Bem-te-vi ainda era quase uma criança quando migrou com os pais do Sertão do Nordeste para o Rio de Janeiro. Da origem nordestina, conservou a devoção por Nossa Senhora de Santana - santa festejada em Julho, mês em ele nasceu -, e o assobio. A alcunha veio-lhe por saber assobiar para atrair passarinhos.
Até aqui, parece a história de um migrante comum. Não é. Dois anos depois de chegar ao Rio, o ex-lavrador Erismar, o Bem-te-vi, tornou-se um traficante de drogas. Com apenas 29 anos, já era o chefe do tráfico da favela da Rocinha e pai de duas filhas, uma de dois e outra de quatro anos. Ao pescoço, três cordões de ouro assinalavam os seus maiores afetos: dois com os nomes das filhas e um com um cifrão. O poder e o dinheiro visíveis na sua outra predileção: armas personalizadas. Seu fusil Sig –Sauer calibre 7,62 - era de ouro maciço. Por sua vez, o seu "grupamento especial", conhecido como "Bonde do Tesouro" ou "Bonde de Ouro", também ostentava jóias (a esta altura, como não pensar em Lampião e seu bando?).
Ao ser morto pela Polícia, tinha os cabelos pintados, portava duas armas douradas e usava um bracelete de ouro. Segundo noticiam os jornais, no seu enterro alguns moradores da favela questionaram o sumiço de cordões e braceletes. Ainda segundo o noticiário, Bem-te-vi deixou um "sucessor natural", seu cunhado, de 27 anos.
Esta é a triste história de Bem-te-vi (e de uma significativa parcela da população do Brasil). Onde começa o desvio? Como mudar este enredo?
Um blogue escrito por três pares de mãos separados por águas atlânticas. Uma viagem com escalas no Rio de Janeiro, em Londres e Senhora da Hora.
segunda-feira, outubro 31, 2005
sexta-feira, outubro 28, 2005
Tuki em directo do Rio de Janeiro
Se porventura algum brasileiro, de nascimento ou de coração, tivesse adormecido ou ficado em coma logo após a vitória de Lula nas últimas eleições presidenciais, ao retornar à chamada vida real, por mais pessimista ou fantasista que fosse, decerto não poderia imaginar a situação atual do país. Nos mais representativos jornais e telejornais, as manchetes diárias não versam sobre a realização de nenhum dos principais pontos da campanha. Não se fala mais em combate à fome e menos ainda, é claro, sobre ações concretas e contínuas para combatê-la. CPIs da corrupção ocupam diariamente a primeira página. Acontecimentos extremamente significativos, como a dramática luta de dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra, em greve de fome contra a transposição do Rio São Francisco, iniciada em setembro de 2005 e interrompida com um acordo, não causaram uma repercussão midiática de idêntica proporção. Também não têm merecido a devida atenção da imprensa os indícios da possibilidade de não cumprimento do acordo por parte do governo. Será preciso, talvez, um jejum coletivo.
segunda-feira, outubro 10, 2005
Há quem saiba o que Margarida sabe lá
Os intelectuais odeiam a escritora portuguesa Margarida Rebelo Pinto e há quem diga que o ódio à autora de romances como "Sei Lá" é descabido, uma vez que os iluminados nunca se deram ao trabalho de ler os textos da senhora. Contudo, houve alguém com espírito de sacrifício. Podem espreitar aqui.
domingo, outubro 09, 2005
Deambulações nocturnas
"Foi também nessa época, depois de concluir o trabalho de destruição no jardim e ter arrumado a casa, que iniciei as minhas deambulações nocturnas por Londres como forma de escapar à tortura crescente que eram as insónias"
"Austerlitz", W.G. Sebald (Teorema, 2004, p.119)
sexta-feira, outubro 07, 2005
Promessa de campanha
Um amigo de Nova Iorque convenceu-me a deixar de ser preguiçosa. E a escrever com regularidade neste cais que anda mais abandonado do que vira-lata. Estamos à porta das eleições autárquicas em Portugal e, assim, não custa nada fazer mais uma promessinha. Regressei. E desta vez trago comigo a Tuki. Uma nova colaboradora. Esperem para ver.
