A lembrança mais antiga que tenho do Carnaval ocorreu na minha meninice, no Alto da Boa Vista. Foi uma experiência de muito medo.
Algumas imagens fortemente impressas na memória aderem a relatos familiares, dando consistência e significado ao vivido. Na mais intensa delas, encontro-me escondida debaixo da cama, firmemente agarrada a um de seus pés. Nenhuma força humana conseguiria me tirar dali. Debalde tentaram me convencer que o motivo do pavor havia desaparecido: anda, não tenhas medo, podes sair daí, o mascarado já foi embora!
O mascarado a que se referiam era um homem fantasiado de gorila. Fantasiado não: para o eu-criança, ERA um gorila de verdade, com cabeça, mãos, pés, enfim, em tudo exatamente igual a um imenso, peludo e assustador gorila.
Não me lembro da cena em que o vi, só do efeito da visão. Soube que era costume na época os mascarados baterem às portas das casas, pedindo dinheiro. Quem sabe foi assim que me deparei de repente com ele. Tampouco sei a origem de tal medo. Talvez alguém, consciente ou inconscientemente, tivesse dito algo que me deixou predisposta a temê-lo. Curiosamente, lembro-me de ver passar, sem medo algum, carnavalescos com fantasias como a da caveira, hoje com certeza bem mais aterradora para a adulta que me tornei...
Lembro-me ainda que, passado algum tempo (não sei quanto, mas não deve ter sido pouco...), alguém me apontou (de longe, é claro...), já sem a máscara no rosto e sem as luvas-patas, o tal homem-gorila a lanchar na loja onde trabalhava o meu pai. Os meus olhos diziam que sim, que de fato pareciam humanos aquela boca a mastigar os alimentos e aquelas mãos que os levavam à boca. Contudo, havia TODO o resto da fantasia a lembrar-me que o monstro ainda estava ali. E então os olhos logo traíram a antiga e tênue certeza, fazendo o coração bater acelerado. Sobretudo quando avistaram, pousadas sobre o balcão, aquelas medonhas patas simiescas, cheias de garras.
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