Um blogue escrito por três pares de mãos separados por águas atlânticas. Uma viagem com escalas no Rio de Janeiro, em Londres e Senhora da Hora.
sexta-feira, outubro 31, 2003
Os jardins de Virgínia Woolf
"Virginia move-se pelo jardim como que impelida por uma almofada de ar; começa a compreender que existe outro jardim debaixo deste, um jardim do mundo subterrâneo, mais maravilhoso e terrível do que este e que é a raiz de que nascem estes relvados e estas pérgulas. É genuína a ideia de um jardim e está longe de ser tão simples quanto é belo."
"As Horas", de Michael Cunningham
Pobre Portugal
Acabo de ler aqui que Portugal é o país mais pobre da União Europeia. Era o que faltava para deixar a nossa auto-estima novinha em folha.
Sophia reina
Sophia de Mello Breyner Andresen ganhou um prémio com o seu nome. Uma satisfação para aqueles cuja metade da alma também "é feita de maresia".
MAR
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
MAR
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Clochards de Paris
Esta fotografia foi registada pelo brasileiro Flávio Rodrigues no ano em que nasci, em 1976. Gosto muito deste trabalho. Leio num dos meus sítios favoritos que este fotógrafo tem 59 anos e "guarda o mundo numa velha caixa de sapatos que, aberta neste ensaio de retratos, refaz a trajetória do artista entre os estudos em Nova York, a carreira iniciada em Paris, as viagens pela Europa e a volta ao Brasil.
Dono de um inarredável espírito de voyeur, Flávio coleciona em seu arquivo de fundo de armário reminiscências em preto e branco de personagens inauditos e malditos, felizes e tristes, carinhosos, às vezes ferozes. "Não sei e nem me importo muito se o conjunto se inscreve no âmbito da fotografia autoral ou documental, mas estou certo que resulta de uma interação com pessoas, lugares, emoções, incertezas." Há algo de muito pessoal nessas imagens."
José Cardoso Pires
Nelson de Matos chama atenção para o esquecimento rápido do homem que nos deu "O Delfim" e "A Balada da Praia dos Cães". E escreve: "O Diário de Noticias e a sua equipa da cultura, estão hoje de parabéns. Bonita homenagem (nas páginas 2, 3, 4, 5 e 6, com chamada na primeira), pela passagem do 5º aniversário da morte de José Cardoso Pires. No Público (jornal onde o Zé escreveu semanalmente as suas crónicas no tempo da direcção de Vicente Jorge Silva), nem uma palavra." Ele escreve e ele tem razão.
quinta-feira, outubro 30, 2003
Um texto inédito de Eduardo Lourenço
"O poeta e os outros"
Ortega y Gasset tem um ensaio intitulado aristocraticamente “os intelectuais e os outros”. Como todas as assumpções da aristocracia, esta comporta um risco, um não pequeno e grave risco. As eleições são sempre contestáveis mas a auto-eleição realiza nesse capítulo um sucesso particular: não tendo a garantia de Deus nem dos eleitores, é duplamente contestável. Intelectual, Ortega y Gasset erigiu o seu estatuto mental em situação ímpar de humanidade. Talvez tenha razão. A linhagem de onde procede esse solitário e altivo sentimento de diferença superior a considerações de raça, religião e classe é antiqüíssimo e venerável. Platão brilha no meio do círculo dos eleitos mas o zodíaco da inteligentzia está cheio como um coro de anjos: todo o Renascimento, o Classicismo, o Romantismo aí proclamam a glória unânime do homem da inteligência.
Os inteligentes se extasiam na sua inteligência. Os antigos altamente excusáveis pois jamais viram nela senão a inteligência do Homem. O particular não foi nunca objecto da atenção “divina” de Platão. Os modernos, inexcusáveis, pois dizendo inteligência e eleição é a sua inteligência que elegem, a dos outros tendo-se tornado para todos eles confusa e problemática. E todavia como não exaltar a inteligência sem diminuir o homem? Como proceder para não ficar prisioneiro de um contestável orgulho? Não há solução alguma isenta. Quando se afirma uma diferença, quando nos separamos do género humano proclamando uma diferença qualquer, essa decisão nos absolve e nos condena.
Pode acontecer contudo que a diferença se torne visível por si mesma e se manifeste de tal modo que ao ser expressa por nós seja ainda compatível com a isenção. O destino pode colocar-nos na situação de exteriores ao espectáculo onde a diferença humana se manifesta. Ou interiores a ela mas miraculosamente neutros. Tal pretende ser a situação humana privilegiada dos críticos em relação à poesia quando ela não o é senão por um acaso quase tão raro como o da própria poesia. A situação íntima e real da maioria da crítica literária – em especial universitária - é a de uma não sei que subtil, confusa mas obstinada consciência de não sei que superioridade em relação ao poeta. De outro modo como se teria ele inventado crítico? Embalsamadores imaginam-se ressuscitadores, glosadores de vivos crêem-se inventores de mortos. São insuportáveis, mesmo os melhores, e quanto melhores piores. A esse destino de aves mortuárias da criação só escapam os críticos a quem o amor deu asas para queimar na luz descoberta. O amor os inventou, sua crítica é o diálogo, o discurso sem fim que o amor suscita, segundo diz o Fedon, e o amor os salva. No mundo da criação, mais implacável que o terrestre mundo que a todo instante se esboroa ou que o da inteligência que a si mesma se divide e agoniza, só há na verdade OS POETAS E OS OUTROS.
