Mais uma tradução de Pedro Eiras, em homenagem ao filósofo francês:
"Porque, de cada vez, e de cada vez singularmente, de cada vez insubstituivelmente, de cada vez infinitamente, a morte não é nada menos do que um fim do mundo. Não só um fim entre outros, não o fim de alguém ou de algo no mundo, não o fim de uma vida ou de um vivo. A morte não põe um termo a alguém no mundo, nem a um mundo entre outros, a morte marca de cada vez, e de cada vez contra a aritmética, o fim absoluto do único e mesmo mundo, daquilo que cada um abre como um único e mesmo mundo, o fim do único mundo, o fim da totalidade daquilo que é ou pode apresentar-se como a origem do mundo para um certo vivo, um único vivo, humano ou não.
Então, o sobrevivente fica sozinho. Além do mundo do outro, ele fica ainda de algum modo além ou aquém do próprio mundo. No mundo fora do mundo e privado do mundo. Sente-se pelo menos como o único responsável, chamado a transportar em si o outro e o seu mundo, o outro e o mundo desaparecidos, responsável sem mundo (weltlos), sem o solo de qualquer mundo, doravante, num mundo sem mundo, como sem terra mais além do que o fim do mundo."
Béliers. Le dialogue ininterrompu :
entre deux infinis, le poème (2003), p. 23
Um blogue escrito por três pares de mãos separados por águas atlânticas. Uma viagem com escalas no Rio de Janeiro, em Londres e Senhora da Hora.
sexta-feira, outubro 15, 2004
quinta-feira, outubro 14, 2004
Fim da picada
Há um deputado brasileiro (e evangélico) que acredita que o Estado deve investir... na "cura" dos homossexuais! A criatura chama-se Edino Fonseca e, ao que parece, deve sofrer de autismo. Como é que um país como o Brasil, cujo sistema público de saúde está a estourar pelas costuras, pode se dar ao luxo de "tratar" algo que, de resto, não é uma doença? Edino Fonseca deveria, isso sim, ser deportado directamente para a Quinta das Celebridades.
Cartas de Mariana Blanc
A brasileira Mariana Blanc criou um blog com textos antigos, uma espécie de gaveta virtual dos seus apontamentos e contos. É muito curioso, sobretudo para quem conhece a verve desta menina que, sem sombra de dúvida, herdou a poesia do velho Aldir Blanc.
quarta-feira, outubro 13, 2004
Fernando Sabino virou menino
O mundo das palavras sofreu ontem mais uma perda. Fernando Sabino, escritor brasileiro, pede para que escrevam na sua lápide: "nasci homem, morri menino". Recebo a notícia através de uma amiga, que me envia o seguinte texto:
"Hoje Fernando Sabino reinaugura os céus. Assim mesmo - no plural - porque será preciso mais de um para dar conta de sua alegria macunaímica. Leva corpo e alma de menino, como queria, alastrando a inevitável juventude.
Quando os ventos uivarem um canto mais claro, quando a lua alumbrar sem piedade, quando uma estrela driblar o brilho do dia, a certeza: coisa de Fernando em festejo de presença. A partir de hoje, a graça dos céus será dele."
"Hoje Fernando Sabino reinaugura os céus. Assim mesmo - no plural - porque será preciso mais de um para dar conta de sua alegria macunaímica. Leva corpo e alma de menino, como queria, alastrando a inevitável juventude.
Quando os ventos uivarem um canto mais claro, quando a lua alumbrar sem piedade, quando uma estrela driblar o brilho do dia, a certeza: coisa de Fernando em festejo de presença. A partir de hoje, a graça dos céus será dele."
sábado, outubro 09, 2004
Jacques Derrida despede-se aos 74 anos
"Atrás de um romance, ou de um poema, atrás daquilo que é com efeito a riqueza de um sentido a interpretar, não há que procurar um sentido secreto. O segredo de uma personagem, por exemplo, não existe, ela não tem qualquer espessura fora do fenómeno literário. Tudo é secreto na literatura e não existe qualquer segredo escondido atrás dela"
Entrevista do filósofo francês a Antoine Stire, em 2000, publicada na obra "Papier Machine" (2001). Excerto escolhido e traduzido pelo escritor Pedro Eiras (com a sua habitual sensibilidade).
quinta-feira, outubro 07, 2004
EU AMO
Eu amo o teu gravador de chamadas.
Ele não me abandona
e repete vezes sem conta
a tua voz.
Pedro Mexia in "Avalanche (Quasi, 2001)
Ele não me abandona
e repete vezes sem conta
a tua voz.
Pedro Mexia in "Avalanche (Quasi, 2001)
Os acordes do lixo
Tinha que ser no Brasil. A criatividade própria das favelas deu origem, mais uma vez, a uma orquestra feita inteiramente de lixo. O projecto chama-se "Reciclagem, Misancene e Música" e tem sido desenvolvido na comunidade Mangueiral, em Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Canos de PVC, caricas, caixinhas de doces, cascas de árvores e até campainhas de telefones velhos dão origem a instrumentos musicais. Dessa forma, os jovens aprendem a fazer música e a produzir as suas próprias ferramentas de trabalho. Leia mais sobre a iniciativa aqui.
terça-feira, outubro 05, 2004
O perfume e a curiosidade
Há mais de 200 anos, o físico alemão Christof Lichtenberg escreveu no seu diário:
"To invent an infallible remedy against toothache, which would take it away in a moment, might be as valuable and more than to discover a new planet... but I do not know how to start the diary of this year with a more important topic than the news of the new planet".
O cientista queria dizer que a descoberta do planeta Urano, em 1781, era algo importantíssimo para o conhecimento do mundo, independentemente de ter ou não uma utilidade prática. Curiosidade, em síntese.
Foi divulgada, ontem, a atribuição do Prémio Nobel da Medicina 2004 aos investigadores Richard Axel e Linda Buck, ambos norte-americanos. A dupla estudou milhares de genes envolvidos no olfato. Estavam movidos pela curiosidade, embora admitam agora que os seus estudos, publicados em 1991, possam vir a ser úteis no tratamento de pessoas sem olfato. Descobriu-se assim que podemos armazenas numa base de dados cerca de dez mil cheiros, sendo certo que muitos deles nos fazem lembrar o homem amado ou uma fatia da infância.
"To invent an infallible remedy against toothache, which would take it away in a moment, might be as valuable and more than to discover a new planet... but I do not know how to start the diary of this year with a more important topic than the news of the new planet".
O cientista queria dizer que a descoberta do planeta Urano, em 1781, era algo importantíssimo para o conhecimento do mundo, independentemente de ter ou não uma utilidade prática. Curiosidade, em síntese.
Foi divulgada, ontem, a atribuição do Prémio Nobel da Medicina 2004 aos investigadores Richard Axel e Linda Buck, ambos norte-americanos. A dupla estudou milhares de genes envolvidos no olfato. Estavam movidos pela curiosidade, embora admitam agora que os seus estudos, publicados em 1991, possam vir a ser úteis no tratamento de pessoas sem olfato. Descobriu-se assim que podemos armazenas numa base de dados cerca de dez mil cheiros, sendo certo que muitos deles nos fazem lembrar o homem amado ou uma fatia da infância.
Só mesmo no Brasil
O jornalista Marcelo Camacho teve a ideia de reunir em livro 1001 razões para gostar do Brasil. A editora brasileira sextante publicou esta lista afectiva num volume de bolso. A leitura é deliciosa. Seguem alguns exemplos.
1) Tratar garçons de um restaurante pelo nome
2) João Gilberto cantando "Chega de Saudade"
3) Tratar todo mundo por "você" e "senhor", mesmo que seja o presidente da República
4) O bico do tucano
5) Rapadura
6) Ouvir dizer que Deus é brasileiro
7) Os romances policiais de Rubem Fonseca
1) Tratar garçons de um restaurante pelo nome
2) João Gilberto cantando "Chega de Saudade"
3) Tratar todo mundo por "você" e "senhor", mesmo que seja o presidente da República
4) O bico do tucano
5) Rapadura
6) Ouvir dizer que Deus é brasileiro
7) Os romances policiais de Rubem Fonseca
domingo, setembro 26, 2004
terça-feira, julho 27, 2004
Esperar por Borges
"Lembro-me de ter encontrado, há já muitos anos, Jorge Luís Borges. Na porta da sua casa, na rua Maipú, uma pequena placa e cobre: "Borges". La mucama, a governanta que, tenho quase a certeza, se chamava Fanny, como a avó inglesa, abriu-me a porta e conduziu-me ao salão. Ele estava ao fundo, sentado num sofá, com as mãos apoiadas na bengala, a conversar com um indivíduo. Ao longo a parede, sentados em cadeiras, outros esperavam a sua vez: um pretendia o seu patronato para um centro cultural de bairro, outro uma dedicatória, e por aí fora. Qualquer pessoa tinha acesso à casa dele, e mais tarde até me contaram que turistas americanos chegaram ao ponto de se fotografarem ao lado dele. Dir-se-ia a sala de espera de um dentista, embora no dentista não se assista aos tormentos do cliente que nos precede. Fiquei horrorizado. Não tinha qualquer pergunta para lhe fazer."
