sábado, dezembro 13, 2003

Mulheres de Pedro Martinelli



O fotógrafo brasileiro Pedro Martinelli acaba de lançar no Brasil a obra "Mulheres da Amazónia", que reúne 300 imagens captadas naquela região ao longo dos últimos trinta anos. Para quem não sabe, Martinelli é um dos grandes "homens de sal de prata" do país, tendo sido editor de fotografia da Editora Abril e recebido uma série de prémios. Tem imagens lindas. Quem quiser ver mais coisas dele pode ir até o No Mínimo .

sexta-feira, dezembro 12, 2003

Ainda Eduardo Coutinho

A professora universitária Consuelo Lins está a ultimar um livro ensaístico sobre a obra deste cineasta brasileiro de 70 anos. Chama-se "O Documentário de Eduardo Coutinho - Cinema, vídeo e televisão" e deverá ser publicado no Brasil em 2004 pela Zahar Editores. Num texto divulgado há sete anos, na Revista Cinemais, Consuelo Lins explicava porque Coutinho consegue as melhores confissões do seu entrevistado. É uma mistura de respeito, disponibilidade, ética e dom da palavra.

"Coutinho dá tempo a seus personagens de formularem algumas ideias sobre suas vidas e efectivamente os escuta. Faz poucas perguntas mas obtém respostas que surpreendem entrevistador e entrevistado. Tem-se a nítida impressão de que muitos estão pensando certas coisas pela primeira vez, ali diante da câmera. Como se até então não tivessem tido tempo para tal. Em um certo sentido, há nos filmes de Coutinho uma dimensão analítica: a análise é particularmente o lugar da escuta. E talvez o que mais falte na actual produção incessante de imagens, palavras, sons, informações é justamente uma escuta que possa pontuar e dar algum sentido à fala dos personagens."

Volto a lembrar que o doumentário "Edifício Master" (2002), premiado na Categoria Melhor Documentário no Festival de Gramado, no Sul do Brasil, será exibido hoje, às 22h00, na Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira. É uma oprtunidade única. Não só porque este filme não passará nas salas de cinema, nem nas Blockbusters da vida, mas também porque o autor estará presente nesta cerimónia de homenagem.

Hoje é dia de Eduardo Coutinho



A séptima edição do Festival de Cinema Luso-Brasileiro homenageia hoje, às 22h00, o realizador brasileiro Eduardo Coutinho. Será exibido no auditório da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira o documentário "Edifício Master" (2002), um trabalho muito revelador sobre a classe média carioca. O filme foi feito com dezenas de moradores de um prédio em Copacabana, no Rio de Janeiro. A câmera entra em vários dos apartamentos minúsculos do edifício, dando voz (e rosto) às vivências dos moradores. Há a garota de programa, a mulher que tem medo de olhar nos olhos dos outros, o porteiro que não sabe quem é o pai... São, enfim, relatos de pessoas comuns - Coutinho "odeia" figuras públicas -, discursos em primeira pessoa que fazem deste cineasta de 70 anos um mestre da arte de entrevistar. É o que explica o crítico Carlos Alberto Matos nas citações abaixo, que são fragmentos da introdução do livro "Eduardo Coutinho: o Homem que Caiu na Real", apresentado hoje em Santa Maria da Feira.

"A obra-prima Edifício Master chegou às telas no ano de 2002, num momento em que o documentário despontava como uma das vedetes da retomada do cinema brasileiro (como é chamado o reaquecimento da atividade após quatro anos de congelamento à época do governo Collor). Tão diversificados quanto os filmes de ficção, os documentários então conquistavam público, prestígio, espaços de exibição no cinema e na TV, mecanismos de apoio e patrocínio, repercussão em festivais etc. O discreto Eduardo Coutinho é parte importante desse renascimento e sua obra se oferece como referência de qualidade e compromisso."


Fotograma de "Cabra Marcado para Morrer"

"Eduardo Coutinho tornou-se o mais importante e influente documentarista brasileiro da atualidade não somente por seu modo judicioso de proceder, mas também pelo corpo de obra que erigiu ao longo da carreira. Nela os temas evoluem como galhos de uma árvore construtivista, comunicando-se de filme a filme e passando de secundários a principais. A religiosidade popular foi objeto de sua atenção crescente em "Santa Marta: Duas Semanas no Morro", "O Fio da Memória" e "Santo Forte." A vida na favela esteve presente em "Santa Marta", "Santo Forte" e "Babilônia 2000". As rivalidades familiares no Nordeste brasileiro estiveram em foco no ficcional "Faustão" e no documentário "Exu, uma Tragédia Sertaneja". O poder no campo foi tema de "Cabra Marcado para Morrer" e "Teodorico, o Imperador do Sertão". A subsistência retirada do lixo foi tangenciada em "A Lei e a Vida" antes de passar a assunto central de "Boca de Lixo"."


Fotograma de "O Fio da Memória"

"A Coutinho interessa o Outro, o diferente social e culturalmente. Por isso é difícil imaginar que ele ainda venha a se interessar pela elite da qual, incomodamente, participa. Os condôminos de classe média baixa enfocados em "Edifício Master" parecem constituir o seu limite em matéria de aproximação da vizinhança social."


Fotograma de "Santo Forte"

"Parte integrante desse cinema de pessoa a pessoa é a exposição do processo de documentação dentro do próprio filme. As chegadas da equipe, sempre documentadas por uma câmera de apoio a duplicar o eixo da câmera principal, tornaram-se uma marca desde Cabra Marcado para Morrer. Da mesma forma, a imagem do diretor, face a face com seus interlocutores e quase completamente desligado do aparato técnico ao seu redor, aparece intermitentemente - não para torná-lo catalisador do espetáculo da informação (como ocorre com Michael Moore e Nick Broomfield), mas apenas o suficiente para sublinhar a condição de encontro e o caráter de conversa. A montagem assimila também "ruídos" de diálogo, pagamento de cachês, retalhos de conversas circunstanciais à margem da entrevista etc, elementos habitualmente escamoteados na edição de documentários tradicionais."

quarta-feira, dezembro 10, 2003

Nanook of the North



"Nanook of the north" é considerado o início da história do documentário. O filme mudo de Robert J. Flaherty, elaborado em 1922, apresenta-nos um ano da vida de um esquimó completamente alheio à vida industrial, vivendo essencialmente da caça, da pesca e de algum comércio. No texto "How I Filmed "Nanook of the North", Flaherty conta como foi despertado para a arte que, a exemplo do jornalismo, procura coleccionar fragmentos do real. Ele conta assim a sua jornada antropológica de conhecimento do Outro:

"In August 1910, Sir William MacKenzie whose transcontinental railway, the Canadian Northern, was then in the initial stages of construction, commissioned the writer to undertake an expedition to the East Coast of Hudson Bay to examine deposits of certain islands upon which iron ore were supposed to be located. […]
As a part of my exploration equipment, on these expeditions, a motion-picture outfit was included. It was hoped to secure films of the North and Eskimo life, which might prove to be of enough value to help in some way to defray some of the costs of the explorations.



While wintering in Baffin Land during 1913-14 films of the country and the natives were made as was also done on the succeeding expedition to the Belcher Islands. The film, in all, about 30,000 feet, was brought out safely, at the conclusion of the explorations, to Toronto, where, while editing the material, I had the misfortune of losing it all by fire. Though it seemed to be a tragedy at the time, I am not sure but what it was a bit of fortune that it did burn, for it was amateurish enough."

O fogo que consumiu estes primeiros registos de Flaherty acabou por deixá-lo cada vez mais interessado em filmes. Ele explica assim:
"New forms of travel film were coming out and the Johnson South Sea Island film particularly seemed to me to be an earnest of what might be done in the North. I began to believe that a good film depicting the Eskimo and his fight for existence in the dramatically barren North might be well worth while. To make a long story short, I decided to go north again- this time wholly for the purpose of making films."

O projecto acabou por ter o financiamento dos Revillon Freres (como se pode ver no cartaz original do filme, no topo desta mensagem). No dia 18 de Junho de 1920, o realizador partir novamente para as terras frias. Como equipamento levava 75 mil pés de rolo de filmes (não sei converter esta medida, peço desculpas), um projector, holofotes Haulberg, duas câmaras Akeley e ainda uma impressora que permitia identificar eventuais falhas técnicas durante as filmagens. Nesta expedição, conheceu Nanook, um esquimó adorável. Juntos, enfrentaram obstáculos como a falta de comida e o confronto com os desmandos da natureza - algo que os aproximou profundamente e permitiu a cumplicidade necessária para a realização do documentário. Criou-se o elo necessário para a existência daquele que "rouba" a imagem do outro e, por extensão, daquele que se deixa retratar. No fim do seu relato, Flaherty diz que "it was not all loss: I was richer by a fuller knowledge of the fine qualities of my sterling friends, the Eskimos."

