sábado, maio 21, 2005

Da Letónia à Irlanda em busca de sonho

No início de Fevereiro de 2005, um homem troca a Letónia pela Irlanda. Não tem qualquer proposta de emprego ou contacto privilegiado no país de James Joyce. Chama-se Aleksandrs Aleksjevs e aparenta ter cerca de 60 anos. Na sua aldeia natal, o letão deixou a família e uma colecção de mais de 200 pássaros exóticos. Conhecemo-lo numa noite excepcionalmente fria, nas mesas de convívio do Hostel Isaac, no centro de Dublin. Está rodeado de jovens dos mais diferentes países, mas parece só. Toma pausadamente um chá fumegante e come torradas com geleia de morango (será só isso o seu jantar?). Olha-nos como se quisesse encetar uma conversa, mas, como descobriremos algum tempo mais tarde, fala inglês com muita dificuldade. Oferece-se para lavar a nossa louça. E põe à nossa frente fotos de pássaros. Primeiro, uma avestruz. Depois, um cisne preto australiano, uma pomba real... Sobejam gestos e imagens, escasseiam as palavras para responder com precisão às nossas perguntas. Sempre que necessário, recorre ao tradutor electrónico que, num passe de mágica, transforma os caracteres do cirílico em palavras inglesas. E assim vamos nos entendendo, partilhando a história da sua vida. Descobrimos que trabalhou ao longo de 30 anos no mar, a bordo de embarcações petrolíferas, mas que já não consegue laborar sobre as ondas. Correu mundo na companhia do fio azul que aparta o céu do oceano. Mas agora está "cansado". Quer realizar o seu sonho: dedicar-se às aves exóticas. A recente entrada de mais dez países – entre eles a Letónia – para o clube europeu garantiu-lhe um passaporte. Tem três meses para encontrar o emprego desejado e, assim, ganhar em euros. Já se passaram quinze dias. Até agora, nada. O zoológico da cidade não precisa de colaboradores. Criadores de aves ainda não deram resposta. Deixou-lhes o seu contacto telefónico. Aleksandrs não desiste. Faz-nos lembrar Walter Dias, a personagem trota-mundos de "O Vale da Paixão", romance de Lídia Jorge. Walter é não só um viajante incorrigível, mas também um homem apaixonado por aves. "Desenhava pássaros para os seus sobrinhos pequenos verem, através do planisfério, como eram a fauna e a flora do mundo que ele conhecia. Ele [...] Às vezes eram desenhos rápidos que ilustravam apenas as espécies e os lugares onde os pássaros viviam, mas outras vezes os desenhos dele animavam-se de intenções, e da expressão dos animais desprendiam-se sentimentos como se tivessem alma." Aleksandrs não desenha pássaros. Prefere alimentá-los, estudar os seus hábitos e fotografá-los. Nos dias subsequentes, vimo-lo a mostrar as mesmas imagens para outros hóspedes. Era como se enviasse uma mensagem numa garrafa, um pedido de socorro. Como se quisesse encontrar nas pessoas algum vestígio de pertença, arrancar dos seus rostos a confirmação de que a quimera é possível. Após a partida de Dublin, não mantivemos contacto com Aleksandrs. Mas preferimos acreditar que sim, que é possível, que neste preciso instante o telemóvel prateado estará a tocar.