Este é um excerto do livrinho "Paisagens Originais", de Olivier Rolin (o mesmo de "Porto Sudão"; "A Invenção do Mundo", "O Meu Chapéu Cinzento" e o recente "Tigre de Papel") , editado entre nós pela Asa. Faz parte daquela colecção "Pequenos Prazeres", que, neste momento, está a ser vendida por preços entre os 1, 5 e os 3,5 euros em hipermercados. Nesta obra deliciosa, que se lê em apenas uma ou duas horas, Rolin traça breves perfis de cinco homens memoráveis: Hemingway e Nabokov, por exemplo. Há ainda reproduções de fotos destes autores quando crianças. Vale a pena. Vale muito a pena.
domingo, junho 13, 2004
saladas
Acho que as pessoas que colocam muitas especiarias em saladas, como eu, correm o risco de não detectarem atempadamente insectos furtivos nas dobras das alfaces. Hoje deparei-me com um estranho pedacinho de orégano e indaguei-me se, de facto, tratava-se de um ser do reino animal ou vegetal.
sábado, maio 22, 2004
Manhã improvável
Está sol. Mas uma densa massa branca tolda a paisagem, não se vê além dos nossos tímidos horizontes domésticos, algo a que chamamos janela. Alguém acabou de sair, fechou a porta com pouco cuidado. Escuto Vanessa da Mata cantar "não me deixe só, tenho medo do escuro, tenho medo do inseguro, dos fantasmas da minha voz".
terça-feira, maio 04, 2004
Marrocos
Tenho um amigo que diz sempre que moro em Marrocos, ou seja, Vila Nova de Gaia. Eu nunca compreendi bem estes bairrismos do Norte, até porque nunca soube explicar de forma exacta por que é que eu moro em Gaia e não no Porto ou em Matosinhos. Mas isso não importa. O que interessa é que eu até consigo gostar de Marrocos, aprecio sobretudo a indecisão de um concelho meio agrário, meio urbano, meio balnear. Na janela em frente da qual escrevo há, por exemplo, um quadro anacrónico: vejo duas habitações com hortas contíguas - sim, couves, batatas, salsa, alfaces e árvores frutíferas cultivados por dois casais de idosos - e, ao fundo, o inacreditavelmente brega GaiaShopping, contruído num estilo neo-caravelesco.
Gosto disso. É engraçado.
Hoje, quando voltava a pé dos correios, vi mais um exemplo dessa identidade híbrida. Para espantar os pássaros das suas plantas, um camponês gaiense construiu um artefacto futurista recorrendo a CDs usados e barbante. É uma experiência estética inigualável. Recomendo.
Gosto disso. É engraçado.
Hoje, quando voltava a pé dos correios, vi mais um exemplo dessa identidade híbrida. Para espantar os pássaros das suas plantas, um camponês gaiense construiu um artefacto futurista recorrendo a CDs usados e barbante. É uma experiência estética inigualável. Recomendo.
quinta-feira, abril 15, 2004
Da solidão
"No século XXI, há uma doença que não ousa dizer o seu nome: a solidão. Hoje, solidão é sinónimo de revés amoroso, que por sua vez se tornou um estigma do insucesso actualmente fracassar no amor é como estar desempregado."
"O Suicida Feliz", de Paulo Nogueira (Publicações D. Quixote, 2004)
"O Suicida Feliz", de Paulo Nogueira (Publicações D. Quixote, 2004)
segunda-feira, abril 05, 2004
Finisterra
"O jardim familiar (primeira fase de abandono): montões informes de silvedo, buxo descabelado, urtigas, flores selvagens. As palmeiras de pouco porte incharam tanto que fazem pensar em anões velhos, doentes, com as suas cabeleiras, as suas folhoas emaranhadas, caindo em arco até ao chão".
Carlos de Oliveira
quinta-feira, março 25, 2004
sábado, março 20, 2004
Raízes do Brasil
Começou hoje a ser exibido nas salas de cinema cariocas um documentário de Nelson Pereira dos Santos ("Vidas Secas") chamado "Raízes do Brasil". Trata-se de uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda, historiador que escreveu o famoso livro homónimo. A obra de Pereira dos Santos está divida em dois capítulos, ou seja, em dois filmes. Mas o Espaço Unibanco oferece o bilhete para a segunda sessão na compra de um ingresso para um dos dois filmes. Nesse caso, assisti hoje de enfiada os dois episódios. E só então entendi a oferta: o capítulo um é delicioso, com comentários da família (incluindo o filho Chico Buarque) e de alguns amigos sobre o Sérgio como pai, marido e profissional; ao passo que o segundo episódio é uma compilação de seus apontamentos para um currículo resumido, montado de forma preguiçosa e soporífera.
Vale a pena, isso sim, ver quem viveu com o autor de "Visão do Paraíso" a contar os aspectos mais humanos e curiosos de Sérgio Buarque de Holanda. É delicioso saber que ele lia desbragadamente, ao ponto de ter de fazer conluios com a empregada da família para conseguir manter o vício. Isso porque os sete filhos exigiam uma renda mensal significativa, restando muito pouco para a aquisição de volumes vindos da Inglarterra ou Alemanha. Assim, o professor comprava as obras e entregava à empregada pela janela, antes mesmo de entrar em casa. Depois, tocava a campainha e entrava com as mãos livres de embrulhos. Isso deixava a sua mulher, a sempre zelosa e companheira Maria Amélia, tranquila no que toca ao orçamento doméstico.
O capítulo um conta ainda detalhes preciosos, como o facto do professor ter a superstição de nunca deixar 13 cigarros dentro do maço de tabaco, a mania de não gostar de ver crianças rondando o seu escritório caótico, o gosto de brincar de chapeuzinho vermelho com os netos (deixando o papel mais viril, o do lobo, para as crianças) etc.
O primeiro episódio de "Raízes do Brasil" mostra-nos, numa edição limpa e de bom gosto, o retrato de um homem que soube amar as palavras e o conhecimento sem perder a candura com os amigos e a família. O segundo, no entanto, não passa de um inventário de feitos literários e académicos justaposto com imagens históricas de sucessivos presidentes brasileiros, sem uma contextualização histórica que permitisse às novas gerações compreender a evolução política do país (exactamente o contrário do que Sérgio preconizava), sem o cuidado de encontrar uma liguagem de documentário mais criativa e inovadora. Nada disso. Apenas a repetição, a declaração compassada e a alternância de vozes previsível. A leitura monótona dos textos do autor. Sem produção de significado através da montagem. Sem extrair a beleza da palavra lida. Como se fosse um programa de rádio. Nem parece Nelson Pereira dos Santos.
quinta-feira, março 18, 2004
W. G. Sebald II
Duas fotos de "Os Emigrantes", do escritor W. G. Sebald, aparecem na capa do próprio livro (reproduzida numa mensagem recente neste cais). Elas revelam um cemitério judeu, uma árvore portentosa e uma ferrovia. São elementos muito importantes nas quatro histórias de vida que compõem estas obra. Sebald reconstruiu a partir de diários, imagens, relatos, cartas, pinturas e observações a existência de quatro pessoas que deixaram as suas terras, mas jamais conseguiram abolir o peso da memória.
Há um pintor russo, cujos pais foram deportados e eliminados durante a Segunda Guerra Mundial, que foge para Manchester porque julga que ali esquecerá o passado.
Mas a nossa pré-história é um sobretudo muito comprido, nós fechamos a porta num estrondo e o tecido não deixa o trinco bater. Então nós puxamos a roupa de forma febril, puxamos tudo para conseguir enfim cerrar, selar e trancar a sete chaves essa porta que deixa o turbilhão da lembrança se abater sobre nós. Suspiramos de alívio. Mas quando olhamos à volta, vemos que arrastamos com a cauda do sobretudo os nossos fantasmas e esqueletos mais terríveis. Entramos em desespero e tentamos despir esse casaco inglório, arrancar a peça que nos aquece e congela a alma ao mesmo tempo, mas tudo é vão porque o sobretudo está costurado à pele com uma linha de aço.