Eu pertenço aos outros e por isso não tenho mérito algum em o confessar. Como é da essência dos outros, e em especial da fauna crítica, que é o sumo dessa “alteridade”, também eu talhei e medi, fiz comparecer réus e testemunhas, pronunciei sentenças de morte para pessoas que não podiam morrer, concedi liberdade a escravos deles mesmos, ofereci vida a cadáveres confusos, enfim alucinei-me sobre poderes que Deus não concede senão aos criadores. Em suma, cedi à tentação de ser crítico."
Texto publicado no mais recente número da revista luso-brasileira "Metamorfoses"
Ortega y Gasset tem um ensaio intitulado aristocraticamente “os intelectuais e os outros”. Como todas as assumpções da aristocracia, esta comporta um risco, um não pequeno e grave risco. As eleições são sempre contestáveis mas a auto-eleição realiza nesse capítulo um sucesso particular: não tendo a garantia de Deus nem dos eleitores, é duplamente contestável. Intelectual, Ortega y Gasset erigiu o seu estatuto mental em situação ímpar de humanidade. Talvez tenha razão. A linhagem de onde procede esse solitário e altivo sentimento de diferença superior a considerações de raça, religião e classe é antiqüíssimo e venerável. Platão brilha no meio do círculo dos eleitos mas o zodíaco da inteligentzia está cheio como um coro de anjos: todo o Renascimento, o Classicismo, o Romantismo aí proclamam a glória unânime do homem da inteligência.
Os inteligentes se extasiam na sua inteligência. Os antigos altamente excusáveis pois jamais viram nela senão a inteligência do Homem. O particular não foi nunca objecto da atenção “divina” de Platão. Os modernos, inexcusáveis, pois dizendo inteligência e eleição é a sua inteligência que elegem, a dos outros tendo-se tornado para todos eles confusa e problemática. E todavia como não exaltar a inteligência sem diminuir o homem? Como proceder para não ficar prisioneiro de um contestável orgulho? Não há solução alguma isenta. Quando se afirma uma diferença, quando nos separamos do género humano proclamando uma diferença qualquer, essa decisão nos absolve e nos condena.
Pode acontecer contudo que a diferença se torne visível por si mesma e se manifeste de tal modo que ao ser expressa por nós seja ainda compatível com a isenção. O destino pode colocar-nos na situação de exteriores ao espectáculo onde a diferença humana se manifesta. Ou interiores a ela mas miraculosamente neutros. Tal pretende ser a situação humana privilegiada dos críticos em relação à poesia quando ela não o é senão por um acaso quase tão raro como o da própria poesia. A situação íntima e real da maioria da crítica literária – em especial universitária - é a de uma não sei que subtil, confusa mas obstinada consciência de não sei que superioridade em relação ao poeta. De outro modo como se teria ele inventado crítico? Embalsamadores imaginam-se ressuscitadores, glosadores de vivos crêem-se inventores de mortos. São insuportáveis, mesmo os melhores, e quanto melhores piores. A esse destino de aves mortuárias da criação só escapam os críticos a quem o amor deu asas para queimar na luz descoberta. O amor os inventou, sua crítica é o diálogo, o discurso sem fim que o amor suscita, segundo diz o Fedon, e o amor os salva. No mundo da criação, mais implacável que o terrestre mundo que a todo instante se esboroa ou que o da inteligência que a si mesma se divide e agoniza, só há na verdade OS POETAS E OS OUTROS.
Eu pertenço aos outros e por isso não tenho mérito algum em o confessar. Como é da essência dos outros, e em especial da fauna crítica, que é o sumo dessa “alteridade”, também eu talhei e medi, fiz comparecer réus e testemunhas, pronunciei sentenças de morte para pessoas que não podiam morrer, concedi liberdade a escravos deles mesmos, ofereci vida a cadáveres confusos, enfim alucinei-me sobre poderes que Deus não concede senão aos criadores. Em suma, cedi à tentação de ser crítico."
Texto publicado no mais recente número da revista luso-brasileira "Metamorfoses"
Eduardo Lourenço e a crítica
O volume quatro da revista luso-brasileira "Metamorfoses", já disponível nas livrarias, traz um cuidado dossier sobre Eduardo Lourenço. Um dos artigos foi escrito por alguém muito importante para mim e, sendo assim, não fica nada bem estar a elogiá-lo. Pensei em nem sequer mencionar esta novidade no Cais, mas depois cheguei à conclusão que seria uma pena não dar a conhecer um inédito do autor que ali vem ali. Chama-se "O Poeta e os Outros" e foi escrito por um jovem Lourenço, já muito consciente da dificuldade de julgar uma obra de arte.
O ensaísta português, radicado em Nice há muitos anos, fala nesse texto da crítica literária que se quer responsável e não máquina destruidora de criadores. Os críticos, para ele, "são insuportáveis, mesmo os melhores, e quanto melhores piores. A esse destino de aves mortuárias da criação só escapam os críticos a quem o amor deu asas para queimar na luz descoberta." Daí que Lourenço defenda a crítica daquilo que nos toca. Se um texto não encontra no crítico o seu leitor ideal - ou simplesmente é, na sua opinião, um texto fraco - não escrever sobre ele poderá ser talvez o tratamento mais honesto. Por isso encontramos na vasta obra de Lourenço análises apaixonadas sobre criações que o ensaísta leu com extremo desvelo. A literatura que não mereceu o movimento da sua mão não é necessariamente má, apenas não lhe tocou.
