sábado, agosto 30, 2003

Mangelos (1)



A exposição do artista croata Mangelos, patente desde 10 de Maio na Fundação de Serralves, no Porto, chega amanhã ao fim. Eu voltei lá hoje para dar uma última olhadela nos trabalhos interessantíssimos deste senhor, um artista que se considerava um não-artista e que (acreditem!) previu a própria morte. Mangelos criou um sistema de divisão do tempo muito especial. Num manifesto, ele explica que quando entrou em contacto com a "teoria biopsicológica", numa altura em que ainda obedecia a uma rotina escolar na sua aldeia natal, percebeu que "as células do organismo humano se renovam completamente ao fim de sete anos, originando assim, em cada ser humano, diversas personalidades diferentes" ao fim de cada período de renovação celular. Dessa forma, o (não-)artista repartiu a sua vida em nove Mangelos e meio. E tanto a classificação como a atribuição de datas às suas (não-)obras obedecem ao tal sistema. Mangelos morreu em 1987 aos 66 anos.

quarta-feira, agosto 27, 2003

Klimt e a Insensatez



Conheci Klimt no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o famoso MAM, no Aterro do Flamengo. Era uma exposição de desenhos eróticos dele e do Egon Schiele. Antes, conhecia apenas "O Beijo". Fiquei fascinada com a capacidade de construção de mosaicos nos cantos das telas, como se houvesse ali pequenos vidrinhos colados com argamassa delicada, ou então canutilhos bordados.

Além das suas singulares mulheres ruivas - algo que me atrai terrivelmente em termos estéticos -, Klimt possui uma determinada linguagem que nunca confundimos com outra. Um Klimt é reconhecível por estetas e diletantes, oferecendo fruição a ambos. Por quê? Eu gostaria de saber responder, mas nunca estudei belas artes. Limito-me apenas a contemplar os seus quadros, sem esconder a vontade de que cresçam muito alto como girassóis. Para que todos os vejam. Todos. Estetas e diletantes.

A Casa dos Budas Ditosos

Há tempos li "A Casa dos Budas Ditosos" (Dom Quixote, 1999). Gosto do João Ubaldo Ribeiro, mas li o livro sobretudo porque tinha partes picantes. Um amigo do mestrado havia acabado de comprar e achei que ali se descortinava uma óptima oportunidade para folhear algumas sacanagens literárias.

Recorde-se que a obra foi escrita por ocasião de um desafio da editora brasileira Companhia das Letras, que pediu a sete escritores do país para escrever sobre os pecados capitais. Ubaldo ecolheu a luxúria, claro está, mas bem queriam lhe impingir a gula. No país do Carnaval o livro foi mais um na longa lista de títulos do autor, mas aqui, tinha de ser, uma cadeia de hipermercados enxotou o volume com o pretexto deste atentar aos bons constumes. Enfim...

Bem, esta mensagem é apenas para dizer que não, que o livro não é tão pesado assim. São as histórias de uma mulher bem rodada, digo, com experiência. Ela ensina a fazer "nas coxas" e a praticar sexo anal indolor, além de outras malandrices. Nada de extraordinário. Aliás, se o objectivo é ler passagens excitantes, há obras bem mais eficazes.

segunda-feira, agosto 25, 2003

A Viagem na Cabeça



“Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão por acordo de ritmo com a distância exposta para as viagens aos países incógnitos, ou supostos, ou somente impossíveis.”

Bernardo Soares, “O Livro do Desassossego”

domingo, agosto 24, 2003

Klimt



"Claro que é bela a cama, dorme
para acordar e nunca o contrário.
E no mapa devolvido aos escombros
acharás a saída para as tuas pequenas crises
entre um pedaço de pão e água."

Daniel Jonas, in "Moça Formosa, Lencóis de Veludo"
(2002, Cardernos do Campo Alegre)

Ainda a beleza

"Regardez-moi... je suis le plus beau du quartier, je suis le bien-aimé
Dès qu´on me voit, on se sent tout comme envouté, comme charmé...
Lorsque j´arrive, les femmes, elles me frôlent de leur regard penché,
Bien malgré moi, je suis plus beau du quartier."