O velho pintor só percebe isso muitos anos depois, quando vislumbra em Manchester tudo aquilo que deixou para trás: as cartas dos pais que nunca mais chegaram, a humilhação recorrente, o diário da mãe que só teve força para ler apenas duas vezes. Esta é uma das quatro histórias pungentes que Sebald conta em "Os Emigrantes", um livro recheado de fotos e recortes, elementos que em vez de limitarem a capacidade imaginativa do leitor instigam-na ainda mais. Vale a pena a leitura.
Para quem quiser saber mais sobre este autor alemão, há aqui um artigo interessante de Michael Thorpe sobre como Sebald confronta com os seus textos a amnésia colectiva. Algo que nos faz pensar sobre os recentes atentados de Madrid e Nova Iorque.
Há um pintor russo, cujos pais foram deportados e eliminados durante a Segunda Guerra Mundial, que foge para Manchester porque julga que ali esquecerá o passado.
Mas a nossa pré-história é um sobretudo muito comprido, nós fechamos a porta num estrondo e o tecido não deixa o trinco bater. Então nós puxamos a roupa de forma febril, puxamos tudo para conseguir enfim cerrar, selar e trancar a sete chaves essa porta que deixa o turbilhão da lembrança se abater sobre nós. Suspiramos de alívio. Mas quando olhamos à volta, vemos que arrastamos com a cauda do sobretudo os nossos fantasmas e esqueletos mais terríveis. Entramos em desespero e tentamos despir esse casaco inglório, arrancar a peça que nos aquece e congela a alma ao mesmo tempo, mas tudo é vão porque o sobretudo está costurado à pele com uma linha de aço.
O velho pintor só percebe isso muitos anos depois, quando vislumbra em Manchester tudo aquilo que deixou para trás: as cartas dos pais que nunca mais chegaram, a humilhação recorrente, o diário da mãe que só teve força para ler apenas duas vezes. Esta é uma das quatro histórias pungentes que Sebald conta em "Os Emigrantes", um livro recheado de fotos e recortes, elementos que em vez de limitarem a capacidade imaginativa do leitor instigam-na ainda mais. Vale a pena a leitura.
Para quem quiser saber mais sobre este autor alemão, há aqui um artigo interessante de Michael Thorpe sobre como Sebald confronta com os seus textos a amnésia colectiva. Algo que nos faz pensar sobre os recentes atentados de Madrid e Nova Iorque.
Coisas doces na blogosfera II
É apenas um pouco cedo para dizer isso, mas este é o "post" mais lindo que li este ano. Chama-se "Boas intenções". Para os preguiçosos, transcrevo na íntegra:
"Apetece-me escrever um poema e enterrá-lo bem fundo depois de decorar cada um dos seus versos. Havia de ser o mais belo poema do mundo, sem nenhuma palavra em excesso, luminoso e branco, polido e redondo como uma pérola acabada de trazer do fundo do mar, ainda manchado, porém e por isso, dos limos submarinos, dos segredos do sal, do rumor obscuro das águas que o sol não aquece. Sussurrá-lo-ia uma única vez, baixinho, ao ouvido que pode e sabe escutar. Ali apenas, e no arquivo desorganizado da minha memória, existiria esse poema náutico, só aí ecoaria o rumor e o segredo desses versos de luz. Num e noutro sítio estaria guardado até ao dia distante em que juntos o desenterrássemos e víssemos que a vida nos deu razão aos dois. Nessa manhã havíamos de olhar para trás e ver que a vida foi toda um poema que eu não soube escrever."
"Apetece-me escrever um poema e enterrá-lo bem fundo depois de decorar cada um dos seus versos. Havia de ser o mais belo poema do mundo, sem nenhuma palavra em excesso, luminoso e branco, polido e redondo como uma pérola acabada de trazer do fundo do mar, ainda manchado, porém e por isso, dos limos submarinos, dos segredos do sal, do rumor obscuro das águas que o sol não aquece. Sussurrá-lo-ia uma única vez, baixinho, ao ouvido que pode e sabe escutar. Ali apenas, e no arquivo desorganizado da minha memória, existiria esse poema náutico, só aí ecoaria o rumor e o segredo desses versos de luz. Num e noutro sítio estaria guardado até ao dia distante em que juntos o desenterrássemos e víssemos que a vida nos deu razão aos dois. Nessa manhã havíamos de olhar para trás e ver que a vida foi toda um poema que eu não soube escrever."
quarta-feira, março 17, 2004
Coisas do Brasil IV
Conheci hoje na praia de Copacabana um senhor chamado Luís. Ele trazia no ombro uma alfaia bizarra, um utensílio semelhante àquele que se usa para limpar piscinas, mas à volta da rede circular havia dentes de aço aguçados como os de um forcado. Perguntei: "O senhor usa isso para catar tatuí?" (O tatuí é um bichinho que se esconde na areia molhada da praia, mas que está cada vez mas raro na Zona Sul do Rio de Janeiro devido à poluição.) Ele sorriu, fazendo rugas bonitas na pele queimada pelo sol, e disse que não, não caçava tatuís. "Eu procuro na areia os objectos que as pessoas perdem no mar. O que as águas levam as águas trazem sempre de volta", explicou. Luís trabalha 365 dias por ano e sustenta a família com o seu inusitado garimpo marítmo. Encontra moedas, colares e objectos de metais preciosos. Depois, vende-os. Quanto há espectáculos na praia à noite, chega cedo ao areal na manhã seguinte. Após as oferendas à Iemanjá na passagem de ano, idem. Garimpa, garimpa. Gosta do que faz. E tem orgulho da profissão. Diz que já saiu até uma reportagem sobre ele no Fantástico. Sonha encontrar uma jóia muito, muito preciosa.
terça-feira, março 16, 2004
Telhados de vidro
Como todo mundo, fiquei chocada com o atentado em Madrid e com o lamentável desempenho da tribo de Aznar, que tentou empurrar a batata quente para as mãos da ETA (e depois pagou o pato nas urnas). Depois de tanta coisa escrita nos blogs e nos jornais, não me atreveria a repetir as ideias esmiuçadas durante o período em que não pude "postar" (o computador da minha mãe simplesmente enlouqueceu).
Contudo, há algo que sucede à dor pelo (e do) outro: o olhar trémulo para o próprio quintal. Pelo menos no Brasil, a comunidade portuguesa está agora mais preocupada com um possível atentado em Portugal do que com o que passou em 11 de Março de 2004.
Será que a solidariedade humana pela dor do outro só é possível porque, ainda que inconscientemente, nós tememos a dor que não sentimos mas que podemos vir a sentir? Aquele que sente dor é capaz de sentir compaixão por aquele que enfrenta uma dor homóloga? A dor do outro nos afecta porque é um prenúncio de que a dor pode vir a ser nossa também? Por outras palavras, não será que exaltamos intimamente o facto de estarmos ilesos quando vemos a catástrofe em terras alheias? A dor que sentimos é uma fraternidade ibérica e humana ou um pavor de quem vê a seara do vizinho arder junto às suas posses?
São perguntas para as quais eu não tenho respostas. Susan Sontag aponta alguns caminhos plausíveis em "Olhando o Sofrimento dos Outros", livro do qual já falei neste cais.
Contudo, há algo que sucede à dor pelo (e do) outro: o olhar trémulo para o próprio quintal. Pelo menos no Brasil, a comunidade portuguesa está agora mais preocupada com um possível atentado em Portugal do que com o que passou em 11 de Março de 2004.
Será que a solidariedade humana pela dor do outro só é possível porque, ainda que inconscientemente, nós tememos a dor que não sentimos mas que podemos vir a sentir? Aquele que sente dor é capaz de sentir compaixão por aquele que enfrenta uma dor homóloga? A dor do outro nos afecta porque é um prenúncio de que a dor pode vir a ser nossa também? Por outras palavras, não será que exaltamos intimamente o facto de estarmos ilesos quando vemos a catástrofe em terras alheias? A dor que sentimos é uma fraternidade ibérica e humana ou um pavor de quem vê a seara do vizinho arder junto às suas posses?
São perguntas para as quais eu não tenho respostas. Susan Sontag aponta alguns caminhos plausíveis em "Olhando o Sofrimento dos Outros", livro do qual já falei neste cais.
segunda-feira, março 15, 2004
Coisas do Brasil III
Há árvores na Rua Primeiro de Março, no Rio de Janeiro, que dão flores roxas incrivelmente belas. Ninguém cultiva ou rega as plantas. Só a chuva e a sabedoria da pouca terra que lhe dá sustento.
quinta-feira, março 11, 2004
Coisas do Brasil II
Penso que, quando nomeamos um objecto, uma pessoa ou um projecto, depositamos na palavra que escolhemos um peso que vai além do somatório das letras que compõem essa mesma palavra. Ou seja, a junção das partes é inexplicavelmente maior que o todo. Nos interstícios, entre cada vogal ou consoante, há um lastro do tempo e do lugar nos quais pronunciamos um nome.
