Um blogue escrito por três pares de mãos separados por águas atlânticas. Uma viagem com escalas no Rio de Janeiro, em Londres e Senhora da Hora.
quinta-feira, agosto 21, 2003
Hãtoino de Lírio
Os pés estão firmes, hirtos sobre o plinto que lhe coloca acima do real. Diz-me que aquele pequeno cubo de madeira ajuda-o a estar sobre o mundo. Quando sobe o degrau singular para a imobilidade, esmaga vidros de relógios com os pés e inaugura a idade da quietude. Diz-me que dali, daquele palco urbano, vislumbra o todo e sustém a respiração tão fortemente a ponto de sentir o ar entrar pela pele. Erra quem vê naquele corpo coberto por uma cremosa tinta dourada apenas um homem imóvel: a estátua viva pulsa e apreende do concreto os seus aspectos mais ínfimos. Despe transeuntes com o olhar, conjuga vontades que deambulam absortas nas artérias de uma cidade que se chama Lisboa. O nosso ser de granito faz do sossego físico uma viagem estática para aquilo que pode haver de mais amplo e distante: o imaginário humano. Dessa incompreensão colectiva resulta a sua queixa, registada numa obra de apontamentos nocturnos: “Ninguém mais entende a quietude da minha criação, ninguém mais imagina montanhas para lá do céu, ninguém mais alcança a meta das minhas viagens. Todos esqueceram a procura do porquê do passado.”
Ele dizia-me, sentado num pequeno banco da sua casa no Alentejo, que quando estava imóvel pensava apenas numa imagem interior. Controlava a respiração, dominava cada brônquio das suas duas bolsas de ar. Pouco a pouco, estabelecia um diálogo entre o cérebro e o corpo. Este julgava subjugar aquele com a arma mais desleal: a dor. Mas o cérebro acaba por negociar com a carne o preço da beleza estática. O cansaço dos ossos ou a sofreguidão dos músculos são como nuvens que passam, sendo a quietude o céu que resiste. Assim diziam os ensinamentos de ioga e concentração que transportam a matéria para o espaço mais recôndito do universo humano. A mente do artista viaja para todas as paisagens que desejar. Se está frio e a vontade de espirrar é iminente, basta imaginar um lugar ensolarado onde sopra uma aragem tépida. Porque o ambiente que o rodeia é construído pelos impulsos eléctricos dos seus neurónios. E nada mais. É assim que o primeiro homem-estátua mostrou que é possível seduzir o tempo.
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