Carla Bruni, canção "Le Plus Beau de Quartier", do álbum "Quelqu´un m´a dit"

"Considerava-se feia e tinha sido esse autojulgamento o bordão onde se apoiara para carregar a sua vida. Sabendo-se feia não desejava nada e de tudo o que de severo, ríspido e hostil lhe acontecia considerava merecedora."

Ana Paula Inácio, conto "Sob a Árvore Maior", do livro "Os Invisíveis"

sábado, agosto 23, 2003

A Beleza e o Efémero

Hoje aconteceu um cortejo de pessoas vestidas de papel. Isso acontece na freguesia da Foz do Douro, no Porto. Existem várias “costureiras” que, ao longo de dois meses, confeccionam peças cuja matéria-prima é a celulose e, o mais intrigante, cujo único destino é a desintegração no mar. Isso porque, no fim do desfile, os mais de 200 participantes lançam-se efusivamente ao mar da praia de Ourigo. Vestes com os mais delicados debruns, golas com rendas vazadas e folhos costurados à medida – tudo, tudo o que saiu das mãos daquelas singulares artesãs do papel, dissolve-se na água salgada.

Não consegui deixar de pensar naqueles insectos que nascem para viver apenas algumas horas. Têm a palavra “efémera” no nome. Porque morrem antes do nascer de um novo dia. Mas cumprem a sua função, como sugere Gaston Bachelard no seu imprescindível “A Poética do Espaço”. Para o autor francês, o tempo de maturação pode ser tão importante como o desabrochar para a luz. Assim, o exíguo casulo pode ser visto como uma cómoda casa que prepara a criatura para um novo ciclo – o que justifica uma eternidade para um instante excelência. Ainda que fugaz.

O bater de asas.

Despejos de inquilinos camarários

No livro "Número Dez" (Difel, Junho de 2003), a escritora Sue Townsend ironiza a situação política e social da Inglaterra contemporânea. O livro vale pela crítica ao trabalhismo autista de Blair e tem momentos de bom humor, embora não seja uma leitura imprescindível.

Trata-se da história de um Primeiro-Ministro que se descobre distante do seu povo, não sabendo nem sequer o preço de um litro de leite ou como atrasam sistematicamente os comboios. Então, o PM decide fazer uma viagem à Inglaterra profunda (vestido de mulher, para não ser reconhecido), tendo como guia o polícia que guarda o número 10 de Downing Street.

No entanto, há uma determinada parte em que se diz que, em Leicester, quando se verifica que há tráfico de drogas numa habitação municipal, o inquilino perde imediatamente a casa. Afinal, a Câmara do Porto não está sozinha na moda dos despejos relâmpago.

Clarice Lispector (2)

Biografar um escritor é sempre um exercício de restauração. Encontra-se uns caquinhos aqui, cola-se com outros ali, deduz-se as partes que faltam a partir de documentos e fotos. Nádia Batella Gotlib fez algo semelhante para compor "Clarice - Uma Vida que se Conta" (Editora Ática, 1995, a minha edição é brasileira). E fez mais: entrelaçou vida e obra, adicionou leituras críticas dos textos ficcionais. Porque desenhar Clarice sempre foi algo muito difícil, pelo seu jeito fugidio, pela sua alma inquieta. O pintor Carlos Scliar conseguiu uma imagem da autora de "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres". Mas é um retrato entre tantos possíveis. Nádia Gotlib explica assim a sua dificuldade:

"Num universo em que o documental e o fictício se misturam, procuro examinar como os ingredientes dessa narrativa de vida e de obra se organizam, considerando-os na complexa alquimia criativa em que ferve o líquido de mutações. metamorfoses, tranfigurações, cujo segredo, em última instância, parece inviolável.

Contudo, não se pode negar que há... coincidências. E tais coincidências a feiticeira Clarice conhecia bem. E tanto praticava como eficácia o parecer como se fosse que, nesse jogo, nós, leitores de sua vida e de sua obra, por vezes nos sentimos ludibriados, de modo até magicamente perverso, e enredados numa das grandes questões que essa narrativa de vida traduz: os limites entre o histórico e o ficcional. De quem é a voz? Quais as pessoas e quais as personagens? O que é a história e o que é a ficção? Enfim, o que é real e o que é imaginário, nesta história de Clarice?"