PS. Não me perguntem porque, mas "Nanook of the North" me faz lembrar um outro filme, o "Dersu Uzala" (Kurosawa, 1975). Nunca esqueci a parte em que o protagonista – também ele na pele do Outro – considera imponderável (é o que nos revela o seu olhar) que se possa vender a água, algo tão elementar à vida humana. Ele via água como um direito.

sexta-feira, dezembro 05, 2003

Invasões Bárbaras

Os jornais brasileiros, os meus amigos brasileiros, a minha mãe e até o Eduardo Prado Coelho - na sua coluna de hoje do Publico - já falaram maravilhas do "Invasões Bárbaras. Ainda bem que o filme estreia hoje em Portugal. Já estava me sentindo uma outsider.

domingo, novembro 30, 2003

Keith Arnatt


Keith Arnatt está nos Universos Desfeitos. Mais coisinhas de Keith na sua floresta.

Os cárceres de Goethe



A versão primitiva de "Fausto", de Goethe (1749-1832), encantou o encenador Nuno M Cardoso sobretudo pela "relação que era estabelecida entre amor e morte, personificada pela personagem Gretchen". No texto de apresentação da peça "Gretchen", em cartaz no Teatro Carlos Alberto, lê-se:

"Gretchen torna-se, então, personagem principal, pelo desespero, pela ascese na perda, pelo acolher da morte com alegria. [...] Gretchen é também o reconhecimento da inevitabilidade da morte."

No ensaio de João Barrento - responsável pela tradução do texto -, regressamos à questão da mulher que, de alguma forma, rouba a cena ao Fausto.

"O fragmento abre com uma cena que se situa no universo claustrofóbico do protagonista (mas teremos de nos interrogar desde já sobre o "protagonismo" de Fausto numa montagem que preferiu o título "Gretchen", e que pretende claramente deslocar esse protagonismo para a figura da mulher), e fecha com a condenação e morte de Gretchen num cárcere real. [...]
No entanto, nesta primeira versão ainda sem a estrutura e o escopo épico-simbólicos da versão definitiva do Fausto, a acção decorrerá de certo modo em circuito fechado, de cárcere a cárcere: o primeiro, de Fausto, é o laboratório da cena inicial, cárcere de invenções, mas não de vida, que gera outro, o cárcere do coração fechado e morto; o segundo, de Gretchen, mãe solteira, infanticida condenada e enlouquecida, é aquele para onde a lançam a lei e as normas sociais e morais vigentes."

Temos então, parece-me, duas linhas interessantes nesta montagem de Nuno M Cardoso: a questão da mulher "pobre e seduzida" (e, no entanto, protagonista) e a ideia de um círculo fehado que encarcera o drama. E é sobre esta que recaio quando penso na cenografia de Paulo Capelo Cardoso: há várias paletes de madeira sobre o palco, umas empilhadas com rigor, outras dispersas. Formam volumes de diferentes alturas. E sugerem precisamente um ambiente fechado e ao mesmo tempo contraditório. Um armazém lacrado? Um contentor vazio de mercadorias? Mas esses espaços não são feitos para conter, armazenar? E se estão vazios não traem a sua própria essência? É esse incómodo do cenário que reaparece num outro comentário de João Barrento:

"De desejo se trata, de facto, e de uma dinâmica muito goethiana: a da oscilação dialéctica entre sístole e diástole, abertura e fechamento, liberdade e necessidade."

As paletes empilhadas trazem em si não só a carga simbólica do consumo - comparece aqui a burguesia de que fala Goethe -, mas também a diáléctica asfixiante de Gretchen. Traduzem-se em uma oscilação entre cheio e vazio, em um movimento cíclico. As paletes estão em constante movimento para o transporte de mercadorias ,de um lado para o outro, mas o seu carácter funcional não se altera com a mudança de sítio. E, de resto, obedecem a um ritmo de carga e descarga sem ruptura possível. Como o círculo fechado e inevitável que aprisiona Gretchen. Essas ideias são depositadas no cenário subliminarmente, a par com a óbvia plasticidade da madeira traçada: cruz, grade, cárcere e caixão.

Hoje é o último dia para ver "Gretchen", de Goethe, no Teatro Carlos Alberto, no Porto.

sexta-feira, novembro 28, 2003

A biblioteca ideal

Ivan diz que a sua biblioteca ideal teria apenas sete livros. E explica o porquê:
“Há um indicador infalível que me diz que ando meio-chateado: se compro muitos livros. Tenho as prateleiras cheias de livros que nunca li. Se andasse sempre feliz, suponho que a minha biblioteca teria uns sete volumes. Os outros leria emprestados de amigos, tomados a bibliotecas; e, reciprocamente, ofereceria os livros já lidos a amigos e a bibliotecas. (Isto já eu faço às vezes). Há pessoas que se orgulham de ter colecções pessoais com 12 mil livros. Nunca terei uma biblioteca desse tamanho: se isso estivesse para acontecer ter-me-ia, seguramente, suicidado primeiro.”

terça-feira, novembro 25, 2003

André Kertész (V)


"Ernest", Paris, 1931

"A data faz parte da foto, não por denotar um estilo (isso não me diz respeito), mas porque ela faz erguer a cabeça, faz o cômputo da vida, da morte, a inexorável extinção das gerações: é possível que Ernest, jovem colegial fotografado por Kertèsz em 1931, viva ainda hoje (mas onde? como? Que romance!). Eu sou o ponto de referência de toda a fotografia e é nisso que ela me provoca o espanto, ao pôr-me a questão fundamental: por que razão vivo aqui e agora?"

"A Câmara Clara", Roland Barthes (p. 119, Edições 70)


"One of the portarits in "Enfants" is Ernest who was photographed in his classroom in 1931. This and other photographs in the book give us wonderful glimpses of French childhood in the 1930s. Ernest is pictured wearing his black school smock and very long flannel short trousers. A schoolmate in the background does not appear to be wearing a smpck so it does not appear to have been a school rule. The photograph not only shows us how French school children dressed in the 1930s, but what their school room with the heavy wooden desks looked like."

André Kertész (IV)


"A Balada do violinista", Abony, Hungria, 1921

"Por muito fulgurante que seja, o punctum possui, mais ou menos virtualmente, uma força de expansão. Essa força é muitas vezes metonímica. Kertèsz tem uma fotografia (1921) que representa um cigano cego, a tocar violino, conduzido por um miúdo; ora aquilo que vejo, através desse olho que pensa e que me faz acrescentar qualquer coisa à fotografia, é a calçada de terra batida: a terra dessa calçada dá-me a certeza de estar na Europa Central. Percebo o referente (aqui, a fotografia ultrapassa-se realmente a si própria: não será essa a única prova da sua arte? Anular-se como médium, deixar de ser um signo, passando a ser a própria coisa?), reconheço totalmente os povoados que atravessei quando, há tempos, viajei pela Hungria e pela Roménia."

"A Câmara Clara", de Roland Barthes (p. 71, Edições 70)

André Kertész (III)


"On the quais", Paris, 1926

"Os redactores da [revista] Life recusaram as fotos de Kertész quando ele chegou aos Estados Unidos, em 1937, porque, segundo afirmavam, as suas imagens "falavam demasiado"; elas faziam reflectir, sugeriam um sentido – um sentido diferente da palavra. No fundo, a Fotografia é subversiva não quando assusta, perturba ou até estigmatiza, mas quando é pensativa."

