É o tipo de citação para ser usada em intermináveis discussões sobre a função da arte (que, a bem dizer, tem um fim em si própria):
"Não existe diplomacia económica sem diplomacia cultural. Só se investe num país que tem imagem, que tem imagens e imaginário. Ninguém investe no que não conhece, no que não existe. E os melhores fabricantes de imagem são os artistas. São eles, no contexto da globalização e da virtualização, os construtores da identidade fluida de um país."
"O território das artes", artigo de Paulo Cunha e Silva publicado no DN de hoje
Um blogue escrito por três pares de mãos separados por águas atlânticas. Uma viagem com escalas no Rio de Janeiro, em Londres e Senhora da Hora.
domingo, janeiro 25, 2004
sexta-feira, janeiro 23, 2004
Robert Capa
"A fotografia é como uma citação, uma máxima ou um provérbio. Todos nós armazenamos mentalmente centenas de fotografias, disponíveis para serem lembradas instantaneamente. Cite-se a mais famosa fotografia tirada durante a Guerra Civil de Espanha, a do soldado republicano «apanhado» pela objectiva de Robert Capa no próprio momento em que é atingido por uma bala inimiga, e possivelmente todos os que alguma vez foram capazes de trazer ao espírito a granulosa imagem a preto e branco de um homem de camisa branca com mangas arregaçadas tombando para trás em cima de uma pequena elevação, o braço direito estendido para trás enquanto a espingarda lhe escapa da mão; prestes a cair, morto, na sua própria sombra.
É uma imagem chocante, e o ponto é esse. Alistadas como parte do jornalismo, contava-se com as imagens para prender a atenção, sobressaltar, surpreender."
in "Olhando o Sofrimento dos Outros" (Gótica, 2003), de Susan Sontag
quinta-feira, janeiro 22, 2004
Regresso de Carlos Vaz Marques
Depois de ter esquecido a senha do seu blogue, e deixado milhares de leitores sedentos, Carlos Vaz Marques resolveu o assunto. Adquiriu uma nova casa, desta vez sob a chancela "blogspot". Obrigada, CVM. Eu já sentia angústia quando via aquele par de sapatos na sua antiga morada .
Ítaca feminina
A Inês tinha hoje um livro lindo nas mãos. Chama-se "Poesia" de Daniel Faria (Quasi, 2003) . Resolvi trazer um dos poemas para o cais.
"Ítaca"
O que dói
É não poder apagar a tua ausência
e repetir dia após dia os mesmos gestos
O que dói
é o teu nome que ficou como mendigo
Descoberto em cada esquina dos meus versos
O que dói
é tudo mais aquilo que desteço
Ao tecer para ti novos regressos
Gostei deste poema por vários motivos. Primeiro porque se trata de uma Ítaca feminina. Explico melhor: a terra mítica e pedregosa, nestes versos, não é aquela que Ulisses almeja saudosamente rever, mas sim o espaço onde Penélope resiste sem notícias. O ponto de vista não é daquele que parte, mas sim de quem fica. Então a poesia não está no tom épico de aventuras de mares desbravados, pelo contrário, está na dor da permanência, no compasso de espera, na repetição dos gestos, na angústia da espera. "O que dói".
Há quem diga que Ulisses fez um belíssimo negócio. Viajou loucamente, fez amor com várias mulheres e, vinte anos depois, passou por ser o bonzinho que regressava para o lado da sua amada. Não foi cobrado pelas suas traições. Enquanto isso, a Penélope ficou que nem uma idiota a recusar pretendentes e a destecer uma manta inacabável. Há quem diga.