O ensaísta português, radicado em Nice há muitos anos, fala nesse texto da crítica literária que se quer responsável e não máquina destruidora de criadores. Os críticos, para ele, "são insuportáveis, mesmo os melhores, e quanto melhores piores. A esse destino de aves mortuárias da criação só escapam os críticos a quem o amor deu asas para queimar na luz descoberta." Daí que Lourenço defenda a crítica daquilo que nos toca. Se um texto não encontra no crítico o seu leitor ideal - ou simplesmente é, na sua opinião, um texto fraco - não escrever sobre ele poderá ser talvez o tratamento mais honesto. Por isso encontramos na vasta obra de Lourenço análises apaixonadas sobre criações que o ensaísta leu com extremo desvelo. A literatura que não mereceu o movimento da sua mão não é necessariamente má, apenas não lhe tocou.
As mãos e os frutos
Só as tuas mãos trazem os frutos,
Só elas despem a mágoa
destes olhos, e dos choupos,
carregados de sombra e rasos de água
Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos
_ Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.
Encontro de Eugénio de Andrade com a mineira Ana Regina Nogueira , fotógrafa e poeta
O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam
Para homenagear o escritor argentino, a Fundação Internacional Jorge Luis Borges vai criar até ao fim deste ano um verdadeiro jardim dos caminhos que se bifurcam, mais precisamente na quinta Los Álamos, na província de Mendoza, no sopé dos Andes. Quem quiser saber como vai ficar este gigantesco labirinto tem de ir até ao país do tango nos próximos meses. Este equipamento de sonho terá ainda uma biblioteca em braille (para provar que os dedos que escrevem também lêem) e um miradouro.
Quentin Tarantino
Acabo de ver a quarta obra de Quentin Tarantino. Depois de "Cães Danados" (1992), "Pulp Fiction" e "Jackie Brown", o realizador nos convoca para mais uma bem humorada sessão de violência: "Kill Bill". Uma Thurman aparece com um fato amarelo no melhor estilo Bruce Lee, cortando com uma espada samurai braços, pernas e cabeças. O sangue das vítimas jorra como poços de petróleo de banda desenhada. Aliás, Tarantino também recorre ao formato de desenhos animados para fazer algumas cenas de flash back. Com figuras orientais com olhos gigantescos e tudo.
Múltiplas linguagens, ícones liquefeitos por varinhas mágicas, uma pitada saudosa (mas com nova roupagem) de artes marciais. Cá temos o nosso velho Tarantino a contar histórias banais de um jeito fantástico, a fazer da violência a coisa mais divertida que podemos ter ao fim de um dia de trabalho. Ele próprio confessa: "A violência é a coisa mais engraçada que se pode fazer em filmes".
Há menos diálogos do que nas fitas anteriores. Em troca, temos mais acção. O filme apresenta-se como um livro, por capítulos. E o que podemos ver hoje nas salas de cinema constitui apenas o primeiro volume dessa obra. A sequela, só em Fevereiro de 2004. Apenas nessa altura saberemos como a heroína (Uma) completa a sua vingança contra aqueles que a tentaram matar no dia do seu casamento (um deles o Bill, o pai do filho que trazia na barriga).
Falem da banalização da violência, falem da dissolução da moral. O que é facto é que eu ri imenso. Porque aqui o poder atroz contra a vida (e a integridade física dos corpos, literalmente) atinge níveis tão elevados e descontextualizados que só nos resta não identificar tal violência como plausível e, por isso mesmo, rir desse descompasso entre vida e morte.
É o caso da cena em que a "guerreira dos cabelos cor de feno" luta contra uma inimiga vestida de quimono branco (Lucy Liu, ex-Anjo de Charlie): o cenário é um jardim zen, com flocos de neve desprendendo-se do céu, mas a música que embala este sonho nipónico é "Don´t let me be misunderstood", dos Santa Esmeralda. A japinha acaba por ser escalpelada, sendo que o seu couro cabeludo vai pelos ares até, em curva descendente, cair no chão alvo e gelado. Na sequência, aparece o crânio incompleto da criatura, que (pasmem!) ainda é capaz de dizer uma frase completa e gramaticalmente correcta.
Como conter o riso? Um riso incomodado e catártico, é certo, mas riso. Um riso que nos deixa mais confortados do que muitos filmes politicamente correctos.
sábado, outubro 25, 2003
À porta de Llansol (IV)
Tenho ainda "O Começo de Um Livro É Precioso" (Assírio & Alvim, 2003), de Maria Gabriela Llansol, em minhas mãos. Na estância 35, lê-se:
"Apesar de ele ter decidido não compreender, ela / Persistia em explicar-lhe por que lia a Gabriela Llansol ___ / «É a casa que ensina a ler (pausa) imagina um extraordinário /Atractivo para o amor (pausa) o livro fala (pausa) / Procura a página que te fala (pausa) são da substância / Dos beijos e da boca (pausa) sentam-se à mesa / Num estético convívio (pausa) a sua liberdade / É tal que, se as folhas se partem, regressam por si sós ao ponto de partida e juntam-se, esperando (pausa) são / Pombas somente ligadas por uma fita de voo (pausa) / Não vês?» (continua) ".