No Rio de Janeiro, em Novembro de 2003, o Secretário de Segurança Anthony Garotinho deu início à operação "Pressão Máxima". Na sua edição de hoje, o Jornal do Brasil diz que cresceu o número de mortos em confronto com a polícia. Até ontem, 61 pessoas foram eliminadas nas favelas cariocas no âmbito do "Pressão Máxima". O resultado de uma perícia, divulgado ontem, provou que um tiro disparado por um polícia na Favela Beira-Mar "matou dois inocentes".
No Rio de Janeiro, em Novembro de 2003, o Secretário de Segurança Anthony Garotinho deu início à operação "Pressão Máxima". Na sua edição de hoje, o Jornal do Brasil diz que cresceu o número de mortos em confronto com a polícia. Até ontem, 61 pessoas foram eliminadas nas favelas cariocas no âmbito do "Pressão Máxima". O resultado de uma perícia, divulgado ontem, provou que um tiro disparado por um polícia na Favela Beira-Mar "matou dois inocentes".
quarta-feira, março 10, 2004
Cinema mental
O médico britânico Oliver Sacks, num texto publicado originalmente na "New York Review of books", coloca-nos questões sobre o fluxo de consciência. É que, nos últimos tempos, a neurociência investiga se, como num filme, a percepção mental é o resultado de um somatório de vários instantâneos captados pelo nosso cérebro. Já ouvimos falar muitas vezes do "fluxo de consciência" na literatura, ou seja, quando os escritores reproduzem a torrente de ideias dos seus personagens utilizando uma técnica homónima. Sacks questiona a aparente continuidade destas imagens mentais. A percepção do movimento, sustenta o investigador radicado nos Estados Unidos, pode ser uma construção feita segundo uma determinada actividade neural. Assim, o "filme" das nossas vidas que (dizem) assistimos quando estamos prestes a morrer seria, por exemplo, montado a partir de frameworks.
"Em outras palavras, o senso de continuidade resulta da sobreposição contínua de momentos perceptivos sucessivos", escreve Sacks, num texto traduzido por Clara Allain para o suplemento Mais!.
Nós, os humanos, fomos brindados com estas pequeninas câmeras internas. Temos um laboratório cinematográfico dentro das nossas cabeças, com sala de montagem e tudo. Este dispositivo terá surgido primeiro nos répteis, há um quarto de bilhão de anos. As rãs, por exemplo, não têm consciência dinâmica. O dom que temos nos permite ter uma singularidade, uma forma própria de apreendermos o real.
"Enquanto escrevo, estou sentado num café da Sétima Avenidam observando o mundo passar. Minha atenção se volta para um lado e para outro - uma garota de vestido vermelho passa ao lado, um homem passeando com o seu cachorro engraçado, o sol finalmente emergindo de trás das nuvens.
Todos estes acontecimentos que captam a minha atenção por um momento, enquanto acontecem. Por que, entre mil percepções possíveis, são essas que eu tenho? Reflexões, memórias e associações estão por trás delas. Pois a consciência é sempre activa e selectiva - carregada de sentimentos e sentidos exclusivamente nossos, informando nossas escolhas e refundindo nossas percepções. Assim, não é simplesmente a Séptima Avenida que eu vejo, mas a minha Séptima Avenida, marcada pela minha própria identidade, o meu eu."
No fim do seu brilhante artigo, Sacks diz que, assim, "somos os directores do filme que fazemos- mas também, em grau igual, seus sujeitos". "Cada quadro, cada momento, é nós, é nosso - como diz Proust, nossas formas estão esboçadas em cada um, mesmo que não tenhamos outra existência, outra realidade senão essa."
terça-feira, março 09, 2004
Coisas do Brasil I
No Rio de Janeiro, os semáforos têm um relógio digital que faz a contagem decrescente dos segundos que restam para os peões (transeuntes) atravessarem a rua. Não existe um dispositivo similar para motoristas.
E as empregadas domésticas dormem na casa das patroas mesmo tendo marido e filhos em casa.
E os reclusos comandam acções de violência na cidade como forma de protesto pelas medidas de repressão dentro do presídio. O director da cadeia de Bangu 1 foi assassinado. É o quatro nos últimos quatro anos. Quem está dentro das grades define como estará o clima do lado de fora: insegurança tranquila ou pânico total. Os presos estão insatisfeitos com as duras medidas tomadas nos últimos tempos, que restringiram os banhos de sol e as visitas íntimas.
E as empregadas domésticas dormem na casa das patroas mesmo tendo marido e filhos em casa.
E os reclusos comandam acções de violência na cidade como forma de protesto pelas medidas de repressão dentro do presídio. O director da cadeia de Bangu 1 foi assassinado. É o quatro nos últimos quatro anos. Quem está dentro das grades define como estará o clima do lado de fora: insegurança tranquila ou pânico total. Os presos estão insatisfeitos com as duras medidas tomadas nos últimos tempos, que restringiram os banhos de sol e as visitas íntimas.
W. G. Sebald
O escritor alemão Sebald, nascido em 1944, morreu há três anos. Deixou-nos livros como "Os Emigrantes" e "Os Anéis de Saturno". São obras com fotos e imagens, bem como notícias de jornais verdadeiras, que funcionam como elementos constitutivos da própria narrativa. Por outras palavras, estes fragmentos do real também estão ali para contar história e interagem semanticamente com a teia narrativa.
Numa entrevista concedida (pouco antes da sua morte) a Michael Zeeman, publicada no "La Vanguardia", o autor explica porque sente necessidade de incluir estes fragmentos do real na sua ficção. Diz não ter "muita certeza de ser capaz de dotar de sentido" tais fotografias e recortes, mas reconhece que "em todo o caso, há a tentativa de dar uma prova" de que aquilo que está selado sob o pacto da ficção de facto ocorreu. Depois, fala da singeleza da memória que move a sua escrita:
"A fotografia está destinada a se perder no fundo de uma caixa ou de um vão. É um objecto nómada, com poucas probabilidades de sobreviver, e me parece que todos experimentamos essa sensação de encontrar acidentalmente um documento fotográfico de um parente morto ou de um desconhecido. Sentimos então uma espécie de atracção pelo facto de tê-lo encontrado depois de algumas décadas. Imediatamente ele volta, cruza o umbral e diz: "Ei, um momento, eu também existi, por favor, ocupe-se de mim por um instante". São essas coisas sem valor em si mesmas que, não sei como, me fazem trabalhar." (Tradução de Luiz Roberto Mendes para o suplemento Mais!)
Depois de ler esta entrevista, vou já à Livraria Travessa, em Ipanema, comprar um exemplar de Sebald. No Brasil, eles estão editados pela Record.
sexta-feira, março 05, 2004
Paul Ricoeur
O próximo número dos "Cahiers de l´Herne" vão dedicar ao filósofo francês o seu próximo número, com lançamento previsto para Março. De acordo com o jornal "O Estado de São Paulo", "o volume incluirá textos inéditos e dispersos de Paul Ricoeur e cerca de vinte estudos da sua obra, assinados por entre outros Jacques Derrida e Julia Kristeva". Não dá para perder.
Paul Ricoeur nasceu em 1913 e é considerado um dos principais pensadores da hermenêutica (ou seja, a filosofia da interpretação). Foi professor na Universidade de Estrasburgo, mas também na Sorbonne e em Chicago. Publicou numerosos livros fascinantes, que falam da literatura e da filosofia com palavras simples, sem o peso do saber arrogante. Entre eles destaco o portentoso "Tempo e Narrativa".