A dor alemã que ficou por escrever
Quem pretende visitar a Alemanha, sobretudo Berlim e Hamburgo, pode encontrar nas obras de W.G.Sebald (1944 – 2001) preciosas notas para compreender o comportamento germânico após 1945. A ficção deste autor é muito subtil nas mensagens que encerra, mas guarda em si uma teoria sobre o registo da dor humana em tempos de guerra. No livro "Sobre la história natural de la destrucción" – tendo aqui em conta a edição espanhola, uma vez que estes quatro ensaios ainda não estão traduzidos para o português – encontramos uma enunciação clara dessa mesma teoria. Recuperando o conteúdo das suas conferências de Zurique, Sebald mostra como os alemães cobriram com um manto de amnésia as ruínas provocadas pelos ataques aéreos dos Aliados. Calcula-se que 131 cidades alemãs tenham sido bombardeadas, cerca de 600 mil civis morreram e outros 7,5 milhões ficaram sem casa.
Os registos da destruição praticamente não foram transpostos para a literatura. Quem visita hoje Berlim encontra réplicas perfeitas de monumentos transformados em pó durante a Segunda Guerra Mundial. Parece-nos uma espécie de simulacro, para que a vaga entre 1937 e 1945 possa ser soterrada e a vida prossiga seguindo a imprescindível ordem natural das coisas. Sebald não tem dúvidas de que a dor alemã ficou por escrever – mulheres que carregaram em malas os seus bebés carbonizados, por exemplo, ou cadáveres encolhidos nas ruas, a boiar sobre a sua própria gordura derretida –, nem de que os registos hoje disponíveis se devem em grande parte a observadores estrangeiros. Talvez porque a sociedade civil não estivesse preparada, numa situação pós-traumática, para inscrever na História o horror de uma devastação impulsionada pela própria liderança germânica. Ou porque não lhe parecesse lícito, face à incalculável brutalidade dos campos de concentração, dar voz à própria dor.
Sebald só chegou às livrarias portuguesas recentemente, com a obra "Austerlitz" (Teorema, 2004). É uma espécie de autobiografia romanceada de uma personagem de origem judia, a quem foi atribuído um nome substituto, Austerlitz – que é curiosamente o nome de uma gare em Paris, mas também uma palavra que soa aos nossos ouvidos estridente como Auschwitz. Austerlitz parece ser um homem sem passado ou pertença – daí a ideia de uma estação, um lugar de transição perpétua, um cais onde não se cria raízes. Através do narrador, que se encontra com esta misteriosa figura em Antuérpia e Londres, vamos conhecendo melhor um homem angustiado com a sua própria memória, num dilema incessante entre a sobrevivência e o dever de preservar a sua própria história.
"Sobre la história natural de la destrucción
Editora Anagrama
(Barcelona, 2003)
Preço: 12 euros
(Fugas, 2005)
Os registos da destruição praticamente não foram transpostos para a literatura. Quem visita hoje Berlim encontra réplicas perfeitas de monumentos transformados em pó durante a Segunda Guerra Mundial. Parece-nos uma espécie de simulacro, para que a vaga entre 1937 e 1945 possa ser soterrada e a vida prossiga seguindo a imprescindível ordem natural das coisas. Sebald não tem dúvidas de que a dor alemã ficou por escrever – mulheres que carregaram em malas os seus bebés carbonizados, por exemplo, ou cadáveres encolhidos nas ruas, a boiar sobre a sua própria gordura derretida –, nem de que os registos hoje disponíveis se devem em grande parte a observadores estrangeiros. Talvez porque a sociedade civil não estivesse preparada, numa situação pós-traumática, para inscrever na História o horror de uma devastação impulsionada pela própria liderança germânica. Ou porque não lhe parecesse lícito, face à incalculável brutalidade dos campos de concentração, dar voz à própria dor.
Sebald só chegou às livrarias portuguesas recentemente, com a obra "Austerlitz" (Teorema, 2004). É uma espécie de autobiografia romanceada de uma personagem de origem judia, a quem foi atribuído um nome substituto, Austerlitz – que é curiosamente o nome de uma gare em Paris, mas também uma palavra que soa aos nossos ouvidos estridente como Auschwitz. Austerlitz parece ser um homem sem passado ou pertença – daí a ideia de uma estação, um lugar de transição perpétua, um cais onde não se cria raízes. Através do narrador, que se encontra com esta misteriosa figura em Antuérpia e Londres, vamos conhecendo melhor um homem angustiado com a sua própria memória, num dilema incessante entre a sobrevivência e o dever de preservar a sua própria história.
"Sobre la história natural de la destrucción
Editora Anagrama
(Barcelona, 2003)
Preço: 12 euros
(Fugas, 2005)
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