Claro está que as aventuras também implicaram muito sofrimento e, acima de tudo, quando Ulisses chegou a Ítaca nada escondeu da mulher. Relatou desde a sua vitória aos Cícones, passando por terras férteis como Lotófagos, até aos "variados artifícios de Circe". Falou ainda da "mansão bolorenta de Hades", das vozes das sereias e da ilha de Ogígia, onde encontrou a ninfa Calipso. Ulisses relata que esta fez de tudo para que ele se tornasse seu marido, prometendo até mesmo a imortalidade, mas, como fez questão de frisar, o rei de Ítaca preferiu a finitude de uma vida ao lado de uma Penélope envelhecida. Tudo isto é muito belo e sempre que leio esta passagem fico emocionada. Mas também é verdade que Ulisses saboreia bem a bela Calipso antes de tomar a decisão. Aliás, eu acho que é justamente o facto dele preferir uma "velhice feliz" na sua saudosa Ítaca que redime as suas traições aos olhos do leitor.
"Mulher, já tivemos ambos a nossa cota de sofrimentos:
tu chorando aqui em casa por causa do meu regresso difícil;
e eu porque Zeus e os outros deuses me ataram com desgraças,
longe da terra pátria, embora a ela eu quisesse regressar."
("Odisseia" de Homero, tradução de Frederico Lourenço, Cotovia, 2003, versos 350-354 do canto XXIII)
O que Daniel Faria expõe é a Ítaca dolorosa, muito diferente de outras que já foram cantadas. Manuel Alegre, por exemplo, reitera a ideia de uma Ítaca como um porto seguro - apesar de contemporânea, lusitana e urbana -, para onde se pode sempre regressar após o contacto com o mundo exterior. Uma zona de calmaria onde há sempre alguém à espera, um corpo fiel a zelar pelo trono e pela família. Alguém que cuida de filhos, que ajuda o marido a tirar o casaco.
"Penélope ou o Terceiro Poema do Português Errante"
Todos os dias pergunto por Penélope
todos os dias procuro o seu tapete
às vezes chego cansado ao fim da tarde
com todos os regressos bloqueados
e no meio das filas de trânsito procuro
o caminho perdido para Ítaca.
E quando bato à porta molhado até aos ossos
encharcado de chuva de tédio e de desastres
eis que por vezes surges de entre os filhos e as rotinas
aquela a quem perguntei se queria vir
quando bordava um tapete e eu tinha um barco.
Então eu lembro a casa no exílio
a pequena gravura de Ítaca
o poema de Cavafy
lembro o primeiro filho as fraldas o receio
de lhe pegar no colo e dar-lhe banho.
Passaram tantas luas tantos mares
mas tu abres a porta e estás à espera
ajudas-me a despir o sobretudo
e de repente eu sei que estou de volta
como Ulisses à tão amada Ítaca.
(in "Livro do Português Errante", Publicações D. Quixote, 2001)
Confesso que estou à espera de uma Penélope que não fica à espera. Como Molly Bloom. Uma Penélope em versos que, no auge da sua juventude, desenvolve a sua sexualidade, experimenta guerreiros e súbditos interessantes. Que tece uma manta apenas para aquecer a própria alma. E, quando Ulisses voltar, que coisa linda. Ambos terão histórias para contar um para o outro, em pé de igualdade. E se amarão ainda mais talvez sobre o leito famoso feito de uma oliveira, com a certeza de que terão um tempo de felicidade um ao lado do outro.
"Ítaca"
O que dói
É não poder apagar a tua ausência
e repetir dia após dia os mesmos gestos
O que dói
é o teu nome que ficou como mendigo
Descoberto em cada esquina dos meus versos
O que dói
é tudo mais aquilo que desteço
Ao tecer para ti novos regressos
Gostei deste poema por vários motivos. Primeiro porque se trata de uma Ítaca feminina. Explico melhor: a terra mítica e pedregosa, nestes versos, não é aquela que Ulisses almeja saudosamente rever, mas sim o espaço onde Penélope resiste sem notícias. O ponto de vista não é daquele que parte, mas sim de quem fica. Então a poesia não está no tom épico de aventuras de mares desbravados, pelo contrário, está na dor da permanência, no compasso de espera, na repetição dos gestos, na angústia da espera. "O que dói".
