Um blogue escrito por três pares de mãos separados por águas atlânticas. Uma viagem com escalas no Rio de Janeiro, em Londres e Senhora da Hora.
quinta-feira, maio 24, 2007
Pântanos
"Morvan Tree talk", de Luc de Smet, França, 2007
"No Verão de 1863, Apollo Korzeniowski escreve a um primo que Vologda é um buraco pantanoso em que ruas e caminhos são feioz com troncos de árvores caídos. As casas, e também os palácios da fidalguia provincial são feitos de madeira pintada com cores, assenta em estacas enterradas no pântano. Tudo em redor se alaga, aprodrece e s corrompe. Só há duas estações do ano, o Inverno verde e o Inverno branco. Durante nove meses, desce um ar gelado do Mar do Norte. O termómetro desce a temperaturas tão baixas que nem se imaginam. Tudo em redor são revas sem fim. Durante o Inverno verde chove ininterruptamente. A lama entra por baixo das portas. A rigidez cadavérica transforma-se num marasmo atroz. No Inverno branco tudo está morto, no Inverno verde tudo está a morrer."
Os Anéis de Saturno, de W.G. Sebald (p.105)
segunda-feira, maio 21, 2007
Envelhecer juntos, por muito amor
Há versos e frases que, muito depois de fechado o livro, ficam repercutindo em nós. "Não envelheceremos juntos", transbordamento de dor de Paul Éluard, diante da perda repentina da sua amada, é um desses versos que me pungem.
Penso, comovida, na dádiva do tempo que eu e o meu companheiro recebemos. Foi-nos concedido o tempo de uma longa e intensa convivência, quase sempre com grande cumplicidade.
Os filhos vieram, cresceram e já partiram, tão depressa que quase não nos apercebemos (pareceu-nos que num "piscar de olhos", como é costume suceder a todos os pais).
Perdemos alguns dentes, ganhamos rugas e cabelos brancos.
Alguns projetos se desfizeram, outros novos surgiram.
Mudamos de casa algumas vezes.
A maior parte das prendas de casamento já não existem, quebradas, dadas ou desgastadas pelo uso e o passar dos anos.
Não temos mais as alianças originais: há muito foram roubadas e perdidas. Acordamos tacitamente que não vale a pena adquirir outras novas para expô-las à cobiça dos ladrões.
Mas a nossa relação persiste. Apesar de alguns baixos e graças a muitos altos. Ou, lembrando Clarice Lispector, talvez muitas vezes tenha sido o "apesar de", tanto ou mais que o "graças a", que nos impulsionou. Sons e silêncios, ruídos e melodias, graves a agudos são igualmente necessários ao grande concerto da vida.
Permanecemos. Não por inércia ou acomodação. Mas pela qualidade das mudanças. Por uma espécie de sabedoria do amor, capaz de conciliar mudança e permanência. Por um saber-sentimento que intui e acolhe a necessidade das mudanças - a própria e a do ser amado -, sem contudo desvirtuar a qualidade do afeto.
Rara e bela é a arte de amar, ao mesmo tempo fácil e difícil. Arte-saber que não pré-existe à relação, constituindo-se no seu exercício, codidianamente. Amar na afirmação do amor do mútuo (Maria Gabriela Llansol), por respeito mútuo. Respeito, no seu sentido fundamental, conforme lição da saudosa Francisca Nóbrega: ação de voltar (re) o olhar (spect) para.
Amar assim talvez seja uma das mais belas afirmações do princípio "ama ao próximo como a ti mesmo", por vezes tão mal compreeendido. Um amar que pressupõe amar-se e amar o outro, tanto quanto. Verbo-ação com pré-requisitos e bitransitividade. Amar-te-me.
Penso, comovida, na dádiva do tempo que eu e o meu companheiro recebemos. Foi-nos concedido o tempo de uma longa e intensa convivência, quase sempre com grande cumplicidade.
Os filhos vieram, cresceram e já partiram, tão depressa que quase não nos apercebemos (pareceu-nos que num "piscar de olhos", como é costume suceder a todos os pais).