Quem compreender o amor que tem pelos livros, percebe logo porque escreve com simplicidade: Ricoeur HABITA as suas páginas. Pelo menos foi o que confessou numa entrevista recente a Roger-Pol Droit, publicada no "Le Monde":
"Sou um leitor há já 70 anos! Minha biblioteca usual é, portanto, imensa. E, quando leio um autor, creio nele, pertenço inteiramente a ele. Torno-me Espinosa quando leio Espinosa. Esse hábito vem de muito longe. Quando eu era jovem professor em Estrasburgo, em 1948, decidi ler um autor de cabo a rabo durante um ano, portanto viver num autor. Para ensinar bem um autor, é preciso habitá-lo! A seguir, a vida obriga-nos a morar em várias casas. "
quarta-feira, março 03, 2004
Regresso
Quase não tem havido notícias do cais nos últimos tempos. Reconheço a minha preguiça e prometo um regresso.
terça-feira, fevereiro 10, 2004
Perfeição de O´Neill
“A Ampola Miraculosa”, de Alexandre O´Neill (Assírio & Alvim, edição fac-similada e com tiragem limitada publicada em 2002)
Adormeci certamente por intervenção da misteriosa ampola que descia do tecto... dormindo de uma maneira estranha. Naquele tempo, eu e minha mulher fazíamos ginástica na praia. A nossa noite de amor foi maravilhosa! Na almofada, encontrava-se um enorme insecto...bastante maior do que um homem. Uma terrível obsessão se apoderou de mim! Os meus primos tinham fama de malucos... e, às vezes, reuníamos convenientemente disfarçados... segundo o método Legrange. Vivi, então, com Luigi Poleoccapa, engenheiro de Espelhos. Como dois irmãos... dormindo descansadamente.
Adormeci certamente por intervenção da misteriosa ampola que descia do tecto... dormindo de uma maneira estranha. Naquele tempo, eu e minha mulher fazíamos ginástica na praia. A nossa noite de amor foi maravilhosa! Na almofada, encontrava-se um enorme insecto...bastante maior do que um homem. Uma terrível obsessão se apoderou de mim! Os meus primos tinham fama de malucos... e, às vezes, reuníamos convenientemente disfarçados... segundo o método Legrange. Vivi, então, com Luigi Poleoccapa, engenheiro de Espelhos. Como dois irmãos... dormindo descansadamente.
quinta-feira, fevereiro 05, 2004
Gonçalo M Tavares
"Tenho pedras no bolso.
Muitas pedras no bolso.
Troco duas pedras por uma máquina de pensar.
Quando penso dói-me a cabeça.
Daí as pedras
Tenho 5 pedras no bolso porque penso mal 5 vezes.
Tenho 5 pedras nos bolsos"
in "O Homem ou é Tonto ou é Mulher"
Hoje é dia de Gonçalo M Tavares nas "Quintas de Leitura" do Teatro do Campo Alegre, no Porto. A sessão poética começa às 21h30.
Muitas pedras no bolso.
Troco duas pedras por uma máquina de pensar.
Quando penso dói-me a cabeça.
Daí as pedras
Tenho 5 pedras no bolso porque penso mal 5 vezes.
Tenho 5 pedras nos bolsos"
in "O Homem ou é Tonto ou é Mulher"
Hoje é dia de Gonçalo M Tavares nas "Quintas de Leitura" do Teatro do Campo Alegre, no Porto. A sessão poética começa às 21h30.
domingo, janeiro 25, 2004
A função da arte
É o tipo de citação para ser usada em intermináveis discussões sobre a função da arte (que, a bem dizer, tem um fim em si própria):
"Não existe diplomacia económica sem diplomacia cultural. Só se investe num país que tem imagem, que tem imagens e imaginário. Ninguém investe no que não conhece, no que não existe. E os melhores fabricantes de imagem são os artistas. São eles, no contexto da globalização e da virtualização, os construtores da identidade fluida de um país."
"O território das artes", artigo de Paulo Cunha e Silva publicado no DN de hoje
"Não existe diplomacia económica sem diplomacia cultural. Só se investe num país que tem imagem, que tem imagens e imaginário. Ninguém investe no que não conhece, no que não existe. E os melhores fabricantes de imagem são os artistas. São eles, no contexto da globalização e da virtualização, os construtores da identidade fluida de um país."
"O território das artes", artigo de Paulo Cunha e Silva publicado no DN de hoje
sexta-feira, janeiro 23, 2004
Robert Capa
"A fotografia é como uma citação, uma máxima ou um provérbio. Todos nós armazenamos mentalmente centenas de fotografias, disponíveis para serem lembradas instantaneamente. Cite-se a mais famosa fotografia tirada durante a Guerra Civil de Espanha, a do soldado republicano «apanhado» pela objectiva de Robert Capa no próprio momento em que é atingido por uma bala inimiga, e possivelmente todos os que alguma vez foram capazes de trazer ao espírito a granulosa imagem a preto e branco de um homem de camisa branca com mangas arregaçadas tombando para trás em cima de uma pequena elevação, o braço direito estendido para trás enquanto a espingarda lhe escapa da mão; prestes a cair, morto, na sua própria sombra.
É uma imagem chocante, e o ponto é esse. Alistadas como parte do jornalismo, contava-se com as imagens para prender a atenção, sobressaltar, surpreender."
in "Olhando o Sofrimento dos Outros" (Gótica, 2003), de Susan Sontag
quinta-feira, janeiro 22, 2004
Regresso de Carlos Vaz Marques
Depois de ter esquecido a senha do seu blogue, e deixado milhares de leitores sedentos, Carlos Vaz Marques resolveu o assunto. Adquiriu uma nova casa, desta vez sob a chancela "blogspot". Obrigada, CVM. Eu já sentia angústia quando via aquele par de sapatos na sua antiga morada .
Ítaca feminina
A Inês tinha hoje um livro lindo nas mãos. Chama-se "Poesia" de Daniel Faria (Quasi, 2003) . Resolvi trazer um dos poemas para o cais.
"Ítaca"
O que dói
É não poder apagar a tua ausência
e repetir dia após dia os mesmos gestos
O que dói
é o teu nome que ficou como mendigo
Descoberto em cada esquina dos meus versos
O que dói
é tudo mais aquilo que desteço
Ao tecer para ti novos regressos
Gostei deste poema por vários motivos. Primeiro porque se trata de uma Ítaca feminina. Explico melhor: a terra mítica e pedregosa, nestes versos, não é aquela que Ulisses almeja saudosamente rever, mas sim o espaço onde Penélope resiste sem notícias. O ponto de vista não é daquele que parte, mas sim de quem fica. Então a poesia não está no tom épico de aventuras de mares desbravados, pelo contrário, está na dor da permanência, no compasso de espera, na repetição dos gestos, na angústia da espera. "O que dói".
Há quem diga que Ulisses fez um belíssimo negócio. Viajou loucamente, fez amor com várias mulheres e, vinte anos depois, passou por ser o bonzinho que regressava para o lado da sua amada. Não foi cobrado pelas suas traições. Enquanto isso, a Penélope ficou que nem uma idiota a recusar pretendentes e a destecer uma manta inacabável. Há quem diga.
Claro está que as aventuras também implicaram muito sofrimento e, acima de tudo, quando Ulisses chegou a Ítaca nada escondeu da mulher. Relatou desde a sua vitória aos Cícones, passando por terras férteis como Lotófagos, até aos "variados artifícios de Circe". Falou ainda da "mansão bolorenta de Hades", das vozes das sereias e da ilha de Ogígia, onde encontrou a ninfa Calipso. Ulisses relata que esta fez de tudo para que ele se tornasse seu marido, prometendo até mesmo a imortalidade, mas, como fez questão de frisar, o rei de Ítaca preferiu a finitude de uma vida ao lado de uma Penélope envelhecida. Tudo isto é muito belo e sempre que leio esta passagem fico emocionada. Mas também é verdade que Ulisses saboreia bem a bela Calipso antes de tomar a decisão. Aliás, eu acho que é justamente o facto dele preferir uma "velhice feliz" na sua saudosa Ítaca que redime as suas traições aos olhos do leitor.
"Mulher, já tivemos ambos a nossa cota de sofrimentos:
tu chorando aqui em casa por causa do meu regresso difícil;
e eu porque Zeus e os outros deuses me ataram com desgraças,
longe da terra pátria, embora a ela eu quisesse regressar."
("Odisseia" de Homero, tradução de Frederico Lourenço, Cotovia, 2003, versos 350-354 do canto XXIII)
O que Daniel Faria expõe é a Ítaca dolorosa, muito diferente de outras que já foram cantadas. Manuel Alegre, por exemplo, reitera a ideia de uma Ítaca como um porto seguro - apesar de contemporânea, lusitana e urbana -, para onde se pode sempre regressar após o contacto com o mundo exterior. Uma zona de calmaria onde há sempre alguém à espera, um corpo fiel a zelar pelo trono e pela família. Alguém que cuida de filhos, que ajuda o marido a tirar o casaco.
"Penélope ou o Terceiro Poema do Português Errante"
Todos os dias pergunto por Penélope
todos os dias procuro o seu tapete
às vezes chego cansado ao fim da tarde
com todos os regressos bloqueados
e no meio das filas de trânsito procuro
o caminho perdido para Ítaca.