Há quem diga que Ulisses fez um belíssimo negócio. Viajou loucamente, fez amor com várias mulheres e, vinte anos depois, passou por ser o bonzinho que regressava para o lado da sua amada. Não foi cobrado pelas suas traições. Enquanto isso, a Penélope ficou que nem uma idiota a recusar pretendentes e a destecer uma manta inacabável. Há quem diga.
Claro está que as aventuras também implicaram muito sofrimento e, acima de tudo, quando Ulisses chegou a Ítaca nada escondeu da mulher. Relatou desde a sua vitória aos Cícones, passando por terras férteis como Lotófagos, até aos "variados artifícios de Circe". Falou ainda da "mansão bolorenta de Hades", das vozes das sereias e da ilha de Ogígia, onde encontrou a ninfa Calipso. Ulisses relata que esta fez de tudo para que ele se tornasse seu marido, prometendo até mesmo a imortalidade, mas, como fez questão de frisar, o rei de Ítaca preferiu a finitude de uma vida ao lado de uma Penélope envelhecida. Tudo isto é muito belo e sempre que leio esta passagem fico emocionada. Mas também é verdade que Ulisses saboreia bem a bela Calipso antes de tomar a decisão. Aliás, eu acho que é justamente o facto dele preferir uma "velhice feliz" na sua saudosa Ítaca que redime as suas traições aos olhos do leitor.
"Mulher, já tivemos ambos a nossa cota de sofrimentos:
tu chorando aqui em casa por causa do meu regresso difícil;
e eu porque Zeus e os outros deuses me ataram com desgraças,
longe da terra pátria, embora a ela eu quisesse regressar."
("Odisseia" de Homero, tradução de Frederico Lourenço, Cotovia, 2003, versos 350-354 do canto XXIII)
O que Daniel Faria expõe é a Ítaca dolorosa, muito diferente de outras que já foram cantadas. Manuel Alegre, por exemplo, reitera a ideia de uma Ítaca como um porto seguro - apesar de contemporânea, lusitana e urbana -, para onde se pode sempre regressar após o contacto com o mundo exterior. Uma zona de calmaria onde há sempre alguém à espera, um corpo fiel a zelar pelo trono e pela família. Alguém que cuida de filhos, que ajuda o marido a tirar o casaco.
"Penélope ou o Terceiro Poema do Português Errante"
Todos os dias pergunto por Penélope
todos os dias procuro o seu tapete
às vezes chego cansado ao fim da tarde
com todos os regressos bloqueados
e no meio das filas de trânsito procuro
o caminho perdido para Ítaca.
E quando bato à porta molhado até aos ossos
encharcado de chuva de tédio e de desastres
eis que por vezes surges de entre os filhos e as rotinas
aquela a quem perguntei se queria vir
quando bordava um tapete e eu tinha um barco.
Então eu lembro a casa no exílio
a pequena gravura de Ítaca
o poema de Cavafy
lembro o primeiro filho as fraldas o receio
de lhe pegar no colo e dar-lhe banho.
Passaram tantas luas tantos mares
mas tu abres a porta e estás à espera
ajudas-me a despir o sobretudo
e de repente eu sei que estou de volta
como Ulisses à tão amada Ítaca.
(in "Livro do Português Errante", Publicações D. Quixote, 2001)
Confesso que estou à espera de uma Penélope que não fica à espera. Como Molly Bloom. Uma Penélope em versos que, no auge da sua juventude, desenvolve a sua sexualidade, experimenta guerreiros e súbditos interessantes. Que tece uma manta apenas para aquecer a própria alma. E, quando Ulisses voltar, que coisa linda. Ambos terão histórias para contar um para o outro, em pé de igualdade. E se amarão ainda mais talvez sobre o leito famoso feito de uma oliveira, com a certeza de que terão um tempo de felicidade um ao lado do outro.
quarta-feira, janeiro 21, 2004
Mia Couto
"Não é da luz do sol que carecemos. Milenarmente a grande estrela que iluminou a terra e, afinal, nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto sob outra luz: a luz do luar, essa claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o lado feminino dos seres. Só a lua revela a intimidade da nossa morada terrestre.
Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra."
Esta passagem serve de epígrafe ao livro “Contos do Nascer da Terra”, de Mia Couto, que me chegou hoje pelo correio. É por estas pequenas surpresas que adoro o a partilha de livros .
Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra."
Esta passagem serve de epígrafe ao livro “Contos do Nascer da Terra”, de Mia Couto, que me chegou hoje pelo correio. É por estas pequenas surpresas que adoro o a partilha de livros .
segunda-feira, janeiro 12, 2004
Coisas doces na blogosfera
O Jorge diz que é mestre em crepes de chocolate. A Alexandra confessa que adora quando alguém senta ao seu lado com um livro (o que está a ler? Por que escolheu esta obra?). O Projecto fala-nos do trabalho apreciável dos arquitectos que encontram soluções para crises humanitárias. O Pipo vê o amanhecer do Porto e diz que avança “devagar como se caminhasse para onde os deuses me esperam”, ao passo que ao Marmelo apetece-lhe pegar bocados de névoa com as próprias mãos.
Mais comunidades de leitores
A exemplo da Comunidade de Leitores que já existe na Biblioteca Almeida Garrett, criada no Porto por Manuel Pina, Maria João Seixas vai orientar um grupo de bibliófilos na Fundação de Serralves. A iniciativa arranca no dia 29 de Janeiro e será composta por seis sessões. Quem quiser participar já pode começar algum dos livros abaixo:
"Antígona", de Sófocles (29 de Janeiro)
"Cartas de uma Religiosa Portuguesa" (12 de Fevereiro)
"No Reino da Dinamarca", de Alexandre O'Neill (26 de Fevereiro)
"A Hora da Estrela", de Clarisse Lispector (11 de Março)
"Desconhecido nesta Morada", de Katharine Kressmann Taylor (25 de Março)
"O Leitor", de Bernard Schlink (8 de Abril)
O Público também avisa que em Lisboa, “a Culturgest dá continuidade ao ciclo "Os Livros em Volta", com a sétima edição a arrancar no próximo dia 20 e a prolongar-se até 16 de Março. Iniciativa conjunta com o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, este programa de debates quer igualmente pôr em diálogo escritores e leitores, a partir do destaque de uma obra de uma editora menos conhecida e de livros de diversos géneros e áreas, das artes à história, das ciências sociais à ficção, da poesia ao ensaio. A sessão do dia 20 será dedicada à ficção portuguesa e terá como moderador o crítico literário Pedro Mexia. Segue-se, dia 27, a ficção estrangeira, com Mário Jorge Torres; dia 3 de Fevereiro, as artes, com António Pinto Ribeiro; dia 10, a poesia, com Fernando Pinto do Amaral; e dia 17, a literatura infanto-juvenil, com Alice Vieira. Em Março, os temas serão o ensaio (dia 2, com Eduardo Prado Coelho), a ciência (dia 9, com José Mariano Gago) e, a finalizar o ciclo, a história e as ciências sociais (dia 16, com António Costa Pinto)”.
"Antígona", de Sófocles (29 de Janeiro)
"Cartas de uma Religiosa Portuguesa" (12 de Fevereiro)
"No Reino da Dinamarca", de Alexandre O'Neill (26 de Fevereiro)
"A Hora da Estrela", de Clarisse Lispector (11 de Março)
"Desconhecido nesta Morada", de Katharine Kressmann Taylor (25 de Março)
"O Leitor", de Bernard Schlink (8 de Abril)
O Público também avisa que em Lisboa, “a Culturgest dá continuidade ao ciclo "Os Livros em Volta", com a sétima edição a arrancar no próximo dia 20 e a prolongar-se até 16 de Março. Iniciativa conjunta com o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, este programa de debates quer igualmente pôr em diálogo escritores e leitores, a partir do destaque de uma obra de uma editora menos conhecida e de livros de diversos géneros e áreas, das artes à história, das ciências sociais à ficção, da poesia ao ensaio. A sessão do dia 20 será dedicada à ficção portuguesa e terá como moderador o crítico literário Pedro Mexia. Segue-se, dia 27, a ficção estrangeira, com Mário Jorge Torres; dia 3 de Fevereiro, as artes, com António Pinto Ribeiro; dia 10, a poesia, com Fernando Pinto do Amaral; e dia 17, a literatura infanto-juvenil, com Alice Vieira. Em Março, os temas serão o ensaio (dia 2, com Eduardo Prado Coelho), a ciência (dia 9, com José Mariano Gago) e, a finalizar o ciclo, a história e as ciências sociais (dia 16, com António Costa Pinto)”.