"A Câmara Clara", de Roland Barthes (p. 61, Edições 70)

domingo, novembro 23, 2003

Ainda Dogville



Contributos para a discussão sobre "Dogville":

1) O repórter Luiz Carlos Merten, do jornal brasileiro "O Estado de São Paulo", escreve que von Trier é "um demiurgo, apontador de caminhos". Achei a designação feliz se pensarmos na palavra demiurgo à luz do seu berço grego: criador do universo, magistrado. Demiurgo também é o nome dado pelos filósofos platónicos ao criador do homem. Assim, von Trier figuraria como um criador de universos (e não do universo, é claro). Um homem capaz de construir a partir da sua arte um sistema coerente, um sistema dotado de elementos que se regem segundo uma orgânica própria.
A aldeia gizada no chão do estúdio, ou seja, a aldeia cinematográfica de "Dogville" consegue ser um universo próprio, um espaço que se teletransporta do ecrã para o espectador. Essa construção em nós de uma imagem mental, uma paisagem que retrata um sítio específico, é formidável. Eu sou capaz de sentir o cheiro das maçãs que rolam sobre o camião. Eu sou capaz de sentir o cheiro bafiento da casa do ceguinho, sempre com as cortinas fechadas. Isto é estética da recepção. É conseguir construir um mundo a partir de muito pouco, de exíguos recursos cenográficos. Assim sendo, concordo com Carlos Merten: von Trier faz filmes com mãos de demiurgo.

2) Lutz escreve-me a dizer que "Dogville" "é um grande filme", mas uma obra que faz "uma generalização inaceitável". Na sua casa recém-inaugurada - a "Quase Em Português" -, Lutz explica que "o filme é de um anti-americanismo de fazer sombra ao Bin Laden. Se não fossem os últimos minutos dos créditos, com a sequéncia das fotografias conhecidissimas das vítimas da grande depressão americana dos anos 30, com a banda sonora de "Young Americans" de David Bowie, ainda seria possível entender todo o resto, o setting numa aldeia no interior da América puritana, a referéncia aos classicos filmes de gangster, como um dispositivo do dramaturgo para fazer o seu ponto, ou seja ficava a hipótese que podia ter havido outro setting qualquer. Mas von Trier faz questão de não deixar aqui dúvidas."

3) A MVG mandou uma mensagem com um comentário muito interessante. Tomo a liberdade de reproduzi-lo neste cais:

"Não nos podemos esquecer que von Trier respondeu às acusações dizendo que também ele era americano. Uma pequena coisa em que discordo, porém, é a da identificação do espectador com Kidman ao ponto de a querer vingar. Penso que há ali um grande trabalho de ironia (no sentido romântico de distanciação), dada não só pela voz do narrador, mas também pelo cenário esteticizado e até pelo genérico final com as imagens que remetem para um tipo de fotografia americana dos homens desperdiçados (que as imagens, no entanto, parecem cristalizar com uma nota de compaixão e quase esperança) dos anos 30 e 40, dando a impressão de um arrependimento tardio e, por isso, desacreditado.
Julgo que é o facto de ser impedido ao espectador sofisticado qualquer tipo de identificação (e de catarse libertadora) que torna o filme mais inquietante: constantemente nos perguntamos qual a atitude a tomar face ao que nos é apresentado."

segunda-feira, novembro 17, 2003

De olhos bem fechados



Por vezes tenho a sensação de ver os filmes de olhos bem fechados. Apreciei "Kill Bill", como já aqui escrevi. Depois li que o Carlos Vaz Marques achou o filme "oco", sem substância. Valorizo profundamente o trabalho de CVM e, portanto, se calhar o problema é meu.

Hoje aconteceu o mesmo com "Dogville". Chamaram-me atenção para o texto de Augusto M. Seabra nas páginas do Publico, divulgado no passado dia 10 de Outubro. Bem, a sua coluna "Inclinacões" simplesmente arrasa com von Trier. Diz que o cara não fez rigorasamente nada que prestasse (excepto "Ondas de Paixão"). E acusa esta última obra de ser "um programa ético sobre a miséria humana", uma "teologia de pacotilha", "um antiamericanismo cultural". Enfim, eu não reparei em nada disso quando vi o filme. Mais uma vez, o problema dever ser meu.

No meu modesto ponto de vista, von Trier causa uma estranheza no seu "Dogville" - a aldeia marcada a giz no chão - para depois conduzir o seu espectador à sua própria condição humana. Queremos vingar Nicole Kidman todo o tempo, mas, por outro lado, sabemos perfeitamente que é dessa maldade que somos feitos. "Dogville" fala também de como acolhemos o estranho que chega à nossa aldeia, de como sugamos dele tudo aquilo que podemos e como o tememos ou o dispensamos quando nos convém. Não é assim quando falamos de imigração? Não é isso que criticamos em Bush e na sua politiquinha western "dead-or-alive"?

Vasco Câmara escreveu no Y que "Dogville" é "um tratado filosófico, pessimista, sobre a bestialidade humana, quando os homens estão isolados do mundo e vivem segundo as suas próprias leis, como se fossem deuses de uma moral que inventaram". Ora, mas não é exactamente isso que criticamos na administração Bush? Eu também nunca pus os pés nos EUA e penso isso mesmo sobre este Governo (e não sobre o povo americano, o que seria uma generalização burra).

A crítica antiamericana, contudo, é o que menos me interessa em "Dogville". Despertou mais os meus sentidos aquilo que se prende com a crueldade humana. E com a capacidade criativa do realizador. O que von Trier fez ao gizar uma aldeia nas Montanhas Rochosas, nos anos 30, foi imaginar uma história num lugar. Não é o que todos fazem? Quando falamos de arte cinematográfica não nos reportamos para o pacto da representação? Pois bem, ao saber que von Trier treme só pensar em entrar num avião e que, por isso mesmo, nunca foi à terra do Tio Sam, eu fiquei ainda mais contente!

Isso quer dizer que "Dogville" nasce de uma imagem mental, por vezes contaminada por estereótipos ou pela inexperiência do lugar, é certo, mas obviamente liberta do passo irreversível que é o conhecimento. Pois é sabido que não se pode "des-saber" algo que já se conhece, não se pode anular um acontecimento já transcorrido. Nunca ter estado nos EUA permite um sem número de possibilidades de representação desse mesmo país e, por outro lado, não reduz o criador à angústia de estar a ser influenciado pela parte que conheceu de um todo.

Lars von Trier encerra em "Dogville" uma imagem própria, parcial dos EUA - é a primeira fita de uma trilogia - que, na minha opinião, é tão legítima como tantos outros retratos que já se fizeram sobre os Estados Unidos, tanto no cinema como na literatura.

quarta-feira, novembro 12, 2003

Jorge Marmelo

Eu gostava de ter escrito mais cedo este texto (não gosto muito da palavra post, quer dizer, também não desgosto, mas evito). Esta tarde, na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, o escritor Jorge Marmelo apresentou a sua nova obra: um livro infantil escrito a quatro mãos com Maria Miguel, a sua filha de 10 anos. Também gostava de ter lá ido, mas não pude. Mas, enfim, o que importa é que "A Menina Gigante" (Campo das Letras, com ilustrações lindas de Susana Traina) é um livro belo, que fala de coisas como a adopção, a crueldade embutida nas crianças e a questão da diferença durante a infância.

sexta-feira, novembro 07, 2003

A iconografia da leitura



Na sequência das imagens de Kertèsz, que registavam o acto de leitura como algo muito corporal, encontrei esta ilustração de Jorge Colombo. Interessa-me imenso a inconografia sobre a leitura. Como as pessoas lêem? Como seguram os livros? Começam pelo fim, pelo início ou folheiam antes de mergulhar na leitura? Robert Scholes fala um pouco sobre isso no seu precioso "Protocolo de Leitura" (edições 70), onde faz uma detalhada análise de um quadro de Georges de La Tour. Nesta pintura, Santa Ana aparece ensinando Maria a ler, sob a luz insuficiente de uma vela. Scholes escreve:

"Se acaso se trata de Maria aprendendo a ler, o nosso desejo de plenitude narrativa incita-nos a procurar um nível de especificidade idêntico quanto a outros pormenores do texto. Isso leva-nos a identificar a mestra como sua mãe, Santa Ana, e a tecer conjecturas sobre qual será o livro lido em voz alta com tamanha gravidade. Considerando-a futura mãe de Jesus, distinguimos também nesse curioso gesto da mão direita uma postura conhecida, pois figura em muitas pinturas que representam Cristo ou os santos. O gesto constitui um sinal hierático que acompanha os milagres e as revelações quando é pronunciada a Verdade ou quando esta se revela em acção. Mas é também, claro, um guarda-luz da chama da vela, um reflector cor de carne que talvez saliente o brilho do texto. Este qual é, porém? Que lê Maria?"



O Corvo

Imperdível a tradução de Isa Mara Lando para "O Corvo", de Poe. Ela é brasileira e está hospedada numa casa portuguesa .