E quando bato à porta molhado até aos ossos
encharcado de chuva de tédio e de desastres
eis que por vezes surges de entre os filhos e as rotinas
aquela a quem perguntei se queria vir
quando bordava um tapete e eu tinha um barco.
Então eu lembro a casa no exílio
a pequena gravura de Ítaca
o poema de Cavafy
lembro o primeiro filho as fraldas o receio
de lhe pegar no colo e dar-lhe banho.
Passaram tantas luas tantos mares
mas tu abres a porta e estás à espera
ajudas-me a despir o sobretudo
e de repente eu sei que estou de volta
como Ulisses à tão amada Ítaca.
(in "Livro do Português Errante", Publicações D. Quixote, 2001)
Confesso que estou à espera de uma Penélope que não fica à espera. Como Molly Bloom. Uma Penélope em versos que, no auge da sua juventude, desenvolve a sua sexualidade, experimenta guerreiros e súbditos interessantes. Que tece uma manta apenas para aquecer a própria alma. E, quando Ulisses voltar, que coisa linda. Ambos terão histórias para contar um para o outro, em pé de igualdade. E se amarão ainda mais talvez sobre o leito famoso feito de uma oliveira, com a certeza de que terão um tempo de felicidade um ao lado do outro.
"Ítaca"
O que dói
É não poder apagar a tua ausência
e repetir dia após dia os mesmos gestos
O que dói
é o teu nome que ficou como mendigo
Descoberto em cada esquina dos meus versos
O que dói
é tudo mais aquilo que desteço
Ao tecer para ti novos regressos
Gostei deste poema por vários motivos. Primeiro porque se trata de uma Ítaca feminina. Explico melhor: a terra mítica e pedregosa, nestes versos, não é aquela que Ulisses almeja saudosamente rever, mas sim o espaço onde Penélope resiste sem notícias. O ponto de vista não é daquele que parte, mas sim de quem fica. Então a poesia não está no tom épico de aventuras de mares desbravados, pelo contrário, está na dor da permanência, no compasso de espera, na repetição dos gestos, na angústia da espera. "O que dói".
Há quem diga que Ulisses fez um belíssimo negócio. Viajou loucamente, fez amor com várias mulheres e, vinte anos depois, passou por ser o bonzinho que regressava para o lado da sua amada. Não foi cobrado pelas suas traições. Enquanto isso, a Penélope ficou que nem uma idiota a recusar pretendentes e a destecer uma manta inacabável. Há quem diga.
Claro está que as aventuras também implicaram muito sofrimento e, acima de tudo, quando Ulisses chegou a Ítaca nada escondeu da mulher. Relatou desde a sua vitória aos Cícones, passando por terras férteis como Lotófagos, até aos "variados artifícios de Circe". Falou ainda da "mansão bolorenta de Hades", das vozes das sereias e da ilha de Ogígia, onde encontrou a ninfa Calipso. Ulisses relata que esta fez de tudo para que ele se tornasse seu marido, prometendo até mesmo a imortalidade, mas, como fez questão de frisar, o rei de Ítaca preferiu a finitude de uma vida ao lado de uma Penélope envelhecida. Tudo isto é muito belo e sempre que leio esta passagem fico emocionada. Mas também é verdade que Ulisses saboreia bem a bela Calipso antes de tomar a decisão. Aliás, eu acho que é justamente o facto dele preferir uma "velhice feliz" na sua saudosa Ítaca que redime as suas traições aos olhos do leitor.
"Mulher, já tivemos ambos a nossa cota de sofrimentos:
tu chorando aqui em casa por causa do meu regresso difícil;
e eu porque Zeus e os outros deuses me ataram com desgraças,
longe da terra pátria, embora a ela eu quisesse regressar."
("Odisseia" de Homero, tradução de Frederico Lourenço, Cotovia, 2003, versos 350-354 do canto XXIII)
O que Daniel Faria expõe é a Ítaca dolorosa, muito diferente de outras que já foram cantadas. Manuel Alegre, por exemplo, reitera a ideia de uma Ítaca como um porto seguro - apesar de contemporânea, lusitana e urbana -, para onde se pode sempre regressar após o contacto com o mundo exterior. Uma zona de calmaria onde há sempre alguém à espera, um corpo fiel a zelar pelo trono e pela família. Alguém que cuida de filhos, que ajuda o marido a tirar o casaco.
"Penélope ou o Terceiro Poema do Português Errante"
Todos os dias pergunto por Penélope
todos os dias procuro o seu tapete
às vezes chego cansado ao fim da tarde
com todos os regressos bloqueados
e no meio das filas de trânsito procuro
o caminho perdido para Ítaca.
E quando bato à porta molhado até aos ossos
encharcado de chuva de tédio e de desastres
eis que por vezes surges de entre os filhos e as rotinas
aquela a quem perguntei se queria vir
quando bordava um tapete e eu tinha um barco.
Então eu lembro a casa no exílio
a pequena gravura de Ítaca
o poema de Cavafy
lembro o primeiro filho as fraldas o receio
de lhe pegar no colo e dar-lhe banho.
Passaram tantas luas tantos mares
mas tu abres a porta e estás à espera
ajudas-me a despir o sobretudo
e de repente eu sei que estou de volta
como Ulisses à tão amada Ítaca.
(in "Livro do Português Errante", Publicações D. Quixote, 2001)
Confesso que estou à espera de uma Penélope que não fica à espera. Como Molly Bloom. Uma Penélope em versos que, no auge da sua juventude, desenvolve a sua sexualidade, experimenta guerreiros e súbditos interessantes. Que tece uma manta apenas para aquecer a própria alma. E, quando Ulisses voltar, que coisa linda. Ambos terão histórias para contar um para o outro, em pé de igualdade. E se amarão ainda mais talvez sobre o leito famoso feito de uma oliveira, com a certeza de que terão um tempo de felicidade um ao lado do outro.
quarta-feira, janeiro 21, 2004
Mia Couto
"Não é da luz do sol que carecemos. Milenarmente a grande estrela que iluminou a terra e, afinal, nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto sob outra luz: a luz do luar, essa claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o lado feminino dos seres. Só a lua revela a intimidade da nossa morada terrestre.
Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra."
Esta passagem serve de epígrafe ao livro “Contos do Nascer da Terra”, de Mia Couto, que me chegou hoje pelo correio. É por estas pequenas surpresas que adoro o a partilha de livros .
Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra."
Esta passagem serve de epígrafe ao livro “Contos do Nascer da Terra”, de Mia Couto, que me chegou hoje pelo correio. É por estas pequenas surpresas que adoro o a partilha de livros .
segunda-feira, janeiro 12, 2004
Coisas doces na blogosfera
O Jorge diz que é mestre em crepes de chocolate. A Alexandra confessa que adora quando alguém senta ao seu lado com um livro (o que está a ler? Por que escolheu esta obra?). O Projecto fala-nos do trabalho apreciável dos arquitectos que encontram soluções para crises humanitárias. O Pipo vê o amanhecer do Porto e diz que avança “devagar como se caminhasse para onde os deuses me esperam”, ao passo que ao Marmelo apetece-lhe pegar bocados de névoa com as próprias mãos.
Mais comunidades de leitores
A exemplo da Comunidade de Leitores que já existe na Biblioteca Almeida Garrett, criada no Porto por Manuel Pina, Maria João Seixas vai orientar um grupo de bibliófilos na Fundação de Serralves. A iniciativa arranca no dia 29 de Janeiro e será composta por seis sessões. Quem quiser participar já pode começar algum dos livros abaixo:
"Antígona", de Sófocles (29 de Janeiro)
"Cartas de uma Religiosa Portuguesa" (12 de Fevereiro)
"No Reino da Dinamarca", de Alexandre O'Neill (26 de Fevereiro)
"A Hora da Estrela", de Clarisse Lispector (11 de Março)
"Desconhecido nesta Morada", de Katharine Kressmann Taylor (25 de Março)
"O Leitor", de Bernard Schlink (8 de Abril)
O Público também avisa que em Lisboa, “a Culturgest dá continuidade ao ciclo "Os Livros em Volta", com a sétima edição a arrancar no próximo dia 20 e a prolongar-se até 16 de Março. Iniciativa conjunta com o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, este programa de debates quer igualmente pôr em diálogo escritores e leitores, a partir do destaque de uma obra de uma editora menos conhecida e de livros de diversos géneros e áreas, das artes à história, das ciências sociais à ficção, da poesia ao ensaio. A sessão do dia 20 será dedicada à ficção portuguesa e terá como moderador o crítico literário Pedro Mexia. Segue-se, dia 27, a ficção estrangeira, com Mário Jorge Torres; dia 3 de Fevereiro, as artes, com António Pinto Ribeiro; dia 10, a poesia, com Fernando Pinto do Amaral; e dia 17, a literatura infanto-juvenil, com Alice Vieira. Em Março, os temas serão o ensaio (dia 2, com Eduardo Prado Coelho), a ciência (dia 9, com José Mariano Gago) e, a finalizar o ciclo, a história e as ciências sociais (dia 16, com António Costa Pinto)”.
