Um blogue escrito por três pares de mãos separados por águas atlânticas. Uma viagem com escalas no Rio de Janeiro, em Londres e Senhora da Hora.
domingo, agosto 10, 2003
Quem atira a primeira pedra em Morvern Callar?
Sim, ela parece bizarra. Por vários motivos. Porque abre as prendas de Natal impávida e serena, como se não estivesse ao lado de um cadáver. Porque corta o namorado suicida em pedacinhos. Porque usa o dinheiro do funeral para viajar com uma amiga até Ibiza. Ela chama-se Morvern Callar e trabalha na secção de hortaliças de um supermercado. É quem dá espessura ao novo filme da britânica Lynne Ramsay. Mas a actriz que lhe empresta corpo, Samantha Morton – nomeada para o Oscar por “Através da Noite”, de Woody Allen –, não vê tanta estranheza assim na personagem. Já confessou que apenas considera Morven “um ser primário”, que lida com a morte de uma maneira singular, instintiva e nada ocidental.
Numa sociedade que se habituou a conferir uma imagem da limpeza clínica ao processo fúnebre – e o historiador Phillipe Ariés mostra isso muito bem nos seus estudos sobre a morte –, alguém como Morvern distingue-se como uma transgressora de valores culturais. E o que o filme “A Viagem de Morvern Callar” oferece é o confronto com uma outra forma de dizer adeus. Uma despedida feita com uma faca, numa banheira ensanguentada, ao som da cassete que ele lhe gravou com desvelo. Segue-se um enterro íntimo numa terra simbólica, com uma sepultura cavada com as próprias mãos. São comportamentos que gravitam à volta de um núcleo de espanto, é certo, mas o espectador que avançar com a primeira pedra arrisca-se a não embarcar na viagem de Morvern Callar. Quem julgá-la não irá conhecê-la.
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