O lago de Virginia Woolf



"Antes de ir com Angelica para o roseiral, Virginia demora-se mais um momento, ainda de mãos dadas com Vanessa, observando os filhos da irmã como se eles fossem uma lagoa na qual poderia ou não mergulhar. Isto, pensa, é a verdadeira realização, isto continuará a viver depois de o ouropel das experiências na narrativa ter sido encaixotado e abandonado juntamente com as velhas fotografias, os vestidos de baile de máscaras e os pratos de porcelana nos quais a avó pintava as suas melancólicas paisagens inventadas."

"As Horas", de Michael Cunningham

terça-feira, novembro 04, 2003

Nahuas, México

Eu não sei se estiveste ausente.

Eu deito-me contigo, e levanto-me contigo.

Nos meus sonhos tu estás junto a mim.

Se estremecem os brincos das minhas orelhas

eu sei que és tu que te moves no meu coração.


Este poema da "Rosa do Mundo" é uma prenda cândida de uma amiga.

segunda-feira, novembro 03, 2003

Inspirado por André Kertèsz


Colorado State University
Fort Collins, USA (1988)

O fotógrafo Don Eddy, inspirado por André Kertèsz, criou uma série de imagens também elas dedicadas ao tema da leitura. Algumas delas são muito bonitas. Don Eddy escreveu sobre a experiência com o livro "On Reading" e também sobre o encontro com o próprio Kertèsz. Reproduzo abaixo o texto:

"Regarding the On Reading series

Accidentally one day I stumbled upon a small book of photographs taken by André Kertész. The book encompassed a great many of his photographic years and were images of not only people reading, but birds, statues, and paintings! They were taken, for the most part, on purpose for depicting "reading". Not too long after seeing the little book, I was going over many of my old contact sheets and discovered that I had also captured many people "reading", but quite by chance. So I put together this series of my “On Reading"

I’d met André, a quiet and simplistic photographer, while he was with six other Magnum photographers covering the Xerox stockholders’ meeting near Rochester, NY in an outdoor setting under huge, white tents. At the time I was the staff photographer at the George Eastman House and was asked by Beaumont Newhall if I’d like to give a tour of the House to several Magnum photographers who were in town. André was not on the tour and I did not know the extent of the photographers until they asked if I’d like to assist them while they covered the meeting. Who could have refused!

At the event Inge Bondi asked me to have a hundred copies of model releases made at another tent that Xerox had set up just for the purpose. At the time, 1966, Xerox was heading the high speed copy equipment market. The attendant said he would be happy to and for me to have a seat on a supplied garden bench they’d placed nearby. I watched as he set the copier into action. It began scanning the original I’d given to him and spitting out copies at the rate of maybe 10 per minute!

I took a seat.

There was an elderly gentleman sitting there to my right. He seemed to be resting and perhaps was a stockholder—but he looked familiar. I’d seen him before or at least thought I had. Then it struck me, he might be André Kertész. I turned to him and said in a questioning way, "You’re André Kertész . . ."

He turned, smiled with a twinkle in his eye and responded quietly, "I know that", with a slight emphasis on I."

Saudades do Cazuza



Vi esta foto hoje no Palavras da Tribo e senti uma enorme saudade do Cazuza. Não consegui deixar de pensar que, se a doença tivesse sido diagnosticada hoje, ele poderia recorrer a um coquetel de medicamentos. Teria oportunidade de lutar contra o vírus. Quantas mais canções não teria escrito?

domingo, novembro 02, 2003

André Kertèsz (II)



A exposição "André Kertèsz: l´intime plaisir de lire" exibe até 1 de Dezembro de 2003 as fotografias do livro "On Reading". O único problema é que a mostra está patente no Musée de la Crèche, em Chaumont, França. Os meros mortais como eu terão de se contentar com o texto de apresentação do evento, que reflecte sobre a importância do tema da leitura na obra do fotógrafo húngaro:

"Qu’il soit dans un jardin, un autobus, un café, une bibliothèque ou un salon, sur sa terrasse ou dans son lit, à l’école ou à la guerre, debout, assis ou couché, le lecteur est ailleurs : dans un autre univers et dans un temps qui n’est pas le présent. Il est dans sa lecture, dans ses pensées, dans ce qu’il apprend, dans ce qu’il ressent, dans un autre monde réel ou dans l’imaginaire.

C’est ce décalage spatial et temporel, affectif et spirituel, qu’André kertész a photographié avec la connivence de l’initié. Il l’a fait en douceur, sans s’immiscer, sans perturber le lecteur qu’il connaît bien, son semblable, son frère. Ainsi, nous aussi, grâce à lui, partageons-nous l’intime plaisir de lire et de voir des images. Celui d’être informé, de savoir, de goûter les mots, de voyager, d’être relié à des inconnus et lié à des amis, d’apprécier des émotions, des sentiments inédits, d’en découvrir de nouveaux.
Ce plaisir que kertész a éprouvé, il nous l’a donné en faisant des photographies qui l’expriment et le transmettent d’autant mieux qu’il savait lire avec le cœur, les images aussi bien que les textes.

André kertész avait publié une partie des ces images dans un « On Reading », édité en 1971 et désormais introuvable. L’exposition actuelle rassemble une sélection de photographies issues du fond André Kertész de Patrimoine photographique."



André Kertèsz


Autoretrato com gato, Paris (1927)

Apaixonei-me por André Kertèsz quando li "A Câmara Clara", de Roland Barthes. Agradeço ao ensaísta francês esta prenda. Depois tropecei num ensaio de Maria Filomena Molder (não confundir com a Mónica), publicado no livro "Semear na Neve" (Relógio D´Água). Neste texto, Molder fala de um livro belíssimo chamado "On Reading", que reúne imagens de pessoas comuns a ler. A beleza das imagens registadas pelo fotógrafo húngaro reside precisamente no facto dele enxergar no comum aquilo que ninguém vê, apesar de ter ao alcance dos olhos. Curiosamente, ele próprio se retrata a ler, mergulhado nas páginas de um livro.



"Como estado ideal, a leitura transtorna muitas das distinções que permitem diferenciar os homens entre si e os fazem a nossos olhos mais justos ou menos justos. De um rosto que está entregue à leitura sobe o sussurro ou o murmúrio de quem participa numa grande mente. Cada um que lê reúne-se a uma imensidade pensante, em repouso, quem lê está em estado de levitação, pertence a uma imagem pairante." Maria Filomena Molder



"Neste livro [On Reading, de Kertèsz], aqueles que lêem nascem à luz do dia, a luz apresenta-se reinando. Não é pela inquietação do obscuro que a leitura descobre a sua irmandade com a morte e com o sono; se estes são seus familiares, isso deve-se à posição do corpo e à pacificação dos seus ritmos inerentes, como estando ido para uma viagem que anuncia a derradeira e redime sempre, sempre. Aquele que lê tem os olhos baixos, mesmo que seja ao de leve (há exemplos vertiginosos, como o da velha lendo longas folhas num cais de Paris, 1928, ou o homem que lê enquanto caminha numa rua de Buenos Aires, em 10 de Julho de 1962, ou duas, entre várias, das admiráveis fotografias de crianças, uma quase deitada sobre um montão de detritos de revistas e jornais, Nova Iorque, 12 de Outubro de 1944 (...)" Maria Filomena Molder



"O livrinho [On Reading], que contém sessenta e três fotografias dedicadas à leitura, abre com uma multidão de pássaros de luz, esvoaçando sem sair do mesmo ponto entre as folhas adivinhadas de uma árvore e os revérberos de um cortinado: sobre uma mesa em frente da janela está um livro aberto, à esquerda uma caixa de porcelana cuja tampa tem a forma de um pássaro, uma pomba. O que é um livro aberto sobre uma mesa? Um convite à rememoração, um chamamento de luz, procurar cada vez mais luz."





Outros trabalhos do artista na capital francesa, cidade que escolheu para viver e fotografar com uma Leica:


Fete Foraine

"The moment always dictates in my work. What I feel, I do. This is the most important thing for me, Everybody can look, but they don't necessarily see. I never calculate or consider; I see a situation and I know that it's right, even if I have to go back to get the proper lighting." Andre Kertesz


Torre Eiffel, Paris (1925)


In les hall, Paris (1929)

sexta-feira, outubro 31, 2003

Os jardins de Virgínia Woolf



"Virginia move-se pelo jardim como que impelida por uma almofada de ar; começa a compreender que existe outro jardim debaixo deste, um jardim do mundo subterrâneo, mais maravilhoso e terrível do que este e que é a raiz de que nascem estes relvados e estas pérgulas. É genuína a ideia de um jardim e está longe de ser tão simples quanto é belo."