"Antígona", de Sófocles (29 de Janeiro)
"Cartas de uma Religiosa Portuguesa" (12 de Fevereiro)
"No Reino da Dinamarca", de Alexandre O'Neill (26 de Fevereiro)
"A Hora da Estrela", de Clarisse Lispector (11 de Março)
"Desconhecido nesta Morada", de Katharine Kressmann Taylor (25 de Março)
"O Leitor", de Bernard Schlink (8 de Abril)
O Público também avisa que em Lisboa, “a Culturgest dá continuidade ao ciclo "Os Livros em Volta", com a sétima edição a arrancar no próximo dia 20 e a prolongar-se até 16 de Março. Iniciativa conjunta com o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, este programa de debates quer igualmente pôr em diálogo escritores e leitores, a partir do destaque de uma obra de uma editora menos conhecida e de livros de diversos géneros e áreas, das artes à história, das ciências sociais à ficção, da poesia ao ensaio. A sessão do dia 20 será dedicada à ficção portuguesa e terá como moderador o crítico literário Pedro Mexia. Segue-se, dia 27, a ficção estrangeira, com Mário Jorge Torres; dia 3 de Fevereiro, as artes, com António Pinto Ribeiro; dia 10, a poesia, com Fernando Pinto do Amaral; e dia 17, a literatura infanto-juvenil, com Alice Vieira. Em Março, os temas serão o ensaio (dia 2, com Eduardo Prado Coelho), a ciência (dia 9, com José Mariano Gago) e, a finalizar o ciclo, a história e as ciências sociais (dia 16, com António Costa Pinto)”.
sábado, janeiro 10, 2004
Imensidão gelada
Foto de Mario Chainho
"Viagem"
Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura
O que importa é partir, não é chegar.
Miguel Torga
sexta-feira, janeiro 09, 2004
Estrangeiros & Imigrantes
Pegando carona (ou boleia) na discussão "estrangeiros & imigrantes" levantada no querido Aviz , transcrevo aqui uma mensagem enviada pelo Nuno . Espero que ele não se importe.
"Portugal sempre foi um País de emigrantes.
Ainda não há muito tempo, uma parte significativa do nosso PIB resultava das remessas desses mesmos emigrantes.
Com a adesão à U.E., o nosso nível de vida melhorou significativamente, tornando menor esse fluxo emigracional.
Em compensação, com a globalização crescente da economia e a queda do Muro de Berlim, passou a dominar um fenómeno oposto o da imigração, que aos africanos do pós-25 de Abril somava agora brasileiros e cidadãos de várias nacionalidades do Leste Europeu.
De uma forma geral, cidadãos que procuram em Portugal o que os nossos pais e avós procuraram em França, Alemanha, EUA, Canadá, entre outros, uma vida melhor para si e para os seus.
De acordo com os números oficiais, existirão em Portugal cerca de meio milhão de estrangeiros, sendo a comunidade brasileira aquela que maior peso tem.
São cidadãos que, na sua imensa maioria, executam em Portugal trabalhos pesados e mal remunerados que, de uma forma geral, os portugueses não querem desempenhar, como trabalhos de construção civil, restauração, engomadoria e outros do género.
Com o surto de desemprego que se abateu sobre o país, rapidamente começaram a surgir as notícias sobre as máfias de Leste, os problemas com negros nos bairros periféricos e degradados das grandes cidades, nomeadamente Lisboa (curiosamente na sua maioria estes problemas surgem com negros 100% portugueses, normalmente 2ªs e 3ªs gerações revoltadas com as condições de vida que têm) e as histórias de vigarices com brasileiros.
E rapidamente os estrangeiros que fazem o trabalho que não queremos fazer passam a ser os odiados. Tendo em conta a recente sondagem do Público, que diz que 75% dos portugueses não querem mais emigrantes, que ciclicamente existem problemas com as comunidades ciganas e o fait-divers que foi a discussão sobre a eliminação de todos os negros no programa Ídolos, ficando para o final os concorrentes brancos, por votação directa dos espectadores, a questão que se põe a debate é:
Somos um povo xenófobo?
Infelizmente, cada vez estou mais convencido que sim..."
Aproveito a oportunidade para listar três casos de preconceito com brasileiros:
1) O músico Léo veio a Portugal, no final de Dezembro de 2003, para tocar no Algarve com Carlinhos Brown durante a passagem de ano. Foi até ao Algarve Shopping comprar um par de sapatilhas e diz ter sido perseguido por um segurança do equipamento ao longo de toda a sua visita. Contou que esta será uma má recordação que levará de Portugal. E sabe que isto só aconteceu porque é negro, brasileiro. Não estava de fato, mas sim com calças de ganga largas e um gorro no melhor estilo rastafari. Diz ter até comprado as sapatilhas, na esperança de que a atitude mostrasse de alguma forma ao segurança que não era necessário segui-lo, que ele era de facto um consumidor com poder de compra.
2) Um grupo de brasileiros que veio a Portugal participar num congresso literário, em 2003, teve as suas malas reviradas de forma agressiva no Aeroporto de Lisboa. Uma das mulheres do grupo disse que foi tratada com algum desrespeito e até um jeito sonso. É tempo de cantar a canção de Maria Rita - que, aliás, nos deu ontem um show (concerto) memorável -, aquela que diz que "nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda".
3) O funcionário que me atendeu na Fnac do GaiaShopping, em Novembro de 2003, quando eu estava a pedir o meu cartão de aderente, não soube interpretar as informações contidas no meio bilhete de identidade. Confundiu "naturalidade" com "nacionalidade" e pensou que eu incorria no terrível erro, no equívoco geográfico que é ser brasileira. Ficou incomodado, ligou para Lisboa, chamou um superior hierárquico. Perguntou se eu não tinha um telefone fixo, se só tinha mesmo o telemóvel. O constrangimento durou cerca de dez minutos, até que o seu chefe chegou à nossa mesa, sobre a qual estavam todos os documentos exigidos para se ter um cartão de aderente, e afirmou com algum alívio: "Ah, ela não é brasileira! Ela só nasceu no Brasil, mas é portuguesa!"
"Portugal sempre foi um País de emigrantes.
Ainda não há muito tempo, uma parte significativa do nosso PIB resultava das remessas desses mesmos emigrantes.
Com a adesão à U.E., o nosso nível de vida melhorou significativamente, tornando menor esse fluxo emigracional.
Em compensação, com a globalização crescente da economia e a queda do Muro de Berlim, passou a dominar um fenómeno oposto o da imigração, que aos africanos do pós-25 de Abril somava agora brasileiros e cidadãos de várias nacionalidades do Leste Europeu.
De uma forma geral, cidadãos que procuram em Portugal o que os nossos pais e avós procuraram em França, Alemanha, EUA, Canadá, entre outros, uma vida melhor para si e para os seus.
De acordo com os números oficiais, existirão em Portugal cerca de meio milhão de estrangeiros, sendo a comunidade brasileira aquela que maior peso tem.
São cidadãos que, na sua imensa maioria, executam em Portugal trabalhos pesados e mal remunerados que, de uma forma geral, os portugueses não querem desempenhar, como trabalhos de construção civil, restauração, engomadoria e outros do género.
Com o surto de desemprego que se abateu sobre o país, rapidamente começaram a surgir as notícias sobre as máfias de Leste, os problemas com negros nos bairros periféricos e degradados das grandes cidades, nomeadamente Lisboa (curiosamente na sua maioria estes problemas surgem com negros 100% portugueses, normalmente 2ªs e 3ªs gerações revoltadas com as condições de vida que têm) e as histórias de vigarices com brasileiros.
E rapidamente os estrangeiros que fazem o trabalho que não queremos fazer passam a ser os odiados. Tendo em conta a recente sondagem do Público, que diz que 75% dos portugueses não querem mais emigrantes, que ciclicamente existem problemas com as comunidades ciganas e o fait-divers que foi a discussão sobre a eliminação de todos os negros no programa Ídolos, ficando para o final os concorrentes brancos, por votação directa dos espectadores, a questão que se põe a debate é:
Somos um povo xenófobo?
Infelizmente, cada vez estou mais convencido que sim..."