Perdemos alguns dentes, ganhamos rugas e cabelos brancos.
Alguns projetos se desfizeram, outros novos surgiram.
Mudamos de casa algumas vezes.
A maior parte das prendas de casamento já não existem, quebradas, dadas ou desgastadas pelo uso e o passar dos anos.
Não temos mais as alianças originais: há muito foram roubadas e perdidas. Acordamos tacitamente que não vale a pena adquirir outras novas para expô-las à cobiça dos ladrões.
Mas a nossa relação persiste. Apesar de alguns baixos e graças a muitos altos. Ou, lembrando Clarice Lispector, talvez muitas vezes tenha sido o "apesar de", tanto ou mais que o "graças a", que nos impulsionou. Sons e silêncios, ruídos e melodias, graves a agudos são igualmente necessários ao grande concerto da vida.
Permanecemos. Não por inércia ou acomodação. Mas pela qualidade das mudanças. Por uma espécie de sabedoria do amor, capaz de conciliar mudança e permanência. Por um saber-sentimento que intui e acolhe a necessidade das mudanças - a própria e a do ser amado -, sem contudo desvirtuar a qualidade do afeto.
Rara e bela é a arte de amar, ao mesmo tempo fácil e difícil. Arte-saber que não pré-existe à relação, constituindo-se no seu exercício, codidianamente. Amar na afirmação do amor do mútuo (Maria Gabriela Llansol), por respeito mútuo. Respeito, no seu sentido fundamental, conforme lição da saudosa Francisca Nóbrega: ação de voltar (re) o olhar (spect) para.
Amar assim talvez seja uma das mais belas afirmações do princípio "ama ao próximo como a ti mesmo", por vezes tão mal compreeendido. Um amar que pressupõe amar-se e amar o outro, tanto quanto. Verbo-ação com pré-requisitos e bitransitividade. Amar-te-me.
terça-feira, maio 15, 2007
Os anjos e as nuvens
Foto de Paulo Pimenta / PÚBLICO
“Quando eu era criança gostava muito de olhar as nuvens. Havia umas redondinhas muito luminosas que se amontoavam por vastas áreas do azul do céu que os meus olhos percorriam encantados. Uma vez perguntei: o que é aquilo? São anjinhos, responderam-me. E eu acreditei porque era verdade.”
“Tisana 349”, Ana Hatherly
domingo, maio 13, 2007
Primavera para as mães
Hoje é Dia das Mães no Brasil. Nas ruas e esquinas, uma Primavera fora de época. Ambulantes vendem flores em quiosques e bancas improvisadas na calçada. E nas imediações dos cemitérios, uma infinidade de barracas, talvez em maior número do que na época de Finados, oferecem flores aos visitantes saudosos. Ontem, o vigia do meu prédio saudou-me simpaticamente, parabenizando-me pelo Dia das Mães. E o anônimo trocador do ônibus, também imaginando que sou mãe, respeitosamente homenageou-me, ao entregar o troco. Agradeci a ambos, comovida. Gestos como esses conseguem ir além dos interesses puramente comerciais que criam e exploram certos “Dias”.
Numa época em que quase não há mais valores, “mãe” é um valor que ainda resiste, como mostrou o documentário Falcão: meninos do tráfico, de MV Bill. Num ambiente profundamente corrompido e degradado, em que praticamente inexiste a figura do pai e em que as crianças raramente chegam à vida adulta, “mãe” é palavra que carrega sozinha toda a esperança e poder de transformação.
Li, não sei aonde, que se para quem perde o pai ou a mãe há a palavra órfão, não há nenhuma palavra que possa designar a situação e o sentimento de quem perdeu um filho. Dor inominável. Stabat Mater dolorosa (estava a Mãe dolorosa...), como lembra o sofrimento de Maria, diante da crucificação de seu filho Jesus... Mães pobres e ricas, mães de santos e bandidos, mães alegres e tristes, mães de sangue e do coração, todas se igualam no amor por seus filhos. Nenhuma mãe gera filhos para vê-los mortos nas guerras e batalhas da vida. Nenhuma mãe quer ver o filho morto, ainda mais precocemente, sem nenhuma chance de “chegar lá”, como cantou Chico Buarque em “O meu guri”. Porque todos os filhos são “eternos infantes”, “menino[s] de sua mãe” (Fernando Pessoa).