"As Horas", de Michael Cunningham

Pobre Portugal

Acabo de ler aqui que Portugal é o país mais pobre da União Europeia. Era o que faltava para deixar a nossa auto-estima novinha em folha.

Sophia reina

Sophia de Mello Breyner Andresen ganhou um prémio com o seu nome. Uma satisfação para aqueles cuja metade da alma também "é feita de maresia".

MAR
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Clochards de Paris



Esta fotografia foi registada pelo brasileiro Flávio Rodrigues no ano em que nasci, em 1976. Gosto muito deste trabalho. Leio num dos meus sítios favoritos que este fotógrafo tem 59 anos e "guarda o mundo numa velha caixa de sapatos que, aberta neste ensaio de retratos, refaz a trajetória do artista entre os estudos em Nova York, a carreira iniciada em Paris, as viagens pela Europa e a volta ao Brasil.

Dono de um inarredável espírito de voyeur, Flávio coleciona em seu arquivo de fundo de armário reminiscências em preto e branco de personagens inauditos e malditos, felizes e tristes, carinhosos, às vezes ferozes. "Não sei e nem me importo muito se o conjunto se inscreve no âmbito da fotografia autoral ou documental, mas estou certo que resulta de uma interação com pessoas, lugares, emoções, incertezas." Há algo de muito pessoal nessas imagens."

José Cardoso Pires

Nelson de Matos chama atenção para o esquecimento rápido do homem que nos deu "O Delfim" e "A Balada da Praia dos Cães". E escreve: "O Diário de Noticias e a sua equipa da cultura, estão hoje de parabéns. Bonita homenagem (nas páginas 2, 3, 4, 5 e 6, com chamada na primeira), pela passagem do 5º aniversário da morte de José Cardoso Pires. No Público (jornal onde o Zé escreveu semanalmente as suas crónicas no tempo da direcção de Vicente Jorge Silva), nem uma palavra." Ele escreve e ele tem razão.

quinta-feira, outubro 30, 2003

Um texto inédito de Eduardo Lourenço

"O poeta e os outros"


Ortega y Gasset tem um ensaio intitulado aristocraticamente “os intelectuais e os outros”. Como todas as assumpções da aristocracia, esta comporta um risco, um não pequeno e grave risco. As eleições são sempre contestáveis mas a auto-eleição realiza nesse capítulo um sucesso particular: não tendo a garantia de Deus nem dos eleitores, é duplamente contestável. Intelectual, Ortega y Gasset erigiu o seu estatuto mental em situação ímpar de humanidade. Talvez tenha razão. A linhagem de onde procede esse solitário e altivo sentimento de diferença superior a considerações de raça, religião e classe é antiqüíssimo e venerável. Platão brilha no meio do círculo dos eleitos mas o zodíaco da inteligentzia está cheio como um coro de anjos: todo o Renascimento, o Classicismo, o Romantismo aí proclamam a glória unânime do homem da inteligência.

Os inteligentes se extasiam na sua inteligência. Os antigos altamente excusáveis pois jamais viram nela senão a inteligência do Homem. O particular não foi nunca objecto da atenção “divina” de Platão. Os modernos, inexcusáveis, pois dizendo inteligência e eleição é a sua inteligência que elegem, a dos outros tendo-se tornado para todos eles confusa e problemática. E todavia como não exaltar a inteligência sem diminuir o homem? Como proceder para não ficar prisioneiro de um contestável orgulho? Não há solução alguma isenta. Quando se afirma uma diferença, quando nos separamos do género humano proclamando uma diferença qualquer, essa decisão nos absolve e nos condena.

Pode acontecer contudo que a diferença se torne visível por si mesma e se manifeste de tal modo que ao ser expressa por nós seja ainda compatível com a isenção. O destino pode colocar-nos na situação de exteriores ao espectáculo onde a diferença humana se manifesta. Ou interiores a ela mas miraculosamente neutros. Tal pretende ser a situação humana privilegiada dos críticos em relação à poesia quando ela não o é senão por um acaso quase tão raro como o da própria poesia. A situação íntima e real da maioria da crítica literária – em especial universitária - é a de uma não sei que subtil, confusa mas obstinada consciência de não sei que superioridade em relação ao poeta. De outro modo como se teria ele inventado crítico? Embalsamadores imaginam-se ressuscitadores, glosadores de vivos crêem-se inventores de mortos. São insuportáveis, mesmo os melhores, e quanto melhores piores. A esse destino de aves mortuárias da criação só escapam os críticos a quem o amor deu asas para queimar na luz descoberta. O amor os inventou, sua crítica é o diálogo, o discurso sem fim que o amor suscita, segundo diz o Fedon, e o amor os salva. No mundo da criação, mais implacável que o terrestre mundo que a todo instante se esboroa ou que o da inteligência que a si mesma se divide e agoniza, só há na verdade OS POETAS E OS OUTROS.

Eu pertenço aos outros e por isso não tenho mérito algum em o confessar. Como é da essência dos outros, e em especial da fauna crítica, que é o sumo dessa “alteridade”, também eu talhei e medi, fiz comparecer réus e testemunhas, pronunciei sentenças de morte para pessoas que não podiam morrer, concedi liberdade a escravos deles mesmos, ofereci vida a cadáveres confusos, enfim alucinei-me sobre poderes que Deus não concede senão aos criadores. Em suma, cedi à tentação de ser crítico."

Texto publicado no mais recente número da revista luso-brasileira "Metamorfoses"

Eduardo Lourenço e a crítica

O volume quatro da revista luso-brasileira "Metamorfoses", já disponível nas livrarias, traz um cuidado dossier sobre Eduardo Lourenço. Um dos artigos foi escrito por alguém muito importante para mim e, sendo assim, não fica nada bem estar a elogiá-lo. Pensei em nem sequer mencionar esta novidade no Cais, mas depois cheguei à conclusão que seria uma pena não dar a conhecer um inédito do autor que ali vem ali. Chama-se "O Poeta e os Outros" e foi escrito por um jovem Lourenço, já muito consciente da dificuldade de julgar uma obra de arte.

O ensaísta português, radicado em Nice há muitos anos, fala nesse texto da crítica literária que se quer responsável e não máquina destruidora de criadores. Os críticos, para ele, "são insuportáveis, mesmo os melhores, e quanto melhores piores. A esse destino de aves mortuárias da criação só escapam os críticos a quem o amor deu asas para queimar na luz descoberta." Daí que Lourenço defenda a crítica daquilo que nos toca. Se um texto não encontra no crítico o seu leitor ideal - ou simplesmente é, na sua opinião, um texto fraco - não escrever sobre ele poderá ser talvez o tratamento mais honesto. Por isso encontramos na vasta obra de Lourenço análises apaixonadas sobre criações que o ensaísta leu com extremo desvelo. A literatura que não mereceu o movimento da sua mão não é necessariamente má, apenas não lhe tocou.

As mãos e os frutos



Só as tuas mãos trazem os frutos,
Só elas despem a mágoa
destes olhos, e dos choupos,
carregados de sombra e rasos de água

Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos
_ Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.

Encontro de Eugénio de Andrade com a mineira Ana Regina Nogueira , fotógrafa e poeta

O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam

Para homenagear o escritor argentino, a Fundação Internacional Jorge Luis Borges vai criar até ao fim deste ano um verdadeiro jardim dos caminhos que se bifurcam, mais precisamente na quinta Los Álamos, na província de Mendoza, no sopé dos Andes. Quem quiser saber como vai ficar este gigantesco labirinto tem de ir até ao país do tango nos próximos meses. Este equipamento de sonho terá ainda uma biblioteca em braille (para provar que os dedos que escrevem também lêem) e um miradouro.

Quentin Tarantino



Acabo de ver a quarta obra de Quentin Tarantino. Depois de "Cães Danados" (1992), "Pulp Fiction" e "Jackie Brown", o realizador nos convoca para mais uma bem humorada sessão de violência: "Kill Bill". Uma Thurman aparece com um fato amarelo no melhor estilo Bruce Lee, cortando com uma espada samurai braços, pernas e cabeças. O sangue das vítimas jorra como poços de petróleo de banda desenhada. Aliás, Tarantino também recorre ao formato de desenhos animados para fazer algumas cenas de flash back. Com figuras orientais com olhos gigantescos e tudo.