Aproveito a oportunidade para listar três casos de preconceito com brasileiros:
1) O músico Léo veio a Portugal, no final de Dezembro de 2003, para tocar no Algarve com Carlinhos Brown durante a passagem de ano. Foi até ao Algarve Shopping comprar um par de sapatilhas e diz ter sido perseguido por um segurança do equipamento ao longo de toda a sua visita. Contou que esta será uma má recordação que levará de Portugal. E sabe que isto só aconteceu porque é negro, brasileiro. Não estava de fato, mas sim com calças de ganga largas e um gorro no melhor estilo rastafari. Diz ter até comprado as sapatilhas, na esperança de que a atitude mostrasse de alguma forma ao segurança que não era necessário segui-lo, que ele era de facto um consumidor com poder de compra.
2) Um grupo de brasileiros que veio a Portugal participar num congresso literário, em 2003, teve as suas malas reviradas de forma agressiva no Aeroporto de Lisboa. Uma das mulheres do grupo disse que foi tratada com algum desrespeito e até um jeito sonso. É tempo de cantar a canção de Maria Rita - que, aliás, nos deu ontem um show (concerto) memorável -, aquela que diz que "nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda".
3) O funcionário que me atendeu na Fnac do GaiaShopping, em Novembro de 2003, quando eu estava a pedir o meu cartão de aderente, não soube interpretar as informações contidas no meio bilhete de identidade. Confundiu "naturalidade" com "nacionalidade" e pensou que eu incorria no terrível erro, no equívoco geográfico que é ser brasileira. Ficou incomodado, ligou para Lisboa, chamou um superior hierárquico. Perguntou se eu não tinha um telefone fixo, se só tinha mesmo o telemóvel. O constrangimento durou cerca de dez minutos, até que o seu chefe chegou à nossa mesa, sobre a qual estavam todos os documentos exigidos para se ter um cartão de aderente, e afirmou com algum alívio: "Ah, ela não é brasileira! Ela só nasceu no Brasil, mas é portuguesa!"
Guerras homéricas 2
"A convicção de que a guerra é uma aberração, ainda que não seja possível detê-la, é fulcral nas espectativas modernas e é um sentimento ético moderno. De que a norma é a paz, ainda que inatingível. Isto, obviamente, não é a maneira como ao longo da história se tem visto a guerra. A guerra tem sido a norma e a paz excepção.
A descrição exacta da maneira como os corpos são feridos e mortos em combate é um clímax recorrente nas histórias narradas na "Ilíada". A guerra é vista como algo que os homens fazem, inveteradamente, sem se demoverem pela acumulação de sofrimento que ela inflinge; e descrever a guerra em palavras ou em imagens exige profundo e inflexível distanciamento."
Esta passagem foi retirada do livro "Olhando o Sofrimento dos Outros", de Susan Sontag, recentemente publicado pela editora Gótica. A obra reúne um conjunto de textos da autora, todos eles reflectindo sobre a iconografia da dor provocada pela guerra. Um livro obrigatório.
A descrição exacta da maneira como os corpos são feridos e mortos em combate é um clímax recorrente nas histórias narradas na "Ilíada". A guerra é vista como algo que os homens fazem, inveteradamente, sem se demoverem pela acumulação de sofrimento que ela inflinge; e descrever a guerra em palavras ou em imagens exige profundo e inflexível distanciamento."
Esta passagem foi retirada do livro "Olhando o Sofrimento dos Outros", de Susan Sontag, recentemente publicado pela editora Gótica. A obra reúne um conjunto de textos da autora, todos eles reflectindo sobre a iconografia da dor provocada pela guerra. Um livro obrigatório.
Guerras homéricas
Leio num jornal antigo - adoro ler edições velhas, de semanas anteriores - que dois soldados norte-americanos foram ontem mortos a tiros em Mossul, Norte do Iraque. Nada de novo se não lêssemos em seguida, nesta edição do Publico de 24 de Novembro de 2003, que testemunhas oculares relataram o ultraje dos cadáveres por "uma multidão de adolescentes", que durante vários minutos atiraram blocos de cimento para cima dos defuntos. Depois, os corpos dos dois soldados foram arrastados pelo solo.
Sei que a crueldade habita dos dois lados desta linha bélica. Mas não consigo deixar de pensar no Heitor da "Ilíada" de Homera enquanto leio esta notícia, porque também o guerreiro troiano ultrajado pelos gregos após a sua morte. O grande Aquiles estava magoado pelo anterior assassinato do seu grande amigo, o guerreiro Pátroclo, que não resistiu ao combate com os troianos. O ódio mútuo, há três mil anos, provocou a mesma atrocidade simbólica de destruir o corpo inerte de um rival. Assim foi nos nove anos de guerra entre gregos e troianos, assim foi na guerra do Iraque, assim será enquanto houver mais de um homem na Terra a se considerar diferente do outro.
"O Pelida [Aquiles], no entanto, chorava / o companheiro dileto, a virar-se de um lado para o outro, / sem pelo sono, a que todos domina, sentir-se vencido. / Lembra-lhe a força de Pátroclo, a indigente e provada coragem, / bem como os trabalhos que juntos haviam sofrido / nas cruas guerras dos homens e, assim, sobre as ondas revoltas, / Essas visões o levavam o pranto a verter amaríssimo [...] / Por fim, levantando-se, / anda ao comprido na praia do mar. Porém logo que a Aurora / via raiar, reflectindo-se na água e na areia nitente, / ao jugo atava os cavalos velozes, de origem divina, / atrás do carro o cadáver de Heitor amarrando. / E, após o corpo arrastar por três vezes à volta do túmulo / do ínclito Pátroclo, à tenda voltava a acolher-se, deixando-o / na branca areia, de bruços."
(Trecho retirado da edição brasileira da Ilíada, traduzida em versos por Carlos Alberto Nunes e publicada pela Ediouro em 2001)
As diferenças, obviamente, são muitas. Uma está no facto de, no poema homérico, a ira de Aquiles estar personificada pela figura de Pátroclo - ao contrário do ódio entre iraquianos e norte-americanos, suportado por razões circunstanciais que todos conhecemos. Contudo, não podemos nos esquecer que cada mágoa iraquiana está igualmente associada à perda sucessiva de pessoas próximas. Sob ambas as guerras paira um conflito lato que tem sempre dimensões particulares a cada esquina em ruínas. Mas esta porção particular do universal não vem na notícia.
Sei que a crueldade habita dos dois lados desta linha bélica. Mas não consigo deixar de pensar no Heitor da "Ilíada" de Homera enquanto leio esta notícia, porque também o guerreiro troiano ultrajado pelos gregos após a sua morte. O grande Aquiles estava magoado pelo anterior assassinato do seu grande amigo, o guerreiro Pátroclo, que não resistiu ao combate com os troianos. O ódio mútuo, há três mil anos, provocou a mesma atrocidade simbólica de destruir o corpo inerte de um rival. Assim foi nos nove anos de guerra entre gregos e troianos, assim foi na guerra do Iraque, assim será enquanto houver mais de um homem na Terra a se considerar diferente do outro.
"O Pelida [Aquiles], no entanto, chorava / o companheiro dileto, a virar-se de um lado para o outro, / sem pelo sono, a que todos domina, sentir-se vencido. / Lembra-lhe a força de Pátroclo, a indigente e provada coragem, / bem como os trabalhos que juntos haviam sofrido / nas cruas guerras dos homens e, assim, sobre as ondas revoltas, / Essas visões o levavam o pranto a verter amaríssimo [...] / Por fim, levantando-se, / anda ao comprido na praia do mar. Porém logo que a Aurora / via raiar, reflectindo-se na água e na areia nitente, / ao jugo atava os cavalos velozes, de origem divina, / atrás do carro o cadáver de Heitor amarrando. / E, após o corpo arrastar por três vezes à volta do túmulo / do ínclito Pátroclo, à tenda voltava a acolher-se, deixando-o / na branca areia, de bruços."
(Trecho retirado da edição brasileira da Ilíada, traduzida em versos por Carlos Alberto Nunes e publicada pela Ediouro em 2001)
As diferenças, obviamente, são muitas. Uma está no facto de, no poema homérico, a ira de Aquiles estar personificada pela figura de Pátroclo - ao contrário do ódio entre iraquianos e norte-americanos, suportado por razões circunstanciais que todos conhecemos. Contudo, não podemos nos esquecer que cada mágoa iraquiana está igualmente associada à perda sucessiva de pessoas próximas. Sob ambas as guerras paira um conflito lato que tem sempre dimensões particulares a cada esquina em ruínas. Mas esta porção particular do universal não vem na notícia.
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