quinta-feira, outubro 30, 2003

Um texto inédito de Eduardo Lourenço

"O poeta e os outros"


Ortega y Gasset tem um ensaio intitulado aristocraticamente “os intelectuais e os outros”. Como todas as assumpções da aristocracia, esta comporta um risco, um não pequeno e grave risco. As eleições são sempre contestáveis mas a auto-eleição realiza nesse capítulo um sucesso particular: não tendo a garantia de Deus nem dos eleitores, é duplamente contestável. Intelectual, Ortega y Gasset erigiu o seu estatuto mental em situação ímpar de humanidade. Talvez tenha razão. A linhagem de onde procede esse solitário e altivo sentimento de diferença superior a considerações de raça, religião e classe é antiqüíssimo e venerável. Platão brilha no meio do círculo dos eleitos mas o zodíaco da inteligentzia está cheio como um coro de anjos: todo o Renascimento, o Classicismo, o Romantismo aí proclamam a glória unânime do homem da inteligência.

Os inteligentes se extasiam na sua inteligência. Os antigos altamente excusáveis pois jamais viram nela senão a inteligência do Homem. O particular não foi nunca objecto da atenção “divina” de Platão. Os modernos, inexcusáveis, pois dizendo inteligência e eleição é a sua inteligência que elegem, a dos outros tendo-se tornado para todos eles confusa e problemática. E todavia como não exaltar a inteligência sem diminuir o homem? Como proceder para não ficar prisioneiro de um contestável orgulho? Não há solução alguma isenta. Quando se afirma uma diferença, quando nos separamos do género humano proclamando uma diferença qualquer, essa decisão nos absolve e nos condena.

Pode acontecer contudo que a diferença se torne visível por si mesma e se manifeste de tal modo que ao ser expressa por nós seja ainda compatível com a isenção. O destino pode colocar-nos na situação de exteriores ao espectáculo onde a diferença humana se manifesta. Ou interiores a ela mas miraculosamente neutros. Tal pretende ser a situação humana privilegiada dos críticos em relação à poesia quando ela não o é senão por um acaso quase tão raro como o da própria poesia. A situação íntima e real da maioria da crítica literária – em especial universitária - é a de uma não sei que subtil, confusa mas obstinada consciência de não sei que superioridade em relação ao poeta. De outro modo como se teria ele inventado crítico? Embalsamadores imaginam-se ressuscitadores, glosadores de vivos crêem-se inventores de mortos. São insuportáveis, mesmo os melhores, e quanto melhores piores. A esse destino de aves mortuárias da criação só escapam os críticos a quem o amor deu asas para queimar na luz descoberta. O amor os inventou, sua crítica é o diálogo, o discurso sem fim que o amor suscita, segundo diz o Fedon, e o amor os salva. No mundo da criação, mais implacável que o terrestre mundo que a todo instante se esboroa ou que o da inteligência que a si mesma se divide e agoniza, só há na verdade OS POETAS E OS OUTROS.

Eu pertenço aos outros e por isso não tenho mérito algum em o confessar. Como é da essência dos outros, e em especial da fauna crítica, que é o sumo dessa “alteridade”, também eu talhei e medi, fiz comparecer réus e testemunhas, pronunciei sentenças de morte para pessoas que não podiam morrer, concedi liberdade a escravos deles mesmos, ofereci vida a cadáveres confusos, enfim alucinei-me sobre poderes que Deus não concede senão aos criadores. Em suma, cedi à tentação de ser crítico."

Texto publicado no mais recente número da revista luso-brasileira "Metamorfoses"

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