Múltiplas linguagens, ícones liquefeitos por varinhas mágicas, uma pitada saudosa (mas com nova roupagem) de artes marciais. Cá temos o nosso velho Tarantino a contar histórias banais de um jeito fantástico, a fazer da violência a coisa mais divertida que podemos ter ao fim de um dia de trabalho. Ele próprio confessa: "A violência é a coisa mais engraçada que se pode fazer em filmes".

Há menos diálogos do que nas fitas anteriores. Em troca, temos mais acção. O filme apresenta-se como um livro, por capítulos. E o que podemos ver hoje nas salas de cinema constitui apenas o primeiro volume dessa obra. A sequela, só em Fevereiro de 2004. Apenas nessa altura saberemos como a heroína (Uma) completa a sua vingança contra aqueles que a tentaram matar no dia do seu casamento (um deles o Bill, o pai do filho que trazia na barriga).

Falem da banalização da violência, falem da dissolução da moral. O que é facto é que eu ri imenso. Porque aqui o poder atroz contra a vida (e a integridade física dos corpos, literalmente) atinge níveis tão elevados e descontextualizados que só nos resta não identificar tal violência como plausível e, por isso mesmo, rir desse descompasso entre vida e morte.

É o caso da cena em que a "guerreira dos cabelos cor de feno" luta contra uma inimiga vestida de quimono branco (Lucy Liu, ex-Anjo de Charlie): o cenário é um jardim zen, com flocos de neve desprendendo-se do céu, mas a música que embala este sonho nipónico é "Don´t let me be misunderstood", dos Santa Esmeralda. A japinha acaba por ser escalpelada, sendo que o seu couro cabeludo vai pelos ares até, em curva descendente, cair no chão alvo e gelado. Na sequência, aparece o crânio incompleto da criatura, que (pasmem!) ainda é capaz de dizer uma frase completa e gramaticalmente correcta.

Como conter o riso? Um riso incomodado e catártico, é certo, mas riso. Um riso que nos deixa mais confortados do que muitos filmes politicamente correctos.

sábado, outubro 25, 2003

À porta de Llansol (IV)

Tenho ainda "O Começo de Um Livro É Precioso" (Assírio & Alvim, 2003), de Maria Gabriela Llansol, em minhas mãos. Na estância 35, lê-se:

"Apesar de ele ter decidido não compreender, ela / Persistia em explicar-lhe por que lia a Gabriela Llansol ___ / «É a casa que ensina a ler (pausa) imagina um extraordinário /Atractivo para o amor (pausa) o livro fala (pausa) / Procura a página que te fala (pausa) são da substância / Dos beijos e da boca (pausa) sentam-se à mesa / Num estético convívio (pausa) a sua liberdade / É tal que, se as folhas se partem, regressam por si sós ao ponto de partida e juntam-se, esperando (pausa) são / Pombas somente ligadas por uma fita de voo (pausa) / Não vês?» (continua) ".

É curioso que a autora inclua no seu próprio texto o reflexo que provoca nos seus leitores. Talvez Llansol saiba que nem todos aqueles que assomam à sua porta se sentem confortáveis. É preciso pausas muitas vezes. Daí os hiatos ___________ que com frequência intercalam as suas palavras. Esses mesmos sinais gráficos que pontuam as obras são, por ela mesma, maravilhosamente descritos como "pombas ligadas por uma fita de voo". Cada um poderá entender como quiser este interstício que aparta (une?) o leitor da escrita. Eu vejo como uma imagem metafórica do leitor que se debruça sobre páginas, lendo-as, mas que, num dado momento, interrompe a leitura e pousa o olhar no horizonte. Esta paragem, que pode ser representada como _____________, também é leitura, ainda que os olhos não estejam pousados sobre as palavras impressas. Uma escrita assim permite um espaço inigualável de liberdade ao leitor.

quinta-feira, outubro 23, 2003

Ferreira Gullar


As edições Quasi acabam de lançar a "Obra Poética" de Ferreira Gullar. Obviamente, não pude deixar de comprar. O livro conta com um belíssimo prefácio de 18 páginas assinado por Ivan Junqueira. Tenham paciência, pois as próximas mensagens serão dedicadas ao meu querido poeta brasileiro.

O sítio Outras Palavras também me informa que Ferreira Gullar chega a Internet e nos permite, através de seu site, receber um e-poema diretamente via e-mail. A internet também nos traz coisas belas."

Para despertar o apetite, segue o poema que forra a contracapa do volume editado entre nós pela Quasi.

"Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo - deuses frágeis -
eu colho a ausência que me queima as mãos."

sábado, outubro 18, 2003

À porta de Llansol (III)

Leio no blogue de Alexandra Barreto mais um testemunho sobre a leitura dos textos de Llansol. Ela fala sobre "O Jogo da Liberdade da Alma", um livro recém-lançado pela autora portuguesa. A obra veio a lume precisamente num colóquio no Convento da Arrábida, juntamente com outro título, "O Começo de Um Livro éPrecioso" (Assí­rio & Alvim, ilustrações lindas de Ilda David). São apontamentos de leitura que dão conta da lenta viagem que é chegar até à textualidade de Llansol.

"Para Llansol, escrever, ler, amar e existir são formas de investigação do mistério do real através de um texto que não aceita as limitações nem da prosa nem do verso.
Neste livro que se constrói a partir de "menos-valias" (p. 13), de "dias perdidos, textos reconstituídos, ossos ressequidos à espera que o texto lhe renascesse em volta" (p. 20), o conceito de "ressurreição" é fulcral. O mundo, a vida, o amor e a literatura dependem das ressurreições que devem processar-se constantemente para que algo subsista do conflito entre o texto e o tempo: "o texto, na sua trajectória, não me queria no Tempo, onde, indubitavelmente, o meu corpo me quer" (p. 27). Mas num conflito pode haver uma (trans)fusão entre os dois pólos em causa. E para o texto vencer o tempo tem de aceitar confrontar-se com ele, tem de conseguir ser "livre, e anterior a si mesmo, e posterior a si mesmo____a substância narrando-se" (p. 12).
Tenho uma confissão a fazer: há muito tempo que não conseguia ler um livro de Maria Gabriela Llansol até ao fim. Geralmente impaciento-me com alguma imprecisão das palavras que se vêem subitamente desprovidas dos seus referentes lexicais tradicionais sem necessariamente lhe serem atribuídos outros que permitam ao leitor um ponto de apoio. No entanto, este livro terminei-o muito rapidamente, quase sem interrupções."

sexta-feira, outubro 17, 2003

Ainda as Edições 2 Luas

Fiz uma pesquisa na internet para encontrar artigos sobre Llansol e, juro de pés juntos, acabei por tropeçar numa estrevista de Paulinho Assunção ao sítio Novos Livros . Então vi-me obrigada a voltar a falar nas Edições 2 Luas. O escritor brasileiro define assim a sua oficina artesanal:

"A Edições 2 Luas não é propriamente uma editora, é um gesto, um ato utópico de produzir livros manualmente fazendo uso de objetos e ferramentas rústicas e rudimentares: tabuinhas de encadernar, pegadores de papel, tesoura, agulha, cola, uma guilhotina manual, uns cordões, uns barbantes, quinquilharias que cabem numa pasta de colégio e causam júbilo e êxtase no meu filho de seis anos.
Diagramo e edito os textos em PageMaker, imprimo-os em uma impressora, mas todo o processo de feitura dos livros é à mão. Fiz até agora em torno de 20 títulos, desde 1998, em edições reduzidas, de 30, 50, 100 exemplares no máximo. Fiz inclusive uma pequena edição fora do mercado de um belíssimo texto manuscrito de Maria Gabriela Llansol, "Carta ao Legente". E também editei um pequeno livro de poemas do meu querido amigo, o poeta, romancista e dramaturgo português Jaime Rocha, chamado "Arco de Jasmim".
Mas não me considero um editor. Sou um escritor que, através do exercício da confecção manual de livros, lança e estende a alguns poucos leitores, leitores especiais, leitores fulgurados e de fulgurações, certas cartas em busca de bons destinatários."