É curioso que a autora inclua no seu próprio texto o reflexo que provoca nos seus leitores. Talvez Llansol saiba que nem todos aqueles que assomam à sua porta se sentem confortáveis. É preciso pausas muitas vezes. Daí os hiatos ___________ que com frequência intercalam as suas palavras. Esses mesmos sinais gráficos que pontuam as obras são, por ela mesma, maravilhosamente descritos como "pombas ligadas por uma fita de voo". Cada um poderá entender como quiser este interstício que aparta (une?) o leitor da escrita. Eu vejo como uma imagem metafórica do leitor que se debruça sobre páginas, lendo-as, mas que, num dado momento, interrompe a leitura e pousa o olhar no horizonte. Esta paragem, que pode ser representada como _____________, também é leitura, ainda que os olhos não estejam pousados sobre as palavras impressas. Uma escrita assim permite um espaço inigualável de liberdade ao leitor.
"Apesar de ele ter decidido não compreender, ela / Persistia em explicar-lhe por que lia a Gabriela Llansol ___ / «É a casa que ensina a ler (pausa) imagina um extraordinário /Atractivo para o amor (pausa) o livro fala (pausa) / Procura a página que te fala (pausa) são da substância / Dos beijos e da boca (pausa) sentam-se à mesa / Num estético convívio (pausa) a sua liberdade / É tal que, se as folhas se partem, regressam por si sós ao ponto de partida e juntam-se, esperando (pausa) são / Pombas somente ligadas por uma fita de voo (pausa) / Não vês?» (continua) ".
É curioso que a autora inclua no seu próprio texto o reflexo que provoca nos seus leitores. Talvez Llansol saiba que nem todos aqueles que assomam à sua porta se sentem confortáveis. É preciso pausas muitas vezes. Daí os hiatos ___________ que com frequência intercalam as suas palavras. Esses mesmos sinais gráficos que pontuam as obras são, por ela mesma, maravilhosamente descritos como "pombas ligadas por uma fita de voo". Cada um poderá entender como quiser este interstício que aparta (une?) o leitor da escrita. Eu vejo como uma imagem metafórica do leitor que se debruça sobre páginas, lendo-as, mas que, num dado momento, interrompe a leitura e pousa o olhar no horizonte. Esta paragem, que pode ser representada como _____________, também é leitura, ainda que os olhos não estejam pousados sobre as palavras impressas. Uma escrita assim permite um espaço inigualável de liberdade ao leitor.
quinta-feira, outubro 23, 2003
Ferreira Gullar
As edições Quasi acabam de lançar a "Obra Poética" de Ferreira Gullar. Obviamente, não pude deixar de comprar. O livro conta com um belíssimo prefácio de 18 páginas assinado por Ivan Junqueira. Tenham paciência, pois as próximas mensagens serão dedicadas ao meu querido poeta brasileiro.
O sítio Outras Palavras também me informa que Ferreira Gullar chega a Internet e nos permite, através de seu site, receber um e-poema diretamente via e-mail. A internet também nos traz coisas belas."
Para despertar o apetite, segue o poema que forra a contracapa do volume editado entre nós pela Quasi.
"Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,
entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse.
Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos
das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo - deuses frágeis -
eu colho a ausência que me queima as mãos."
sábado, outubro 18, 2003
À porta de Llansol (III)
Leio no blogue de Alexandra Barreto mais um testemunho sobre a leitura dos textos de Llansol. Ela fala sobre "O Jogo da Liberdade da Alma", um livro recém-lançado pela autora portuguesa. A obra veio a lume precisamente num colóquio no Convento da Arrábida, juntamente com outro título, "O Começo de Um Livro éPrecioso" (Assírio & Alvim, ilustrações lindas de Ilda David). São apontamentos de leitura que dão conta da lenta viagem que é chegar até à textualidade de Llansol.
"Para Llansol, escrever, ler, amar e existir são formas de investigação do mistério do real através de um texto que não aceita as limitações nem da prosa nem do verso.
Neste livro que se constrói a partir de "menos-valias" (p. 13), de "dias perdidos, textos reconstituídos, ossos ressequidos à espera que o texto lhe renascesse em volta" (p. 20), o conceito de "ressurreição" é fulcral. O mundo, a vida, o amor e a literatura dependem das ressurreições que devem processar-se constantemente para que algo subsista do conflito entre o texto e o tempo: "o texto, na sua trajectória, não me queria no Tempo, onde, indubitavelmente, o meu corpo me quer" (p. 27). Mas num conflito pode haver uma (trans)fusão entre os dois pólos em causa. E para o texto vencer o tempo tem de aceitar confrontar-se com ele, tem de conseguir ser "livre, e anterior a si mesmo, e posterior a si mesmo____a substância narrando-se" (p. 12).
Tenho uma confissão a fazer: há muito tempo que não conseguia ler um livro de Maria Gabriela Llansol até ao fim. Geralmente impaciento-me com alguma imprecisão das palavras que se vêem subitamente desprovidas dos seus referentes lexicais tradicionais sem necessariamente lhe serem atribuídos outros que permitam ao leitor um ponto de apoio. No entanto, este livro terminei-o muito rapidamente, quase sem interrupções."
"Para Llansol, escrever, ler, amar e existir são formas de investigação do mistério do real através de um texto que não aceita as limitações nem da prosa nem do verso.
Neste livro que se constrói a partir de "menos-valias" (p. 13), de "dias perdidos, textos reconstituídos, ossos ressequidos à espera que o texto lhe renascesse em volta" (p. 20), o conceito de "ressurreição" é fulcral. O mundo, a vida, o amor e a literatura dependem das ressurreições que devem processar-se constantemente para que algo subsista do conflito entre o texto e o tempo: "o texto, na sua trajectória, não me queria no Tempo, onde, indubitavelmente, o meu corpo me quer" (p. 27). Mas num conflito pode haver uma (trans)fusão entre os dois pólos em causa. E para o texto vencer o tempo tem de aceitar confrontar-se com ele, tem de conseguir ser "livre, e anterior a si mesmo, e posterior a si mesmo____a substância narrando-se" (p. 12).
