Jardim da Infância, Escola Meneses Vieira, Bairro do Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. Hora do recreio. Abro ansiosa a minha mochilinha de pano branco, e inocente e feliz, mostro à minha irmã um montão de brinquedinhos com que poderíamos brincar juntas em casa. Não me lembro que brinquedos eram. Deveriam ser comuns e baratos, desses que talvez hoje em dia as crianças até desprezam, tal é a abundância. Mas para uma infância quase sem nada, eram a maravilha das maravilhas.
Só me recordo dessa cena e das suas conseqüências. O resto - se consegui brincar em casa com eles ou não - se apagou. Aliás, a cena da reação da minha mãe ainda é mais viva do que a primeira. Penso até que a imagem da hora do recreio só permaneceu na memória, graças à segunda. Lembro-me da minha mãe muito aborrecida, a arrastar-me com uma mão firme (creio que me puxava a orelha) até à escola, levando na outra mão a tal mochilinha. Procurou alguém responsável (não sei se a professora ou a diretora) e disse, cheia daquela nobreza de caráter muito comum em gente humilde e de boa formação: “ó senhora professora, desculpe, eu vim aqui para devolver isto que a minha filha levou para casa. Olhe que nós somos muito pobres, mas somos muito honestos, e não queremos nada que não seja nosso!”.
Nada sei sobre a reação da professora. Penso que deve ter sido de espanto com a atitude tão determinada da minha mãe. Decerto também de profunda compreensão por uma criança tão pequena ter ficado encantada com brinquedinhos e ter desejado prolongar a brincadeira mais tarde. Não me lembro de nenhuma reprimenda por parte dela nem de nenhuma humilhação na escola por causa disso. Na verdade, naquela fase tão tenra da vida, sequer tinha a noção de “meu” e “alheio”. Não houve a mínima intenção de furto, porque sequer havia a consciência dessa noção. Havia apenas, num lugar familiar, brinquedos atraentes e olhos e mãos infantis desejosos de vê-los e tocá-los. Casa e escola mantinham uma espécie de continuidade, inclusive porque ficavam na mesma rua, e decerto pareciam-me espaços comuns, interligados.
Essa lição de honradez, apesar de duríssima, deixou bons frutos. Jamais a esqueci. Até porque minha mãe, ao longo da vida, sempre demonstrou muita coerência entre palavras e atos. Nunca transigiu em contas. Hoje em dia, em que princípios como o da honestidade cederam lugar aos do “vamos levar vantagem sobre os outros, a qualquer preço”, pode parecer até risível que alguém, por exemplo, devolva um simples carretel de linha à própria filha, acompanhado de um veemente e sincero pedido de desculpas pelo atraso: “filha, ficou sem querer na mala, é teu - não te lembras, quando fui te visitar? -, desculpa por não tê-lo devolvido há mais tempo!”
Hoje, abro a minha mochila cheia de amor e admiração e ofereço-a àquela que me deu muito mais do que um desejado montão de brinquedos. Sei bem que ela, em tempos de tanta pobreza, não os poderia oferecer. E desde então cada vez mais entendo que não poderia consentir que ficássemos com eles. Obrigada, minha mãe. Parabéns pelo seu Dia.
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