sábado, janeiro 10, 2004
Imensidão gelada
Foto de Mario Chainho
"Viagem"
Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura
O que importa é partir, não é chegar.
Miguel Torga
sexta-feira, janeiro 09, 2004
Estrangeiros & Imigrantes
Pegando carona (ou boleia) na discussão "estrangeiros & imigrantes" levantada no querido Aviz , transcrevo aqui uma mensagem enviada pelo Nuno . Espero que ele não se importe.
"Portugal sempre foi um País de emigrantes.
Ainda não há muito tempo, uma parte significativa do nosso PIB resultava das remessas desses mesmos emigrantes.
Com a adesão à U.E., o nosso nível de vida melhorou significativamente, tornando menor esse fluxo emigracional.
Em compensação, com a globalização crescente da economia e a queda do Muro de Berlim, passou a dominar um fenómeno oposto o da imigração, que aos africanos do pós-25 de Abril somava agora brasileiros e cidadãos de várias nacionalidades do Leste Europeu.
De uma forma geral, cidadãos que procuram em Portugal o que os nossos pais e avós procuraram em França, Alemanha, EUA, Canadá, entre outros, uma vida melhor para si e para os seus.
De acordo com os números oficiais, existirão em Portugal cerca de meio milhão de estrangeiros, sendo a comunidade brasileira aquela que maior peso tem.
São cidadãos que, na sua imensa maioria, executam em Portugal trabalhos pesados e mal remunerados que, de uma forma geral, os portugueses não querem desempenhar, como trabalhos de construção civil, restauração, engomadoria e outros do género.
Com o surto de desemprego que se abateu sobre o país, rapidamente começaram a surgir as notícias sobre as máfias de Leste, os problemas com negros nos bairros periféricos e degradados das grandes cidades, nomeadamente Lisboa (curiosamente na sua maioria estes problemas surgem com negros 100% portugueses, normalmente 2ªs e 3ªs gerações revoltadas com as condições de vida que têm) e as histórias de vigarices com brasileiros.
E rapidamente os estrangeiros que fazem o trabalho que não queremos fazer passam a ser os odiados. Tendo em conta a recente sondagem do Público, que diz que 75% dos portugueses não querem mais emigrantes, que ciclicamente existem problemas com as comunidades ciganas e o fait-divers que foi a discussão sobre a eliminação de todos os negros no programa Ídolos, ficando para o final os concorrentes brancos, por votação directa dos espectadores, a questão que se põe a debate é:
Somos um povo xenófobo?
Infelizmente, cada vez estou mais convencido que sim..."
Aproveito a oportunidade para listar três casos de preconceito com brasileiros:
1) O músico Léo veio a Portugal, no final de Dezembro de 2003, para tocar no Algarve com Carlinhos Brown durante a passagem de ano. Foi até ao Algarve Shopping comprar um par de sapatilhas e diz ter sido perseguido por um segurança do equipamento ao longo de toda a sua visita. Contou que esta será uma má recordação que levará de Portugal. E sabe que isto só aconteceu porque é negro, brasileiro. Não estava de fato, mas sim com calças de ganga largas e um gorro no melhor estilo rastafari. Diz ter até comprado as sapatilhas, na esperança de que a atitude mostrasse de alguma forma ao segurança que não era necessário segui-lo, que ele era de facto um consumidor com poder de compra.
