sexta-feira, abril 28, 2006

Como os nossos pais

Estou ali, quem sabe eu seja apenas
a foto de um garoto que morreu.
No espaço entre o sorriso e o sapato
há um corpo que bem pode ser o meu.

Ou talvez seja eu o seu espelho,
e olhar reflete em mim algum passado:
o cheiro das goiabas na fruteira,
o murmúrio das águas no telhado.

No retrato outra imagem se condensa:
percebo que apesar de quase gêmeos
nós dois somos somente a chama inútil

contra a sombra da noite que nos trai.
Das mãos dele recolho o que me resta.
Eu o chamo filho - e é meu pai.

in Todos os Ventos - Antologia Poética (Quasi, 2005), de Antonio Carlos Secchin

quinta-feira, abril 27, 2006

Via profana

deste-me o beijo de Judas
e continuo a carregar meu fardo humano
morrerei
e não ressuscitarei
para cumprir nenhum destino divino

meu Lázaro tampouco ressuscitou
e falta demasiado na minha mesa
como jamais faltarei a alguém

nenhum lenço de Verônica
limpou-me lágrimas e suor
povo algum assistiu às minhas quedas
nem apareceu na via um compadecente Simão
para tornar mais leve a minha cruz

sequer talvez uma mater dolorosa
pranteará o meu fim

Das negativas

não mais lançarei redes sobre o mar da indiferença
sei de antemão que sequer perceberás o meu silêncio
que castiga apenas e mais mais a mim

não embalarás os meus cabelos brancos
ou talvez me visites como quem cumpre um dever
apenas por compaixão ou temor da lei do retorno

não pertenço a tua lista de prioridades
não faço parte do teu show
não sou futurível
significante
in

Fragmentos de um futuro poema

A vida sabe-me a matéria plástica
o filtro dos afetos foi poderoso demais
conheço a algidez dos laços que se desatam
nem por engano florirão as roseiras bravas
o limbo do olvido apaga-me o nome e o rastro
impossível atravessar defasagens de ritmos

meus dedos sistinos não alcançam tocar-te o âmago
minhas palavras não abrandam a secura impassível
não nasceu ainda o canto órfico capaz de franquear
a áspera inumanidade que se agiganta a cada dia
deixando-me a evidência da selva escura
na descida do caminho da minha vida

sábado, abril 22, 2006

Uma visita inesperada 2

Ontem, após um longo intervalo, recebemos novamente a visita de um sagüizinho. Desta vez ele não caminhou pelo muro da varanda: ficou apenas próximo ao tronco da grande amendoeira que espalha seus ramos em frente à varanda do nosso apartamento. A visita, há muito desejada, ocorreu quase na mesma hora da outra – por volta das dezesseis horas, quando a rua estava calma e as famílias pareciam esperar o calor abrandar um pouco para melhor aproveitar, ao ar livre, o final da tarde do feriado de Tiradentes.

Eu lia uma parte do jornal quando, de repente, senti um pequeno baque nos galhos da árvore. Provavelmente uma amêndoa madura se desprendera e batera nos ramos, antes de cair definitivamente. Olhei meio distraída na direção do ruído e, subitamente, vi a ágil criaturinha saltitando na parte central da amendoeira. Acordei suavemente o meu amor para que também pudesse rejubilar-se com o visitante. Se fosse o mesmo sagüizinho que nos visitara, decerto iria apreciar ainda mais a recepção, pois lembrei-me de que tinha bananas maduras na cozinha. Corri a pegar uma fruta e a fatiá-la. Quando voltei, pé ante pé, à varanda, ainda pude ver o macaquinho a escorregar rápido para o galho debaixo e a desaparecer entre a folhagem. Mesmo assim, depositei os pedacinhos de banana na beirada de mármore, na esperança de que retornasse, atraído pelo cheiro ou pela visão da fruta.

Um pouco depois, saímos para a nossa habitual caminhada. Confesso que desejei voltar logo, para verificar se ele tinha percebido a banana no beiral. Quando regressamos, já havia escurecido. Na beirada, os pedacinhos remexidos. Mas, infelizmente, não pelo sagüizinho. Pelos excrementos ali deixados, percebi o rastro de um visitante indesejado: um morcego frugívoro. Talvez o mesmo que, aproveitando-se do nosso esquecimento, penetra furtivo pelas frestas das janelas abertas e insiste em dependurar-se no lustre do quarto dos fundos. Quando nos encontramos quase face a face há sempre um terror mútuo. Como recepcionar bem uma criatura que se parece com um rato e suja o globo de vidro e o edredon? Meu amor por animais não chega a tanto.

terça-feira, abril 18, 2006

Porque ontem completarias 81 anos

Ficou vazio o teu lugar à mesa. Alguém veio dizer-nos
que não regressarias, que ninguém regressa de tão longe.
E, desde então, as nossas feridas têm a espessura
do teu silêncio, as visitas são desejadas apenas
a outras mesas. Sob a tua cadeira, o tapete
continua engelhado, como à tua ida.
Provavelmente ficará assim para sempre.

No outro Natal [aqui eu diria Páscoa], quando a casa se encheu por causa
das crianças e um de nós ocupou a cabeceira,
não cheguei a saber
se era para tornar a festa menos dolorosa,
se para voltar a sentir o quente do teu colo.

Maria do Rosário Pedreira in A Casa e o Cheiro dos Livros

segunda-feira, abril 17, 2006

Sobre um mundo de plasticina

"Quando olho à volta, e olho para a minha própria vida, essa ideia de procura de amor, que implica dor, é absolutamente recusada e diluída numa espécie de vivência que parece ter sentido mas não tem. Somos ratinhos de laboratório entre centros comerciais, emprego, modas, jornais, artigos de opinião, férias e isso rouba-nos tempo. Já não conseguimos ter tempo. Há alguns anos que anda a ser editado o livro do Proust Em Busca do Tempo Perdido que pede um outro tempo para ser lido; é muito difícil um ser contemporâneo ler aquele livro, vê-se à rasca para ler."

Excerto de um conversa entre o encenador Nuno Cardoso e o actor João Pedro Vaz, publicada no programa da peça Plasticina (Teatro Carlos Alberto/Teatro Nacional São João, Porto, 2006)

quinta-feira, abril 13, 2006

Presente de Páscoa

Bem melhor que oferecer ovos e bombons de chocolate como presente de Páscoa, é dar a ler um belo conto. Boas leituras não engordam o corpo e alimentam o espírito. Ofereço a você, meu desejado e raro leitor, uma sugestão de leitura: “Repartição dos pães”, conto de Clarice Lispector (de Laços de família), um verdadeiro achado, por apresentar, em linguagem literária altamente elaborada, uma originalíssima visão do tema pascal. Um texto para ler e repartir, sobretudo nesta época de pouca fraternidade e muito consumismo.