Numa época em que quase não há mais valores, “mãe” é um valor que ainda resiste, como mostrou o documentário Falcão: meninos do tráfico, de MV Bill. Num ambiente profundamente corrompido e degradado, em que praticamente inexiste a figura do pai e em que as crianças raramente chegam à vida adulta, “mãe” é palavra que carrega sozinha toda a esperança e poder de transformação.
Li, não sei aonde, que se para quem perde o pai ou a mãe há a palavra órfão, não há nenhuma palavra que possa designar a situação e o sentimento de quem perdeu um filho. Dor inominável. Stabat Mater dolorosa (estava a Mãe dolorosa...), como lembra o sofrimento de Maria, diante da crucificação de seu filho Jesus... Mães pobres e ricas, mães de santos e bandidos, mães alegres e tristes, mães de sangue e do coração, todas se igualam no amor por seus filhos. Nenhuma mãe gera filhos para vê-los mortos nas guerras e batalhas da vida. Nenhuma mãe quer ver o filho morto, ainda mais precocemente, sem nenhuma chance de “chegar lá”, como cantou Chico Buarque em “O meu guri”. Porque todos os filhos são “eternos infantes”, “menino[s] de sua mãe” (Fernando Pessoa).
sábado, maio 05, 2007
Uma lição materna II
Jardim da Infância, Escola Meneses Vieira, Bairro do Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. Hora do recreio. Abro ansiosa a minha mochilinha de pano branco, e inocente e feliz, mostro à minha irmã um montão de brinquedinhos com que poderíamos brincar juntas em casa. Não me lembro que brinquedos eram. Deveriam ser comuns e baratos, desses que talvez hoje em dia as crianças até desprezam, tal é a abundância. Mas para uma infância quase sem nada, eram a maravilha das maravilhas.
Só me recordo dessa cena e das suas conseqüências. O resto - se consegui brincar em casa com eles ou não - se apagou. Aliás, a cena da reação da minha mãe ainda é mais viva do que a primeira. Penso até que a imagem da hora do recreio só permaneceu na memória, graças à segunda. Lembro-me da minha mãe muito aborrecida, a arrastar-me com uma mão firme (creio que me puxava a orelha) até à escola, levando na outra mão a tal mochilinha. Procurou alguém responsável (não sei se a professora ou a diretora) e disse, cheia daquela nobreza de caráter muito comum em gente humilde e de boa formação: “ó senhora professora, desculpe, eu vim aqui para devolver isto que a minha filha levou para casa. Olhe que nós somos muito pobres, mas somos muito honestos, e não queremos nada que não seja nosso!”.
Nada sei sobre a reação da professora. Penso que deve ter sido de espanto com a atitude tão determinada da minha mãe. Decerto também de profunda compreensão por uma criança tão pequena ter ficado encantada com brinquedinhos e ter desejado prolongar a brincadeira mais tarde. Não me lembro de nenhuma reprimenda por parte dela nem de nenhuma humilhação na escola por causa disso. Na verdade, naquela fase tão tenra da vida, sequer tinha a noção de “meu” e “alheio”. Não houve a mínima intenção de furto, porque sequer havia a consciência dessa noção. Havia apenas, num lugar familiar, brinquedos atraentes e olhos e mãos infantis desejosos de vê-los e tocá-los. Casa e escola mantinham uma espécie de continuidade, inclusive porque ficavam na mesma rua, e decerto pareciam-me espaços comuns, interligados.