Tenho uma confissão a fazer: há muito tempo que não conseguia ler um livro de Maria Gabriela Llansol até ao fim. Geralmente impaciento-me com alguma imprecisão das palavras que se vêem subitamente desprovidas dos seus referentes lexicais tradicionais sem necessariamente lhe serem atribuídos outros que permitam ao leitor um ponto de apoio. No entanto, este livro terminei-o muito rapidamente, quase sem interrupções."
sexta-feira, outubro 17, 2003
Ainda as Edições 2 Luas
Fiz uma pesquisa na internet para encontrar artigos sobre Llansol e, juro de pés juntos, acabei por tropeçar numa estrevista de Paulinho Assunção ao sítio Novos Livros . Então vi-me obrigada a voltar a falar nas Edições 2 Luas. O escritor brasileiro define assim a sua oficina artesanal:
"A Edições 2 Luas não é propriamente uma editora, é um gesto, um ato utópico de produzir livros manualmente fazendo uso de objetos e ferramentas rústicas e rudimentares: tabuinhas de encadernar, pegadores de papel, tesoura, agulha, cola, uma guilhotina manual, uns cordões, uns barbantes, quinquilharias que cabem numa pasta de colégio e causam júbilo e êxtase no meu filho de seis anos.
Diagramo e edito os textos em PageMaker, imprimo-os em uma impressora, mas todo o processo de feitura dos livros é à mão. Fiz até agora em torno de 20 títulos, desde 1998, em edições reduzidas, de 30, 50, 100 exemplares no máximo. Fiz inclusive uma pequena edição fora do mercado de um belíssimo texto manuscrito de Maria Gabriela Llansol, "Carta ao Legente". E também editei um pequeno livro de poemas do meu querido amigo, o poeta, romancista e dramaturgo português Jaime Rocha, chamado "Arco de Jasmim".
Mas não me considero um editor. Sou um escritor que, através do exercício da confecção manual de livros, lança e estende a alguns poucos leitores, leitores especiais, leitores fulgurados e de fulgurações, certas cartas em busca de bons destinatários."
Sobre Llansol e a Literatura Portuguesa:
"tenho vinculações muito fortes com os autores portugueses: de Camões a Eça, de Eça a Pessoa, de Pessoa a Maria Gabriela Llansol, na qual, o que mais me encanta, o que mais me apaixona, é suprema iluminação alcançada em seus livros pela língua portuguesa. Em Llansol, a língua portuguesa atinge uma solidez incomparável, a partir um registro tão leve e delicado como a pluma. Mas há outros autores pelos quais tenho extrema admiração. Por exemplo, para citar apenas dois, o José Cardoso Pires e a Hélia Correia. E, há poucos dias, publiquei no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, meia página sobre "Fazes-me Falta", de Inês Pedrosa, uma escritora também admirável."
"A Edições 2 Luas não é propriamente uma editora, é um gesto, um ato utópico de produzir livros manualmente fazendo uso de objetos e ferramentas rústicas e rudimentares: tabuinhas de encadernar, pegadores de papel, tesoura, agulha, cola, uma guilhotina manual, uns cordões, uns barbantes, quinquilharias que cabem numa pasta de colégio e causam júbilo e êxtase no meu filho de seis anos.
Diagramo e edito os textos em PageMaker, imprimo-os em uma impressora, mas todo o processo de feitura dos livros é à mão. Fiz até agora em torno de 20 títulos, desde 1998, em edições reduzidas, de 30, 50, 100 exemplares no máximo. Fiz inclusive uma pequena edição fora do mercado de um belíssimo texto manuscrito de Maria Gabriela Llansol, "Carta ao Legente". E também editei um pequeno livro de poemas do meu querido amigo, o poeta, romancista e dramaturgo português Jaime Rocha, chamado "Arco de Jasmim".
Mas não me considero um editor. Sou um escritor que, através do exercício da confecção manual de livros, lança e estende a alguns poucos leitores, leitores especiais, leitores fulgurados e de fulgurações, certas cartas em busca de bons destinatários."
Sobre Llansol e a Literatura Portuguesa:
"tenho vinculações muito fortes com os autores portugueses: de Camões a Eça, de Eça a Pessoa, de Pessoa a Maria Gabriela Llansol, na qual, o que mais me encanta, o que mais me apaixona, é suprema iluminação alcançada em seus livros pela língua portuguesa. Em Llansol, a língua portuguesa atinge uma solidez incomparável, a partir um registro tão leve e delicado como a pluma. Mas há outros autores pelos quais tenho extrema admiração. Por exemplo, para citar apenas dois, o José Cardoso Pires e a Hélia Correia. E, há poucos dias, publiquei no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, meia página sobre "Fazes-me Falta", de Inês Pedrosa, uma escritora também admirável."
quinta-feira, outubro 16, 2003
Evandro Teixeira
Uma vez me disseram que aqueles que têm um dom raramente o manisfestam. Por outras palavras, as pessoas mais preciosas que já encontrei não trazem um letreiro a indicar isso. Então acontece nas relações humanas aquilo a que chamo "efeito-violeta": estão ali, num canto, com as suas folhas aveludadas e as suas florinhas perfeitas. Se frequentarmos muito uma casa com violetas, não conceberemos mais os parapeitos sem os pequenos vasos. Mas se estivermos lá, no meio de uma festa relâmpago e ruidosa, provavelmente nunca diremos: a casa tinha violetas.