2) Um grupo de brasileiros que veio a Portugal participar num congresso literário, em 2003, teve as suas malas reviradas de forma agressiva no Aeroporto de Lisboa. Uma das mulheres do grupo disse que foi tratada com algum desrespeito e até um jeito sonso. É tempo de cantar a canção de Maria Rita - que, aliás, nos deu ontem um show (concerto) memorável -, aquela que diz que "nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda".
3) O funcionário que me atendeu na Fnac do GaiaShopping, em Novembro de 2003, quando eu estava a pedir o meu cartão de aderente, não soube interpretar as informações contidas no meio bilhete de identidade. Confundiu "naturalidade" com "nacionalidade" e pensou que eu incorria no terrível erro, no equívoco geográfico que é ser brasileira. Ficou incomodado, ligou para Lisboa, chamou um superior hierárquico. Perguntou se eu não tinha um telefone fixo, se só tinha mesmo o telemóvel. O constrangimento durou cerca de dez minutos, até que o seu chefe chegou à nossa mesa, sobre a qual estavam todos os documentos exigidos para se ter um cartão de aderente, e afirmou com algum alívio: "Ah, ela não é brasileira! Ela só nasceu no Brasil, mas é portuguesa!"
"Portugal sempre foi um País de emigrantes.
Ainda não há muito tempo, uma parte significativa do nosso PIB resultava das remessas desses mesmos emigrantes.
Com a adesão à U.E., o nosso nível de vida melhorou significativamente, tornando menor esse fluxo emigracional.
Em compensação, com a globalização crescente da economia e a queda do Muro de Berlim, passou a dominar um fenómeno oposto o da imigração, que aos africanos do pós-25 de Abril somava agora brasileiros e cidadãos de várias nacionalidades do Leste Europeu.
De uma forma geral, cidadãos que procuram em Portugal o que os nossos pais e avós procuraram em França, Alemanha, EUA, Canadá, entre outros, uma vida melhor para si e para os seus.
De acordo com os números oficiais, existirão em Portugal cerca de meio milhão de estrangeiros, sendo a comunidade brasileira aquela que maior peso tem.
São cidadãos que, na sua imensa maioria, executam em Portugal trabalhos pesados e mal remunerados que, de uma forma geral, os portugueses não querem desempenhar, como trabalhos de construção civil, restauração, engomadoria e outros do género.
Com o surto de desemprego que se abateu sobre o país, rapidamente começaram a surgir as notícias sobre as máfias de Leste, os problemas com negros nos bairros periféricos e degradados das grandes cidades, nomeadamente Lisboa (curiosamente na sua maioria estes problemas surgem com negros 100% portugueses, normalmente 2ªs e 3ªs gerações revoltadas com as condições de vida que têm) e as histórias de vigarices com brasileiros.
E rapidamente os estrangeiros que fazem o trabalho que não queremos fazer passam a ser os odiados. Tendo em conta a recente sondagem do Público, que diz que 75% dos portugueses não querem mais emigrantes, que ciclicamente existem problemas com as comunidades ciganas e o fait-divers que foi a discussão sobre a eliminação de todos os negros no programa Ídolos, ficando para o final os concorrentes brancos, por votação directa dos espectadores, a questão que se põe a debate é:
Somos um povo xenófobo?
Infelizmente, cada vez estou mais convencido que sim..."
Aproveito a oportunidade para listar três casos de preconceito com brasileiros:
1) O músico Léo veio a Portugal, no final de Dezembro de 2003, para tocar no Algarve com Carlinhos Brown durante a passagem de ano. Foi até ao Algarve Shopping comprar um par de sapatilhas e diz ter sido perseguido por um segurança do equipamento ao longo de toda a sua visita. Contou que esta será uma má recordação que levará de Portugal. E sabe que isto só aconteceu porque é negro, brasileiro. Não estava de fato, mas sim com calças de ganga largas e um gorro no melhor estilo rastafari. Diz ter até comprado as sapatilhas, na esperança de que a atitude mostrasse de alguma forma ao segurança que não era necessário segui-lo, que ele era de facto um consumidor com poder de compra.