Essa lição de honradez, apesar de duríssima, deixou bons frutos. Jamais a esqueci. Até porque minha mãe, ao longo da vida, sempre demonstrou muita coerência entre palavras e atos. Nunca transigiu em contas. Hoje em dia, em que princípios como o da honestidade cederam lugar aos do “vamos levar vantagem sobre os outros, a qualquer preço”, pode parecer até risível que alguém, por exemplo, devolva um simples carretel de linha à própria filha, acompanhado de um veemente e sincero pedido de desculpas pelo atraso: “filha, ficou sem querer na mala, é teu - não te lembras, quando fui te visitar? -, desculpa por não tê-lo devolvido há mais tempo!”
Hoje, abro a minha mochila cheia de amor e admiração e ofereço-a àquela que me deu muito mais do que um desejado montão de brinquedos. Sei bem que ela, em tempos de tanta pobreza, não os poderia oferecer. E desde então cada vez mais entendo que não poderia consentir que ficássemos com eles. Obrigada, minha mãe. Parabéns pelo seu Dia.
Só me recordo dessa cena e das suas conseqüências. O resto - se consegui brincar em casa com eles ou não - se apagou. Aliás, a cena da reação da minha mãe ainda é mais viva do que a primeira. Penso até que a imagem da hora do recreio só permaneceu na memória, graças à segunda. Lembro-me da minha mãe muito aborrecida, a arrastar-me com uma mão firme (creio que me puxava a orelha) até à escola, levando na outra mão a tal mochilinha. Procurou alguém responsável (não sei se a professora ou a diretora) e disse, cheia daquela nobreza de caráter muito comum em gente humilde e de boa formação: “ó senhora professora, desculpe, eu vim aqui para devolver isto que a minha filha levou para casa. Olhe que nós somos muito pobres, mas somos muito honestos, e não queremos nada que não seja nosso!”.
Nada sei sobre a reação da professora. Penso que deve ter sido de espanto com a atitude tão determinada da minha mãe. Decerto também de profunda compreensão por uma criança tão pequena ter ficado encantada com brinquedinhos e ter desejado prolongar a brincadeira mais tarde. Não me lembro de nenhuma reprimenda por parte dela nem de nenhuma humilhação na escola por causa disso. Na verdade, naquela fase tão tenra da vida, sequer tinha a noção de “meu” e “alheio”. Não houve a mínima intenção de furto, porque sequer havia a consciência dessa noção. Havia apenas, num lugar familiar, brinquedos atraentes e olhos e mãos infantis desejosos de vê-los e tocá-los. Casa e escola mantinham uma espécie de continuidade, inclusive porque ficavam na mesma rua, e decerto pareciam-me espaços comuns, interligados.
Essa lição de honradez, apesar de duríssima, deixou bons frutos. Jamais a esqueci. Até porque minha mãe, ao longo da vida, sempre demonstrou muita coerência entre palavras e atos. Nunca transigiu em contas. Hoje em dia, em que princípios como o da honestidade cederam lugar aos do “vamos levar vantagem sobre os outros, a qualquer preço”, pode parecer até risível que alguém, por exemplo, devolva um simples carretel de linha à própria filha, acompanhado de um veemente e sincero pedido de desculpas pelo atraso: “filha, ficou sem querer na mala, é teu - não te lembras, quando fui te visitar? -, desculpa por não tê-lo devolvido há mais tempo!”
Hoje, abro a minha mochila cheia de amor e admiração e ofereço-a àquela que me deu muito mais do que um desejado montão de brinquedos. Sei bem que ela, em tempos de tanta pobreza, não os poderia oferecer. E desde então cada vez mais entendo que não poderia consentir que ficássemos com eles. Obrigada, minha mãe. Parabéns pelo seu Dia.
sexta-feira, maio 04, 2007
Uma lição materna I
Chamava-se Maria Joaquina, apelido Mariquinhas da Vessada. Era uma mulher de compleição física rija e de forte personalidade, uma típica figura daquelas antigas matriarcas, que dirigiam com mão firme os rumos e as finanças da família. Não por tirania ou autoritarismo, mas porque era preciso. Decerto cumprindo determinadas funções e papéis que, no acordo tácito que costuma haver entre os cônjuges, por exigências do feitio, temperamento ou outra razão, lhe coube desempenhar.