Isto tudo é para dizer que o fotógrafo brasileiro Evandro Teixeira é uma violeta.
Sabe como poucos interpretar a realidade brasileira. Trabalha com gosto, trata grandes repórteres e estagiários com a mesma simplicidade. Tem mais energia do que alguns colegas vinte anos mais novos do que ele. O Jornal do Brasil teve a horna de tê-lo na sua equipa. Carlos Drummond de Andrade dedicou-lhe um poema, texto que considero o elogio máximo do fazer fotojornalístico.
"Diante das fotos de Evandro Teixeira
A pessoa, o lugar, o objecto
estão expostos e escondidos
ao mesmo tempo sob a luz,
e dois olhos não são bastantes
para captar o que se oculta
no rápido florir de um gesto.
É preciso que a lente mágica
enriqueça a visão humana
e do real de cada coisa
um mais seco real extraia
para que penetremos fundo
no puro enigma das figuras.
Fotografia - é o codinome
da mais aguda percepção
que a nós mesmos nos vai mostrando
e da evanescência de tudo
edifica uma permanência,
cristal do tempo no papel.
Das lutas de rua no Rio
em 68, que nos resta
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras, tão vivas hoje como então,
a lembrar como a exorcizar?
Marcas da enchente e do despejo,
cadáver insepultável,
o colchão atirado ao vento,
a lodosa, podre favela,
o mendigo de Nova Iorque
a moça em flor no Jóquei Clube,
Garrincha e Nureiev, dança
de dois destinos, mães-de-santo
na praia-templo de Ipanema,
a dama estranha de Ouro Preto,
a dor da América Latina,
mitos não são, pois que são fotos.
Fotografia: arma de amor,
de justiça e conhecimento,
pelas sete partes do mundo
a viajar, a surpreender
a tormentosa vida do homem
e a esperança de brotar das cinzas.
Olhos redondos no reino da China
"Documentário de Ronald Levaco sobre a saga dos caucasianos residentes na China, de 1930 até os dias atuais. Mostra uma família que desapareceu no interior do país quando a revolução de Mao estourou em 1949, mas o foco central é a trajetória de um russo da região do Cáucaso que aderiu à revolução maoísta e decidiu se tornar chinês.
O filme tenta elucidar um mistério: os motivos que levaram Israel Esptein a permanecer sob um regime que obrigou muitos estrangeiros a fugir e o confinou numa prisão durante 5 anos, na década de 70.
A história é narrado por um cineasta chinês (vivendo nos EUA desde os 10 anos de idade) que volta ao seu país 45 anos mais tarde para desvendar o destino de Esptein, o homem que foi o melhor amigo do pai."
Contributos para um colar de olhos (II)
A Sara mandou-me mais um contributo para o colar de olhos, que há alguns dias tento construir. A ideia é reunir num fio, como se construíssemos uma gargantilha, vários elementos textuais ou imagéticos que façam alusão aos olhos. Sara entrega-me olhos que são "peixes verdes sem mar", trá-los numa caixa metálica, forrada com gelatina, para que não fiquem ressecados.
A Cristina também já nos ofereceu uma imagem do fotógrafo cego Bavcar.
"Poema", de António José Forte
Esta a cabeça em fúria do poeta
como está nas fotografias tiradas de avião
depois de cair em chamas no mar de ninguém
estes dentes
o alfabeto doido com que vai escrever
e aqui está a sua mão direita
estátua de manhã e automóvel à noite
salvo acidente mortal
e eis os seus olhos
peixes verdes sem mar
a sua boca aquela voz horrível no deserto
os seus pés
dois príncipes encantados no palácio dos passos
perdidos
antes de encontrar-te meu amor
A Cristina também já nos ofereceu uma imagem do fotógrafo cego Bavcar.
"Poema", de António José Forte
Esta a cabeça em fúria do poeta
como está nas fotografias tiradas de avião
depois de cair em chamas no mar de ninguém
estes dentes
o alfabeto doido com que vai escrever
e aqui está a sua mão direita
estátua de manhã e automóvel à noite
salvo acidente mortal
e eis os seus olhos
peixes verdes sem mar
a sua boca aquela voz horrível no deserto
os seus pés
dois príncipes encantados no palácio dos passos
perdidos
antes de encontrar-te meu amor
À Porta de Llansol (II)
Lúcia Castello Branco deu-me um texto seu chamado "Livro de Cenas Fulgor - caderno de contemplações". A obra é publicada pelas Edições 2 Luas, uma oficina artesanal comandada por Paulinho Assunção. Leio no prólogo que este projecto nasceu da experiência de Lúcia com a textualidade de Llansol e de Sei Shônagon, esta nascida no Japão por volta do ano 965. Lúcia explica então que teve a ideia de fazer uma espécie de listagem (que é uma marca formal de Sei) de "cenas fulgor" (que é um dos princípios construtivos da obra de Llansol, a par com a ideia de "encontro inesperado do diverso").
Para Llansol, as "cenas fulgor" podem ser "uma pessoa que realmente existiu", uma frase, um animal ou uma quimera". "Este é o jardim que o pensamento permite" é um exemplo de cena fulgor. Daí que Lúcia tenha tido a vontade de listar cenas fulgor da sua própria vivência. O resultado é um livro muito delicado, entremeado por páginas de papel vegetal onde figuram pedaços de renda e pétalas de rosas secas. Reproduzo abaixo uma das listas singelas de Lucia Castello Branco.