Sobre Llansol e a Literatura Portuguesa:

"tenho vinculações muito fortes com os autores portugueses: de Camões a Eça, de Eça a Pessoa, de Pessoa a Maria Gabriela Llansol, na qual, o que mais me encanta, o que mais me apaixona, é suprema iluminação alcançada em seus livros pela língua portuguesa. Em Llansol, a língua portuguesa atinge uma solidez incomparável, a partir um registro tão leve e delicado como a pluma. Mas há outros autores pelos quais tenho extrema admiração. Por exemplo, para citar apenas dois, o José Cardoso Pires e a Hélia Correia. E, há poucos dias, publiquei no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, meia página sobre "Fazes-me Falta", de Inês Pedrosa, uma escritora também admirável."

quinta-feira, outubro 16, 2003

Evandro Teixeira



Uma vez me disseram que aqueles que têm um dom raramente o manisfestam. Por outras palavras, as pessoas mais preciosas que já encontrei não trazem um letreiro a indicar isso. Então acontece nas relações humanas aquilo a que chamo "efeito-violeta": estão ali, num canto, com as suas folhas aveludadas e as suas florinhas perfeitas. Se frequentarmos muito uma casa com violetas, não conceberemos mais os parapeitos sem os pequenos vasos. Mas se estivermos lá, no meio de uma festa relâmpago e ruidosa, provavelmente nunca diremos: a casa tinha violetas.

Isto tudo é para dizer que o fotógrafo brasileiro Evandro Teixeira é uma violeta.



Sabe como poucos interpretar a realidade brasileira. Trabalha com gosto, trata grandes repórteres e estagiários com a mesma simplicidade. Tem mais energia do que alguns colegas vinte anos mais novos do que ele. O Jornal do Brasil teve a horna de tê-lo na sua equipa. Carlos Drummond de Andrade dedicou-lhe um poema, texto que considero o elogio máximo do fazer fotojornalístico.

"Diante das fotos de Evandro Teixeira

A pessoa, o lugar, o objecto
estão expostos e escondidos
ao mesmo tempo sob a luz,
e dois olhos não são bastantes
para captar o que se oculta
no rápido florir de um gesto.



É preciso que a lente mágica
enriqueça a visão humana
e do real de cada coisa
um mais seco real extraia
para que penetremos fundo
no puro enigma das figuras.



Fotografia - é o codinome
da mais aguda percepção
que a nós mesmos nos vai mostrando
e da evanescência de tudo
edifica uma permanência,
cristal do tempo no papel.



Das lutas de rua no Rio
em 68, que nos resta
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras, tão vivas hoje como então,
a lembrar como a exorcizar?



Marcas da enchente e do despejo,
cadáver insepultável,
o colchão atirado ao vento,
a lodosa, podre favela,
o mendigo de Nova Iorque
a moça em flor no Jóquei Clube,



Garrincha e Nureiev, dança
de dois destinos, mães-de-santo
na praia-templo de Ipanema,
a dama estranha de Ouro Preto,
a dor da América Latina,
mitos não são, pois que são fotos.



Fotografia: arma de amor,
de justiça e conhecimento,
pelas sete partes do mundo
a viajar, a surpreender
a tormentosa vida do homem
e a esperança de brotar das cinzas.




Olhos redondos no reino da China



"Documentário de Ronald Levaco sobre a saga dos caucasianos residentes na China, de 1930 até os dias atuais. Mostra uma família que desapareceu no interior do país quando a revolução de Mao estourou em 1949, mas o foco central é a trajetória de um russo da região do Cáucaso que aderiu à revolução maoísta e decidiu se tornar chinês.
O filme tenta elucidar um mistério: os motivos que levaram Israel Esptein a permanecer sob um regime que obrigou muitos estrangeiros a fugir e o confinou numa prisão durante 5 anos, na década de 70.

A história é narrado por um cineasta chinês (vivendo nos EUA desde os 10 anos de idade) que volta ao seu país 45 anos mais tarde para desvendar o destino de Esptein, o homem que foi o melhor amigo do pai."


Contributos para um colar de olhos (II)

A Sara mandou-me mais um contributo para o colar de olhos, que há alguns dias tento construir. A ideia é reunir num fio, como se construíssemos uma gargantilha, vários elementos textuais ou imagéticos que façam alusão aos olhos. Sara entrega-me olhos que são "peixes verdes sem mar", trá-los numa caixa metálica, forrada com gelatina, para que não fiquem ressecados.

A Cristina também já nos ofereceu uma imagem do fotógrafo cego Bavcar.

"Poema", de António José Forte

Esta a cabeça em fúria do poeta
como está nas fotografias tiradas de avião
depois de cair em chamas no mar de ninguém

estes dentes
o alfabeto doido com que vai escrever

e aqui está a sua mão direita
estátua de manhã e automóvel à noite
salvo acidente mortal

e eis os seus olhos
peixes verdes sem mar
a sua boca aquela voz horrível no deserto

os seus pés
dois príncipes encantados no palácio dos passos
perdidos
antes de encontrar-te meu amor

À Porta de Llansol (II)



Lúcia Castello Branco deu-me um texto seu chamado "Livro de Cenas Fulgor - caderno de contemplações". A obra é publicada pelas Edições 2 Luas, uma oficina artesanal comandada por Paulinho Assunção. Leio no prólogo que este projecto nasceu da experiência de Lúcia com a textualidade de Llansol e de Sei Shônagon, esta nascida no Japão por volta do ano 965. Lúcia explica então que teve a ideia de fazer uma espécie de listagem (que é uma marca formal de Sei) de "cenas fulgor" (que é um dos princípios construtivos da obra de Llansol, a par com a ideia de "encontro inesperado do diverso").

Para Llansol, as "cenas fulgor" podem ser "uma pessoa que realmente existiu", uma frase, um animal ou uma quimera". "Este é o jardim que o pensamento permite" é um exemplo de cena fulgor. Daí que Lúcia tenha tido a vontade de listar cenas fulgor da sua própria vivência. O resultado é um livro muito delicado, entremeado por páginas de papel vegetal onde figuram pedaços de renda e pétalas de rosas secas. Reproduzo abaixo uma das listas singelas de Lucia Castello Branco.

"Coisas que fazem o coração bater mais forte:

Um planador conduzido segundo a feição do vento
O dorso desnudo de um bebê adormecido
O olhar de um cão, em direcção à mãe que amamenta o bebê
O olhar de uma criança, em direcção àquilo que não compreende
Tâmaras secas sobre um prato de cristal
Aquele amigo distante que retorna
Deitar-se só, num quarto deliciosamente perfumado de incenso
O clarão da lua atrás da nuvem"

Lúcia Castello Branco, diz o livro, nasceu no Rio de Janeiro e vive actualmente em Belo Horizonte, no Brasil. É professora de literatura na Universidade Federal de Belo Horizonte e tem mais de dez livros publicados. É "legente" de Llansol e do mundo. E, o mais importante, é mãe de David e Julia.

À porta de Llansol



Escrevo este texto motivada pelo comentário de um arqueólogo no arame.

Demorei alguns anos para conseguir entrar verdadeiramente na casa de Llansol. Estive à soleira muitas vezes, deslizava as mãos pelo umbral, mas, apesar da porta estar aberta, era difícil para mim aceitar estar num Mundo por vezes incompreensível. O que eu não percebia era que a chave para Maria Gabriela Llansol era muito semelhante àquela que sempre utilizei para Clarice Lispector.

Clarice escreveu: "Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo o entendimento."

A eficiência textual de Llansol está, muitas vezes, ligada a uma vivência da textualidade que não vem acompanhada de um raciocínio linear. Eduardo Prado Coelho explica isso muito bem no livro "Tudo o que não escrevi":

"É verdade que estes textos me fascinam, mesmo quando não estou certo de os entender perfeitamente (melhor: sobretudo quando não estou certo). É verdade (creio) que estes textos fascinam tanto Maria Gabriela Llansol quanto a mim próprio. É o facto de neles se desarmar toda a autoridade de um autor que os torna simultaneamente precários, vulneráveis e deslumbrantes. Qualquer leitor pode bater à porta e entrar. O que o aguarda é apenas a serenidade e a justeza das coisas eveidentes: pão, água, o convívio com as plantas e os animais, alguma luz mesmo de noite no corpo da própria luz. E o amor como partilha do mais difícil."

"eu não posso ler Llansol como se lê um romance - na precipitação ofegante de chegar ao fim. Leio Llansol de lápis na mão, porque é o lápis que me impõe a demora, que me entrava no texto. Isto é, detém-me, contém-me diante da palavra seguinte, obriga-me a voltar atrás, a enredar-me no desenho da escrita."

segunda-feira, outubro 13, 2003

Encomendas para as Edições 2 Luas

Leitora pede-me o endereço para encomendar livros de Rubem Focs, ou seja, Paulinho Assunção. Então lá vai o contacto: paulinhoassuncao@ig.com.br.

Ainda Evgen Bavcar



Sobre a capacidade de criar com o corpo. De acreditar na beleza de uma imagem concebida com desvelo, mas jamais vista. Pelo menos com os olhos.