2) Um grupo de brasileiros que veio a Portugal participar num congresso literário, em 2003, teve as suas malas reviradas de forma agressiva no Aeroporto de Lisboa. Uma das mulheres do grupo disse que foi tratada com algum desrespeito e até um jeito sonso. É tempo de cantar a canção de Maria Rita - que, aliás, nos deu ontem um show (concerto) memorável -, aquela que diz que "nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda".
3) O funcionário que me atendeu na Fnac do GaiaShopping, em Novembro de 2003, quando eu estava a pedir o meu cartão de aderente, não soube interpretar as informações contidas no meio bilhete de identidade. Confundiu "naturalidade" com "nacionalidade" e pensou que eu incorria no terrível erro, no equívoco geográfico que é ser brasileira. Ficou incomodado, ligou para Lisboa, chamou um superior hierárquico. Perguntou se eu não tinha um telefone fixo, se só tinha mesmo o telemóvel. O constrangimento durou cerca de dez minutos, até que o seu chefe chegou à nossa mesa, sobre a qual estavam todos os documentos exigidos para se ter um cartão de aderente, e afirmou com algum alívio: "Ah, ela não é brasileira! Ela só nasceu no Brasil, mas é portuguesa!"
Guerras homéricas 2
"A convicção de que a guerra é uma aberração, ainda que não seja possível detê-la, é fulcral nas espectativas modernas e é um sentimento ético moderno. De que a norma é a paz, ainda que inatingível. Isto, obviamente, não é a maneira como ao longo da história se tem visto a guerra. A guerra tem sido a norma e a paz excepção.
A descrição exacta da maneira como os corpos são feridos e mortos em combate é um clímax recorrente nas histórias narradas na "Ilíada". A guerra é vista como algo que os homens fazem, inveteradamente, sem se demoverem pela acumulação de sofrimento que ela inflinge; e descrever a guerra em palavras ou em imagens exige profundo e inflexível distanciamento."
Esta passagem foi retirada do livro "Olhando o Sofrimento dos Outros", de Susan Sontag, recentemente publicado pela editora Gótica. A obra reúne um conjunto de textos da autora, todos eles reflectindo sobre a iconografia da dor provocada pela guerra. Um livro obrigatório.
A descrição exacta da maneira como os corpos são feridos e mortos em combate é um clímax recorrente nas histórias narradas na "Ilíada". A guerra é vista como algo que os homens fazem, inveteradamente, sem se demoverem pela acumulação de sofrimento que ela inflinge; e descrever a guerra em palavras ou em imagens exige profundo e inflexível distanciamento."
Esta passagem foi retirada do livro "Olhando o Sofrimento dos Outros", de Susan Sontag, recentemente publicado pela editora Gótica. A obra reúne um conjunto de textos da autora, todos eles reflectindo sobre a iconografia da dor provocada pela guerra. Um livro obrigatório.
Guerras homéricas
Leio num jornal antigo - adoro ler edições velhas, de semanas anteriores - que dois soldados norte-americanos foram ontem mortos a tiros em Mossul, Norte do Iraque. Nada de novo se não lêssemos em seguida, nesta edição do Publico de 24 de Novembro de 2003, que testemunhas oculares relataram o ultraje dos cadáveres por "uma multidão de adolescentes", que durante vários minutos atiraram blocos de cimento para cima dos defuntos. Depois, os corpos dos dois soldados foram arrastados pelo solo.
Sei que a crueldade habita dos dois lados desta linha bélica. Mas não consigo deixar de pensar no Heitor da "Ilíada" de Homera enquanto leio esta notícia, porque também o guerreiro troiano ultrajado pelos gregos após a sua morte. O grande Aquiles estava magoado pelo anterior assassinato do seu grande amigo, o guerreiro Pátroclo, que não resistiu ao combate com os troianos. O ódio mútuo, há três mil anos, provocou a mesma atrocidade simbólica de destruir o corpo inerte de um rival. Assim foi nos nove anos de guerra entre gregos e troianos, assim foi na guerra do Iraque, assim será enquanto houver mais de um homem na Terra a se considerar diferente do outro.