"Coisas que fazem o coração bater mais forte:
Um planador conduzido segundo a feição do vento
O dorso desnudo de um bebê adormecido
O olhar de um cão, em direcção à mãe que amamenta o bebê
O olhar de uma criança, em direcção àquilo que não compreende
Tâmaras secas sobre um prato de cristal
Aquele amigo distante que retorna
Deitar-se só, num quarto deliciosamente perfumado de incenso
O clarão da lua atrás da nuvem"
Lúcia Castello Branco, diz o livro, nasceu no Rio de Janeiro e vive actualmente em Belo Horizonte, no Brasil. É professora de literatura na Universidade Federal de Belo Horizonte e tem mais de dez livros publicados. É "legente" de Llansol e do mundo. E, o mais importante, é mãe de David e Julia.
À porta de Llansol
Escrevo este texto motivada pelo comentário de um arqueólogo no arame.
Demorei alguns anos para conseguir entrar verdadeiramente na casa de Llansol. Estive à soleira muitas vezes, deslizava as mãos pelo umbral, mas, apesar da porta estar aberta, era difícil para mim aceitar estar num Mundo por vezes incompreensível. O que eu não percebia era que a chave para Maria Gabriela Llansol era muito semelhante àquela que sempre utilizei para Clarice Lispector.
Clarice escreveu: "Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo o entendimento."
A eficiência textual de Llansol está, muitas vezes, ligada a uma vivência da textualidade que não vem acompanhada de um raciocínio linear. Eduardo Prado Coelho explica isso muito bem no livro "Tudo o que não escrevi":
"É verdade que estes textos me fascinam, mesmo quando não estou certo de os entender perfeitamente (melhor: sobretudo quando não estou certo). É verdade (creio) que estes textos fascinam tanto Maria Gabriela Llansol quanto a mim próprio. É o facto de neles se desarmar toda a autoridade de um autor que os torna simultaneamente precários, vulneráveis e deslumbrantes. Qualquer leitor pode bater à porta e entrar. O que o aguarda é apenas a serenidade e a justeza das coisas eveidentes: pão, água, o convívio com as plantas e os animais, alguma luz mesmo de noite no corpo da própria luz. E o amor como partilha do mais difícil."
"eu não posso ler Llansol como se lê um romance - na precipitação ofegante de chegar ao fim. Leio Llansol de lápis na mão, porque é o lápis que me impõe a demora, que me entrava no texto. Isto é, detém-me, contém-me diante da palavra seguinte, obriga-me a voltar atrás, a enredar-me no desenho da escrita."
segunda-feira, outubro 13, 2003
Encomendas para as Edições 2 Luas
Leitora pede-me o endereço para encomendar livros de Rubem Focs, ou seja, Paulinho Assunção. Então lá vai o contacto: paulinhoassuncao@ig.com.br.
Ainda Evgen Bavcar
Sobre a capacidade de criar com o corpo. De acreditar na beleza de uma imagem concebida com desvelo, mas jamais vista. Pelo menos com os olhos.
"Slovenian landscape
My childhood world was one of light and eternity. Everything comes from there. I try to salvage everything I can from my homeland. Family album photos are my favorite. When a friend described El Greco's paintings to me, light and colors are what I remember from my childhood. For me fluorescence will always be light shining on water, the reflections I saw. I have to go back to my country often to refresh my palette.
When I go back to my hometown I touch the trees or the bottom of walls to feel the passage of time. But what's most important is what goes on in my head, what I imagine. It's what I call the gaze of the third eye."
"Portrait with hands
Every photo I take I have to have perfectly organized in my head before shooting. I put the camera at the height of my mouth and that's how I photograph people I hear talking. The autofocus helps, but I can manage without it. It's simple. I measure the distance with my hands and the rest is done by my internal desire for images. I know there are always things that escape me, but that's true of photographers who can physically see. My images are fragile; I've never seen them, but I know they exist, and some of them have touched me deeply."
Fazer amor com os olhos
"nesse lugar havia uma mulher que não queria ter filhos do seu ventre. pedia aos homens que lhe trouxessem os filhos de suas mulheres para educá-los numa grande casa de um só quarto e de uma só janela; usava um xaile preto junto de seu rosto; tinha uma maneira distante de fazer amor: pelos olhos e pela palavra."
in "O Livro das Comunidades", de Maria Gabriela Llansol
in "O Livro das Comunidades", de Maria Gabriela Llansol
Contributos para um colar de olhos
Cristina chegou hoje com algumas imagens nas mãos. Ela disse-me que eram fotos de Bavcar, condensadas numa exposição virtual, mas acho que são contributos para um colar de olhos. O auto-retrato do Bavcar, que aparece no post abaixo, migrou precisamente dessa galeria de fotos. Vale a pena ouvir a sugestão de Cristina. Isso porque a exposição contém, além das imagens tácteis e mentais de Bavcar, depoimentos como este:
Shot against time
"I'm photography´s degree zero. Let's say that I'm more of an iconographer than a photographer. I've met blind people who also take photographs but never as self-consciously as I do. Some of them even do it with the hope of seeing again some day.
I photograph what I imagine, you could say I'm a bit like Don Quijote. The originals are inside my head. It is a matter of creating a mental image, the physical record which best represents the work of what is imagined."
