com o meu pai para os trabalhos do campo. Admirava-se com o regato de água que irrigava os campos de milho – “ai tanta água!”, aprendeu a dizer ao nosso pai, que achava graça do espanto da menina - e distraía-se tentando pegar maçãs meio apodrecidas que caíam no caminho. Quando eu nasci, a situação de penúria aumentou, e meu pai tomou a difícil decisão de deixar a família e a terra natal, em busca de um futuro melhor para nós.
Só conheci meu pai aos quatro anos de idade, quando a família finalmente se reencontrou. Faltou-me no berço “respiração humana”, não por morte de mãe ou abandono de pai, mas por contingências da vida madrasta, que nos abandonou a todos. Entender isso conforta. Mas a quase total ausência do sopro que acalenta o bebê é uma lacuna que não poderá ser preenchida. Permanece como falta, ainda que sem culpas. E as marcas da longa noite da infância ainda permanecem, em forma de hipersensibilidade a qualquer tipo de luz: só no mais pleno escuro consigo adormecer.
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