Um blogue escrito por três pares de mãos separados por águas atlânticas. Uma viagem com escalas no Rio de Janeiro, em Londres e Senhora da Hora.
segunda-feira, novembro 17, 2003
De olhos bem fechados
Por vezes tenho a sensação de ver os filmes de olhos bem fechados. Apreciei "Kill Bill", como já aqui escrevi. Depois li que o Carlos Vaz Marques achou o filme "oco", sem substância. Valorizo profundamente o trabalho de CVM e, portanto, se calhar o problema é meu.
Hoje aconteceu o mesmo com "Dogville". Chamaram-me atenção para o texto de Augusto M. Seabra nas páginas do Publico, divulgado no passado dia 10 de Outubro. Bem, a sua coluna "Inclinacões" simplesmente arrasa com von Trier. Diz que o cara não fez rigorasamente nada que prestasse (excepto "Ondas de Paixão"). E acusa esta última obra de ser "um programa ético sobre a miséria humana", uma "teologia de pacotilha", "um antiamericanismo cultural". Enfim, eu não reparei em nada disso quando vi o filme. Mais uma vez, o problema dever ser meu.
No meu modesto ponto de vista, von Trier causa uma estranheza no seu "Dogville" - a aldeia marcada a giz no chão - para depois conduzir o seu espectador à sua própria condição humana. Queremos vingar Nicole Kidman todo o tempo, mas, por outro lado, sabemos perfeitamente que é dessa maldade que somos feitos. "Dogville" fala também de como acolhemos o estranho que chega à nossa aldeia, de como sugamos dele tudo aquilo que podemos e como o tememos ou o dispensamos quando nos convém. Não é assim quando falamos de imigração? Não é isso que criticamos em Bush e na sua politiquinha western "dead-or-alive"?
Vasco Câmara escreveu no Y que "Dogville" é "um tratado filosófico, pessimista, sobre a bestialidade humana, quando os homens estão isolados do mundo e vivem segundo as suas próprias leis, como se fossem deuses de uma moral que inventaram". Ora, mas não é exactamente isso que criticamos na administração Bush? Eu também nunca pus os pés nos EUA e penso isso mesmo sobre este Governo (e não sobre o povo americano, o que seria uma generalização burra).
A crítica antiamericana, contudo, é o que menos me interessa em "Dogville". Despertou mais os meus sentidos aquilo que se prende com a crueldade humana. E com a capacidade criativa do realizador. O que von Trier fez ao gizar uma aldeia nas Montanhas Rochosas, nos anos 30, foi imaginar uma história num lugar. Não é o que todos fazem? Quando falamos de arte cinematográfica não nos reportamos para o pacto da representação? Pois bem, ao saber que von Trier treme só pensar em entrar num avião e que, por isso mesmo, nunca foi à terra do Tio Sam, eu fiquei ainda mais contente!
Isso quer dizer que "Dogville" nasce de uma imagem mental, por vezes contaminada por estereótipos ou pela inexperiência do lugar, é certo, mas obviamente liberta do passo irreversível que é o conhecimento. Pois é sabido que não se pode "des-saber" algo que já se conhece, não se pode anular um acontecimento já transcorrido. Nunca ter estado nos EUA permite um sem número de possibilidades de representação desse mesmo país e, por outro lado, não reduz o criador à angústia de estar a ser influenciado pela parte que conheceu de um todo.
Lars von Trier encerra em "Dogville" uma imagem própria, parcial dos EUA - é a primeira fita de uma trilogia - que, na minha opinião, é tão legítima como tantos outros retratos que já se fizeram sobre os Estados Unidos, tanto no cinema como na literatura.
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