Ver no escuro
"O fotógrafo e filósofo esloveno Evgen Bavcar é um artista devotado a ofuscar a idéia clássica de controle do mundo pelo sentido da visão. Cego desde a pré-adolescência, quando dois acidentes no curto espaço de um ano, primeiro com um olho, depois com o outro, o obrigaram a se despedir da luz, Bavcar aliou sua cultura visual de criança a uma extraordinária bagagem teórica para desafiar a normalidade do olhar e levar os que travam contato com sua obra a um outro patamar de reflexão.
Aos que olham perplexos o objeto de sua fotografia quase sempre envolto em uma aura de luz ele costuma explicar que constrói imagens a partir de um berço de trevas, e as ilumina a partir de sua imaginação. A foto que nasce do clique de sua inseparável Leica russa (e que guarda em suas diminutas proporções um olho de grande precisão tecnológica) é germinada numa experiência táctil com o fotografado e nas informações que colhe de assistentes eventuais, de preferência crianças (Bavcar adora o olhar das crianças)."
Leio o texto acima no sítio No Mínimo e fico feliz por Bavcar fotografar sem os olhos, tateando formas em sais de prata.
Um bilhete para Kafka sobre a olhografia
"Prezado Franz Kafka: gostaria muito que você escrevesse o prefácio (ou o epílogo) do meu novo livro, o qual deverá ser publicado em Fevereiro, pela editora Hummm. É um livro curto, são apenas doze contos, todos a respeito de olhos - olhos de mulheres. Escrevo-o há mais de seis anos, três dos quais eu passei em uma cadeirinha da Praça Sete de Setembro, anotando todos os tipos de olhos femininos que por lá passaram, desde os olhos mais comuns até aos mais exóticos. Sei que o tema não é inédito (o romancista Eliseu Pelim é autor de um razoável livro sobre olhos das mulheres após o banho), mas creio que consegui um ângulo inovador ao usar nos contos a Teoria de Brum Scott, que trata da olhografia, ou seja, a teoria de que as mulheres escrevem com os olhos."
O excerto acima, mais um contributo para o nosso colar de olhos, pertence ao livro "Kafka em Belo Horizonte" (2003), do escritor brasileiro Paulinho Assunção. Está publicado pelas Edições 2 Luas , uma editora artesanal, o que quer dizer que cada volume nasce literalmente das mãos do próprio autor. Ele mesmo diz que os fabrica "com a paciência dos anjos". São exemplares únicos, é certo, mas que estão ao alcance de todos. Basta encomendar por mensagem electrónica. Os leitores portugueses também podem se deliciar com "Pequeno Tratado sobre as Ilusões" (Campo das Letras, 2003) - foi com esta obra, aliás, que descobri o mundo imaginante do autor, guiada pelas mãos de um amigo igualmente imaginante (a quem fico eternamente grata).
O excerto acima, mais um contributo para o nosso colar de olhos, pertence ao livro "Kafka em Belo Horizonte" (2003), do escritor brasileiro Paulinho Assunção. Está publicado pelas Edições 2 Luas , uma editora artesanal, o que quer dizer que cada volume nasce literalmente das mãos do próprio autor. Ele mesmo diz que os fabrica "com a paciência dos anjos". São exemplares únicos, é certo, mas que estão ao alcance de todos. Basta encomendar por mensagem electrónica. Os leitores portugueses também podem se deliciar com "Pequeno Tratado sobre as Ilusões" (Campo das Letras, 2003) - foi com esta obra, aliás, que descobri o mundo imaginante do autor, guiada pelas mãos de um amigo igualmente imaginante (a quem fico eternamente grata).
A primeira missanga para um colar de olhos
Nos últimos dias estivais, quase totalmente dedicados à preguiça, houve um tema que me deixou especialmente seduzida: os olhos. Olhos muitos, olhos libidinais, olhos cores e funções várias. Todos os textos em que tocava diziam-me: olhos. Neste regresso ao cais, pretendo falar desses olhos que encontrei. Começo por um fragmento que me foi enviado por uma amiga-irmã - uma menina pequenina que, aliás, aprecia muito os olhos humanos. Ela manda-me hoje uma mensagem baptizada de "para os teus olhos". Um bilhete electrónico que diz assim:
"Hoje, enquanto observava uns revôos de borboletas nas cercanias do coreto da Praça da Liberdade, vi a moça entrar dentro dos olhos do namorado, e depois o namorado entrar dentro dos olhos da moça. E a manhã ficou assim: toda só olhos adentrados por outros olhos."
O texto é de Rubem Focs , uma figura deliciosa construída pelas mãos de Paulinho Assunção. Os dedos do escritor brasileiro criam não só figuras imaginárias (e imaginantes, claro está), mas também livros artesanais. Há pouco tempo, Paulinho atribuiu a uma mensageira alada a incumbência de me entregar três das suas obras feitas à mão: "Saberes", "Escreventes" e "Kafka em Belo Horizonte - Volume Um". Este último foi o que mais me tocou. Seleccionei alguns excertos repletos de olhos para transcrever aqui, neste cais sempre aberto à convergência de correntes atlânticas. Hoje, contudo, prefiro começar pelo texto que me foi ofertado, colhido directamente do blog de Paulinho Assunção. É a primeira missanga de um colar de olhos. Não tenho pressa. Vou encontrar as pérolas exactas para compor esta gargantilha. Aceito mais colaborações. Todos os olhos poéticos são bem-vindos, mesmo que lacrimejantes ou vazados.
quarta-feira, outubro 08, 2003
O regresso ao cais
Este cais esteve parado nas últimas semanas. Após o repouso - os barcos também precisam de manutenção -, novas embarcações atracarão ao porto de letras e imagens. Aguardem para breve partidas e chegadas.
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