Conheci-a em 1962, quando meu pai decidiu que passaríamos uma longa temporada em Portugal, fazendo com que eu e a minha irmã perdêssemos o ano letivo, para espanto geral dos professores, que não entendiam o porquê dessa interrupção, sobretudo tendo em conta que éramos alunas muito estudiosas. Creio que a justificativa dele era a de que, se tentasse conciliar o período das férias escolares com a viagem, nunca poderia passar na terra natal o seu aniversário nem a Páscoa. Não me lembro qual foi a nossa reação na época, mas deve ter sido a de acatar, sem discussão, as decisões paternas. Era esse o modelo familiar vigente: subserviência da esposa, obediência total dos filhos, sem direito a nenhum “mas”. Só recordo que, no regresso ao Brasil, enfrentamos com desconforto e até com uma certa humilhação a situação de estar um ano atrás dos antigos colegas de turma. Hoje, apesar de reconhecer que foi uma opção questionável em relação ao interesse escolar dos filhos, penso que nosso pai nos proporcionou uma oportunidade maravilhosa (e que se revelaria única) de conhecermos os avós paternos e maternos. Perdemos um ano no colégio, mas ganhamos algo bem mais precioso em termos de convívio humano. Feitas as contas, o saldo foi extremamente positivo.
Chegar à casa da avó Joaquina deve ter sido uma longa aventura. Guardo na memória algumas imagens daquela noite: andamos com malas por caminhos estreitos e sinuosos, acompanhados de vozes e vultos de familiares recém-conhecidos, depois passamos por um regato (onde haveria agrião, mas que só no dia seguinte poderíamos ver), até que enfim subimos umas escadas e encontramos uma casa com a porta da sala aberta, uma mesa posta à nossa espera e um inesquecível cheiro de arroz caseiro, preparado com carinho por nossa avó, decerto entre ais de saudade e o bater forte do coração, com a alegre expectativa pelo reencontro. Para camponeses pobres como eles, que tiravam o principal sustento das batatas e do porco (consumido regradamente, para durar um ano), arroz era um luxo, fina e rara iguaria. Até hoje sinto o cheiro convidativo daquele arroz “lourinho”, tão simples e tão saboroso. Vem-me intensamente à memória quando sinto o aroma de cebola refogada que sai pelas janelas dos apartamentos ou quando leio as descrições gastronômicas das comidas provincianas que seduziram definitivamente Jacinto, em A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós.
Minha avó era moleira respeitadíssima. Os fregueses vinham à porta procurá-la ou chamavam-na de longe, com um pregão característico: “Ó senhora Mariiiiiquinhas, venha ao “munho”! E lá ia ela, suspendendo as tarefas domésticas, e seguindo por aquele estranho caminho que nos trouxera de noite, e que agora parecia-nos tão familiar.Às vezes eu a acompanhava, e achava tudo fascinante: a vegetação em torno do moinho, a água caindo e fazendo girar a mó, o processo de transformação do milho, o cheiro da farinha, enfim, adorava aquele lugar pitoresco e romântico (da perspectiva de quem contempla, provavelmente não do ponto de vista de quem dele tira boa parte do sustento), que me fazia lembrar o cenário de certas histórias da infância...
A lição mais importante que dela me ficou, e que minha mãe fazia questão de sublinhar, nas inúmeras vezes em que se dispunha a contar histórias e “causos” de família, foi a sua invulgar honestidade. Seu lema era: antes ficar prejudicada do que prejudicar. Era tão justa, tinha tanto medo de prejudicar alguém e de perder a alma por isso, que pesava o milho dos fregueses antes de moer, para comparar o peso inicial com o do final da moagem. Sem levar em conta as previsíveis perdas durante todo o processo, completava a diferença com a sua própria farinha, até que o peso do saco de farinha do freguês atingisse o peso dos grãos.
