Um blogue escrito por três pares de mãos separados por águas atlânticas. Uma viagem com escalas no Rio de Janeiro, em Londres e Senhora da Hora.
domingo, novembro 23, 2003
Ainda Dogville
Contributos para a discussão sobre "Dogville":
1) O repórter Luiz Carlos Merten, do jornal brasileiro "O Estado de São Paulo", escreve que von Trier é "um demiurgo, apontador de caminhos". Achei a designação feliz se pensarmos na palavra demiurgo à luz do seu berço grego: criador do universo, magistrado. Demiurgo também é o nome dado pelos filósofos platónicos ao criador do homem. Assim, von Trier figuraria como um criador de universos (e não do universo, é claro). Um homem capaz de construir a partir da sua arte um sistema coerente, um sistema dotado de elementos que se regem segundo uma orgânica própria.
A aldeia gizada no chão do estúdio, ou seja, a aldeia cinematográfica de "Dogville" consegue ser um universo próprio, um espaço que se teletransporta do ecrã para o espectador. Essa construção em nós de uma imagem mental, uma paisagem que retrata um sítio específico, é formidável. Eu sou capaz de sentir o cheiro das maçãs que rolam sobre o camião. Eu sou capaz de sentir o cheiro bafiento da casa do ceguinho, sempre com as cortinas fechadas. Isto é estética da recepção. É conseguir construir um mundo a partir de muito pouco, de exíguos recursos cenográficos. Assim sendo, concordo com Carlos Merten: von Trier faz filmes com mãos de demiurgo.
2) Lutz escreve-me a dizer que "Dogville" "é um grande filme", mas uma obra que faz "uma generalização inaceitável". Na sua casa recém-inaugurada - a "Quase Em Português" -, Lutz explica que "o filme é de um anti-americanismo de fazer sombra ao Bin Laden. Se não fossem os últimos minutos dos créditos, com a sequéncia das fotografias conhecidissimas das vítimas da grande depressão americana dos anos 30, com a banda sonora de "Young Americans" de David Bowie, ainda seria possível entender todo o resto, o setting numa aldeia no interior da América puritana, a referéncia aos classicos filmes de gangster, como um dispositivo do dramaturgo para fazer o seu ponto, ou seja ficava a hipótese que podia ter havido outro setting qualquer. Mas von Trier faz questão de não deixar aqui dúvidas."
3) A MVG mandou uma mensagem com um comentário muito interessante. Tomo a liberdade de reproduzi-lo neste cais:
"Não nos podemos esquecer que von Trier respondeu às acusações dizendo que também ele era americano. Uma pequena coisa em que discordo, porém, é a da identificação do espectador com Kidman ao ponto de a querer vingar. Penso que há ali um grande trabalho de ironia (no sentido romântico de distanciação), dada não só pela voz do narrador, mas também pelo cenário esteticizado e até pelo genérico final com as imagens que remetem para um tipo de fotografia americana dos homens desperdiçados (que as imagens, no entanto, parecem cristalizar com uma nota de compaixão e quase esperança) dos anos 30 e 40, dando a impressão de um arrependimento tardio e, por isso, desacreditado.
Julgo que é o facto de ser impedido ao espectador sofisticado qualquer tipo de identificação (e de catarse libertadora) que torna o filme mais inquietante: constantemente nos perguntamos qual a atitude a tomar face ao que nos é apresentado."
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