"O Pelida [Aquiles], no entanto, chorava / o companheiro dileto, a virar-se de um lado para o outro, / sem pelo sono, a que todos domina, sentir-se vencido. / Lembra-lhe a força de Pátroclo, a indigente e provada coragem, / bem como os trabalhos que juntos haviam sofrido / nas cruas guerras dos homens e, assim, sobre as ondas revoltas, / Essas visões o levavam o pranto a verter amaríssimo [...] / Por fim, levantando-se, / anda ao comprido na praia do mar. Porém logo que a Aurora / via raiar, reflectindo-se na água e na areia nitente, / ao jugo atava os cavalos velozes, de origem divina, / atrás do carro o cadáver de Heitor amarrando. / E, após o corpo arrastar por três vezes à volta do túmulo / do ínclito Pátroclo, à tenda voltava a acolher-se, deixando-o / na branca areia, de bruços."
(Trecho retirado da edição brasileira da Ilíada, traduzida em versos por Carlos Alberto Nunes e publicada pela Ediouro em 2001)
As diferenças, obviamente, são muitas. Uma está no facto de, no poema homérico, a ira de Aquiles estar personificada pela figura de Pátroclo - ao contrário do ódio entre iraquianos e norte-americanos, suportado por razões circunstanciais que todos conhecemos. Contudo, não podemos nos esquecer que cada mágoa iraquiana está igualmente associada à perda sucessiva de pessoas próximas. Sob ambas as guerras paira um conflito lato que tem sempre dimensões particulares a cada esquina em ruínas. Mas esta porção particular do universal não vem na notícia.
Sei que a crueldade habita dos dois lados desta linha bélica. Mas não consigo deixar de pensar no Heitor da "Ilíada" de Homera enquanto leio esta notícia, porque também o guerreiro troiano ultrajado pelos gregos após a sua morte. O grande Aquiles estava magoado pelo anterior assassinato do seu grande amigo, o guerreiro Pátroclo, que não resistiu ao combate com os troianos. O ódio mútuo, há três mil anos, provocou a mesma atrocidade simbólica de destruir o corpo inerte de um rival. Assim foi nos nove anos de guerra entre gregos e troianos, assim foi na guerra do Iraque, assim será enquanto houver mais de um homem na Terra a se considerar diferente do outro.
"O Pelida [Aquiles], no entanto, chorava / o companheiro dileto, a virar-se de um lado para o outro, / sem pelo sono, a que todos domina, sentir-se vencido. / Lembra-lhe a força de Pátroclo, a indigente e provada coragem, / bem como os trabalhos que juntos haviam sofrido / nas cruas guerras dos homens e, assim, sobre as ondas revoltas, / Essas visões o levavam o pranto a verter amaríssimo [...] / Por fim, levantando-se, / anda ao comprido na praia do mar. Porém logo que a Aurora / via raiar, reflectindo-se na água e na areia nitente, / ao jugo atava os cavalos velozes, de origem divina, / atrás do carro o cadáver de Heitor amarrando. / E, após o corpo arrastar por três vezes à volta do túmulo / do ínclito Pátroclo, à tenda voltava a acolher-se, deixando-o / na branca areia, de bruços."
(Trecho retirado da edição brasileira da Ilíada, traduzida em versos por Carlos Alberto Nunes e publicada pela Ediouro em 2001)
As diferenças, obviamente, são muitas. Uma está no facto de, no poema homérico, a ira de Aquiles estar personificada pela figura de Pátroclo - ao contrário do ódio entre iraquianos e norte-americanos, suportado por razões circunstanciais que todos conhecemos. Contudo, não podemos nos esquecer que cada mágoa iraquiana está igualmente associada à perda sucessiva de pessoas próximas. Sob ambas as guerras paira um conflito lato que tem sempre dimensões particulares a cada esquina em ruínas. Mas esta porção particular do universal não vem na notícia.
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