Querida avó, penso, com alegria, que com certeza alguns de teus muitos filhos aprenderam a tua bela lição. Teu filho Antônio (meu pai), por exemplo, procurou seguir os teus ensinamentos, mas naturalmente adaptando-os ao seu próprio ideal de justiça. Era um homem profundamente íntegro, e creio firmemente que jamais prejudicou alguém. Ajudava as ex-empregadas a “pôr a telha” (a terminar a construção das suas casas) e emprestava dinheiro a alguns sobrinhos, afilhados e amigos. Mas não gostava de ser prejudicado. Reagia muito mal à injustiça (traço que herdei dele). Quando percebia que as pessoas não estavam agindo conforme o combinado, perdia o sono, aborrecia-se, tinha crises de estômago e alterações de humor. Por vezes via-o cabisbaixo na sua poltrona, com a mão a apertar o abdômen, meio dobrado sobre si mesmo, e pensava que eram problemas digestivos. Em geral não eram: debatia-se com a angústia de perceber que o caráter das pessoas não correspondia à confiança que nelas depositara. Sofria quase silenciosamente, não desabafava, não queria reconhecer que se equivocara, sobretudo em relação às pessoas da família, porque tinha em alto apreço o bom nome e os valores familiares.
Avó Joaquina, tantas vezes mãe, avó e bisavó: lá no "assento etéreo" (Camões) onde certamente te encontras, espero que só te cheguem as boas notícias da tua descendência, aquelas que estão à altura das belas ações que aqui praticaste. Espero que jamais possas saber de certos desvios de caráter, de algumas ações pouco dignificantes da tua linhagem. Apraz-me imaginar que, nesse céu dos justos, já deves ter encontrado meu pai...
Neste Dia das Mães em Portugal, meu pensamento vai também para ti (e para o teu filho, pois sou tua neta, por parte de pai): avozinha, do meu ramo nasceram dois bisnetos e uma trineta. Contarei para eles a tua história, para sempre ligada à nossa história, pois ela é um bem precioso, a mais valiosa herança que lhes quero legar.
Conheci-a em 1962, quando meu pai decidiu que passaríamos uma longa temporada em Portugal, fazendo com que eu e a minha irmã perdêssemos o ano letivo, para espanto geral dos professores, que não entendiam o porquê dessa interrupção, sobretudo tendo em conta que éramos alunas muito estudiosas. Creio que a justificativa dele era a de que, se tentasse conciliar o período das férias escolares com a viagem, nunca poderia passar na terra natal o seu aniversário nem a Páscoa. Não me lembro qual foi a nossa reação na época, mas deve ter sido a de acatar, sem discussão, as decisões paternas. Era esse o modelo familiar vigente: subserviência da esposa, obediência total dos filhos, sem direito a nenhum “mas”. Só recordo que, no regresso ao Brasil, enfrentamos com desconforto e até com uma certa humilhação a situação de estar um ano atrás dos antigos colegas de turma. Hoje, apesar de reconhecer que foi uma opção questionável em relação ao interesse escolar dos filhos, penso que nosso pai nos proporcionou uma oportunidade maravilhosa (e que se revelaria única) de conhecermos os avós paternos e maternos. Perdemos um ano no colégio, mas ganhamos algo bem mais precioso em termos de convívio humano. Feitas as contas, o saldo foi extremamente positivo.
Chegar à casa da avó Joaquina deve ter sido uma longa aventura. Guardo na memória algumas imagens daquela noite: andamos com malas por caminhos estreitos e sinuosos, acompanhados de vozes e vultos de familiares recém-conhecidos, depois passamos por um regato (onde haveria agrião, mas que só no dia seguinte poderíamos ver), até que enfim subimos umas escadas e encontramos uma casa com a porta da sala aberta, uma mesa posta à nossa espera e um inesquecível cheiro de arroz caseiro, preparado com carinho por nossa avó, decerto entre ais de saudade e o bater forte do coração, com a alegre expectativa pelo reencontro. Para camponeses pobres como eles, que tiravam o principal sustento das batatas e do porco (consumido regradamente, para durar um ano), arroz era um luxo, fina e rara iguaria. Até hoje sinto o cheiro convidativo daquele arroz “lourinho”, tão simples e tão saboroso. Vem-me intensamente à memória quando sinto o aroma de cebola refogada que sai pelas janelas dos apartamentos ou quando leio as descrições gastronômicas das comidas provincianas que seduziram definitivamente Jacinto, em A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós.