"Slovenian landscape

My childhood world was one of light and eternity. Everything comes from there. I try to salvage everything I can from my homeland. Family album photos are my favorite. When a friend described El Greco's paintings to me, light and colors are what I remember from my childhood. For me fluorescence will always be light shining on water, the reflections I saw. I have to go back to my country often to refresh my palette.

When I go back to my hometown I touch the trees or the bottom of walls to feel the passage of time. But what's most important is what goes on in my head, what I imagine. It's what I call the gaze of the third eye."

"Portrait with hands

Every photo I take I have to have perfectly organized in my head before shooting. I put the camera at the height of my mouth and that's how I photograph people I hear talking. The autofocus helps, but I can manage without it. It's simple. I measure the distance with my hands and the rest is done by my internal desire for images. I know there are always things that escape me, but that's true of photographers who can physically see. My images are fragile; I've never seen them, but I know they exist, and some of them have touched me deeply."

Fazer amor com os olhos

"nesse lugar havia uma mulher que não queria ter filhos do seu ventre. pedia aos homens que lhe trouxessem os filhos de suas mulheres para educá-los numa grande casa de um só quarto e de uma só janela; usava um xaile preto junto de seu rosto; tinha uma maneira distante de fazer amor: pelos olhos e pela palavra."

in "O Livro das Comunidades", de Maria Gabriela Llansol

Contributos para um colar de olhos



Cristina chegou hoje com algumas imagens nas mãos. Ela disse-me que eram fotos de Bavcar, condensadas numa exposição virtual, mas acho que são contributos para um colar de olhos. O auto-retrato do Bavcar, que aparece no post abaixo, migrou precisamente dessa galeria de fotos. Vale a pena ouvir a sugestão de Cristina. Isso porque a exposição contém, além das imagens tácteis e mentais de Bavcar, depoimentos como este:

Shot against time

"I'm photography´s degree zero. Let's say that I'm more of an iconographer than a photographer. I've met blind people who also take photographs but never as self-consciously as I do. Some of them even do it with the hope of seeing again some day.

I photograph what I imagine, you could say I'm a bit like Don Quijote. The originals are inside my head. It is a matter of creating a mental image, the physical record which best represents the work of what is imagined."

Ver no escuro



"O fotógrafo e filósofo esloveno Evgen Bavcar é um artista devotado a ofuscar a idéia clássica de controle do mundo pelo sentido da visão. Cego desde a pré-adolescência, quando dois acidentes no curto espaço de um ano, primeiro com um olho, depois com o outro, o obrigaram a se despedir da luz, Bavcar aliou sua cultura visual de criança a uma extraordinária bagagem teórica para desafiar a normalidade do olhar e levar os que travam contato com sua obra a um outro patamar de reflexão.

Aos que olham perplexos o objeto de sua fotografia quase sempre envolto em uma aura de luz ele costuma explicar que constrói imagens a partir de um berço de trevas, e as ilumina a partir de sua imaginação. A foto que nasce do clique de sua inseparável Leica russa (e que guarda em suas diminutas proporções um olho de grande precisão tecnológica) é germinada numa experiência táctil com o fotografado e nas informações que colhe de assistentes eventuais, de preferência crianças (Bavcar adora o olhar das crianças)."

Leio o texto acima no sítio No Mínimo e fico feliz por Bavcar fotografar sem os olhos, tateando formas em sais de prata.

Um bilhete para Kafka sobre a olhografia

"Prezado Franz Kafka: gostaria muito que você escrevesse o prefácio (ou o epílogo) do meu novo livro, o qual deverá ser publicado em Fevereiro, pela editora Hummm. É um livro curto, são apenas doze contos, todos a respeito de olhos - olhos de mulheres. Escrevo-o há mais de seis anos, três dos quais eu passei em uma cadeirinha da Praça Sete de Setembro, anotando todos os tipos de olhos femininos que por lá passaram, desde os olhos mais comuns até aos mais exóticos. Sei que o tema não é inédito (o romancista Eliseu Pelim é autor de um razoável livro sobre olhos das mulheres após o banho), mas creio que consegui um ângulo inovador ao usar nos contos a Teoria de Brum Scott, que trata da olhografia, ou seja, a teoria de que as mulheres escrevem com os olhos."

O excerto acima, mais um contributo para o nosso colar de olhos, pertence ao livro "Kafka em Belo Horizonte" (2003), do escritor brasileiro Paulinho Assunção. Está publicado pelas Edições 2 Luas , uma editora artesanal, o que quer dizer que cada volume nasce literalmente das mãos do próprio autor. Ele mesmo diz que os fabrica "com a paciência dos anjos". São exemplares únicos, é certo, mas que estão ao alcance de todos. Basta encomendar por mensagem electrónica. Os leitores portugueses também podem se deliciar com "Pequeno Tratado sobre as Ilusões" (Campo das Letras, 2003) - foi com esta obra, aliás, que descobri o mundo imaginante do autor, guiada pelas mãos de um amigo igualmente imaginante (a quem fico eternamente grata).

A primeira missanga para um colar de olhos



Nos últimos dias estivais, quase totalmente dedicados à preguiça, houve um tema que me deixou especialmente seduzida: os olhos. Olhos muitos, olhos libidinais, olhos cores e funções várias. Todos os textos em que tocava diziam-me: olhos. Neste regresso ao cais, pretendo falar desses olhos que encontrei. Começo por um fragmento que me foi enviado por uma amiga-irmã - uma menina pequenina que, aliás, aprecia muito os olhos humanos. Ela manda-me hoje uma mensagem baptizada de "para os teus olhos". Um bilhete electrónico que diz assim:

"Hoje, enquanto observava uns revôos de borboletas nas cercanias do coreto da Praça da Liberdade, vi a moça entrar dentro dos olhos do namorado, e depois o namorado entrar dentro dos olhos da moça. E a manhã ficou assim: toda só olhos adentrados por outros olhos."

O texto é de Rubem Focs , uma figura deliciosa construída pelas mãos de Paulinho Assunção. Os dedos do escritor brasileiro criam não só figuras imaginárias (e imaginantes, claro está), mas também livros artesanais. Há pouco tempo, Paulinho atribuiu a uma mensageira alada a incumbência de me entregar três das suas obras feitas à mão: "Saberes", "Escreventes" e "Kafka em Belo Horizonte - Volume Um". Este último foi o que mais me tocou. Seleccionei alguns excertos repletos de olhos para transcrever aqui, neste cais sempre aberto à convergência de correntes atlânticas. Hoje, contudo, prefiro começar pelo texto que me foi ofertado, colhido directamente do blog de Paulinho Assunção. É a primeira missanga de um colar de olhos. Não tenho pressa. Vou encontrar as pérolas exactas para compor esta gargantilha. Aceito mais colaborações. Todos os olhos poéticos são bem-vindos, mesmo que lacrimejantes ou vazados.


quarta-feira, outubro 08, 2003

O regresso ao cais



Este cais esteve parado nas últimas semanas. Após o repouso - os barcos também precisam de manutenção -, novas embarcações atracarão ao porto de letras e imagens. Aguardem para breve partidas e chegadas.

sexta-feira, setembro 19, 2003

Ovo esotérico



"Emblemático desse processo de apagamento dos sentidos atribuídos às palavras (e também do processo de fusão com o objeto), o conto-ensaio O ovo e a galinha se constrói a partir do jogo de linguagem estabelecido entre o objeto “ovo” e a palavra “ovo” que o nomeia, numa aproximação lúdica e simultânea da linguagem infantil se esboçando, e da mais abstrata especulação filosófico-metafísica, na qual se busca incessantemente, através da reiteração do nome, definir o objeto, sem que, no entanto, se chegue a atingir essa meta, já que quanto mais se acumulam as definições, mais se distancia a essência do objeto.


Paralelamente a essa fúria aproximativa do objeto, contudo, há a preocupação do narrador em não entendê-lo, pois se o entender estará errando. A linguagem do conto, então, não se propõe a elucidar o mistério do ovo; quer apenas mostrar que é mistério, e o que se delineava como um processo de apreensão do objeto, no início do texto, no final revela-se como o desapego supremo, “pois o ovo é um esquivo”, e somente quando deixado livre, “impensado”, é que pode se revelar em sua verdadeira essência. "

"A PALAVRA E O SILÊNCIO: O ESOTERISMO DE CLARICE LISPECTOR", ensaio de Júlio Gomes