Minha avó era moleira respeitadíssima. Os fregueses vinham à porta procurá-la ou chamavam-na de longe, com um pregão característico: “Ó senhora Mariiiiiquinhas, venha ao “munho”! E lá ia ela, suspendendo as tarefas domésticas, e seguindo por aquele estranho caminho que nos trouxera de noite, e que agora parecia-nos tão familiar.Às vezes eu a acompanhava, e achava tudo fascinante: a vegetação em torno do moinho, a água caindo e fazendo girar a mó, o processo de transformação do milho, o cheiro da farinha, enfim, adorava aquele lugar pitoresco e romântico (da perspectiva de quem contempla, provavelmente não do ponto de vista de quem dele tira boa parte do sustento), que me fazia lembrar o cenário de certas histórias da infância...
A lição mais importante que dela me ficou, e que minha mãe fazia questão de sublinhar, nas inúmeras vezes em que se dispunha a contar histórias e “causos” de família, foi a sua invulgar honestidade. Seu lema era: antes ficar prejudicada do que prejudicar. Era tão justa, tinha tanto medo de prejudicar alguém e de perder a alma por isso, que pesava o milho dos fregueses antes de moer, para comparar o peso inicial com o do final da moagem. Sem levar em conta as previsíveis perdas durante todo o processo, completava a diferença com a sua própria farinha, até que o peso do saco de farinha do freguês atingisse o peso dos grãos.
Querida avó, penso, com alegria, que com certeza alguns de teus muitos filhos aprenderam a tua bela lição. Teu filho Antônio (meu pai), por exemplo, procurou seguir os teus ensinamentos, mas naturalmente adaptando-os ao seu próprio ideal de justiça. Era um homem profundamente íntegro, e creio firmemente que jamais prejudicou alguém. Ajudava as ex-empregadas a “pôr a telha” (a terminar a construção das suas casas) e emprestava dinheiro a alguns sobrinhos, afilhados e amigos. Mas não gostava de ser prejudicado. Reagia muito mal à injustiça (traço que herdei dele). Quando percebia que as pessoas não estavam agindo conforme o combinado, perdia o sono, aborrecia-se, tinha crises de estômago e alterações de humor. Por vezes via-o cabisbaixo na sua poltrona, com a mão a apertar o abdômen, meio dobrado sobre si mesmo, e pensava que eram problemas digestivos. Em geral não eram: debatia-se com a angústia de perceber que o caráter das pessoas não correspondia à confiança que nelas depositara. Sofria quase silenciosamente, não desabafava, não queria reconhecer que se equivocara, sobretudo em relação às pessoas da família, porque tinha em alto apreço o bom nome e os valores familiares.
Avó Joaquina, tantas vezes mãe, avó e bisavó: lá no "assento etéreo" (Camões) onde certamente te encontras, espero que só te cheguem as boas notícias da tua descendência, aquelas que estão à altura das belas ações que aqui praticaste. Espero que jamais possas saber de certos desvios de caráter, de algumas ações pouco dignificantes da tua linhagem. Apraz-me imaginar que, nesse céu dos justos, já deves ter encontrado meu pai...
Neste Dia das Mães em Portugal, meu pensamento vai também para ti (e para o teu filho, pois sou tua neta, por parte de pai): avozinha, do meu ramo nasceram dois bisnetos e uma trineta. Contarei para eles a tua história, para sempre ligada à nossa história, pois ela é um bem precioso, a mais valiosa herança que lhes quero legar.
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