Ao ler a biografia elaborada por Nádia Gotlib, senti-me então no direito de imaginar a minha Clarice a partir das impressões que coleccionei desde que conheci a sua obra. Se o jogo que ela propõe dissolve as fronteiras entre arte e vida, por que não imaginá-la à minha maneira?

Foi então que comecei a construí-la.
Contaram-me que era feiticeira e que isso se notava muito bem em "Onde Estiveste de Noite" (1974). A minha mãe falava-me de uma conferência de bruxaria na qual ela havia participado, levando consigo o seu célebre conto do ovo.
Disseram-me, quando eu estagiava no Jornal do Brasil, que Clarice nos anos 70 escrevia umas crónicas femininas mais inócuas do que as de Margarida Rebelo Pinto. E que, segundo a jornalista Gilse Campos contou à filha, Clarice era "estranhíssima", aparecendo na redacção com roupas bizarras e comportamentos arredios. Fazia-o, claro está, desde que mandou às favas o marido diplomata que, estou certa, era um chato de primeira linha. De regresso ao Brasil, Clarice tinha de sustentar a si e aos dois filhos homens - Pedro e Paulo, salvo erro.

Clarice era linda, diga-se de passagem. Com olhos de sedutora nata, Clarice podia ser louca a ponto de esquecer de dar comida aos peixes ou de adormecer com cigarros acesos, imolando-se acidentalmente. Mas não deixo de imaginá-la a passear tranquila no calçadão na praia do Leme (onde morava a escritora), seguindo até ao fim da marginal de Copacabana. Era o que fazia a Lóri de "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres".

Não vale a pena encaixá-la em nenhum parámetro fixo ou fazer dela um tipo social. Clarice simplesmente viveu, só que o fez muitas vezes DENTRO da literatura. E assim já não se pode mais distinguir uma coisa da outra. Como ela própria escreveu algures, "não se preocupe em endender, viver ultrapassa todo o entendimento".

sexta-feira, agosto 22, 2003

Clarice Lispector



"Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor.
Que tem que ser vivido até a última gota.
Sem nenhum medo. Não mata."



Ana Paula Inácio (2)

Estive a pensar e achei injusto citar "As Vinhas de Meu Pai" e não citar "Os Invisíveis", ambos das edições Quasi. Este livro tem uma delicadeza que, na minha opinião, supera aqueles versos de Ana Paula Inácio. Como já havia adiantado na mensagem anterior, a autora apresenta no seu primeiro trabalho em prosa 12 criaturas que padecem da invisibilidade na nossa sociedade eugénica.

É o rapaz meio Forrest Gump que os colegas chutam e achincalham no colégio. É a filha que cuida do pai enfermo e deixa escapar por entre os dedos a feminilidade, à medida que a areia se esvai na ampulheta. É a mulher (tão clariciana, meu deus...) que deixa a porta fechar acidentalmente e fica refém da sua própria casa alugada, um lugar de transição onde a personagem mal consegue deixar a sua marca identitária. São, enfim, figuras com quem já privamos em algum dia ou lugar. Figuras que quase pedem desculpas por existir, num esforço enorme para serem invisíveis. Seres de papel pelas mãos de Ana Paula Inácio, que nos obriga a estar atentos à dor do mundo, a estar mais perto do coração selvagem.

"Nunca fui bonita e sempre fiz um esforço por me tornar visível. Sem dar nas vistas à custa de exuberância. Apenas pretender que os olhares mais próximos se demorassem em mim num momentos de ternura ou mesmo lassidão. Mas a senhora conhece o ditado, Se não consegues vencê-los, junta-te a eles, e foi assim que deixei de existir, mesmo nos espelhos onde, começando por me tornar baça, me rarefiz em partículas mínimas de pó ou ainda nas fotografias onde me diluí num tom sépia e depois neutral."

(in "A Mulher que se Fez Cão e Depois Partícula Mínima de Praia")

Ana Paula Inácio



Um dia João Gesta disse: "Tens de conhecer a Ana Paula Inácio. É uma das vozes mais fortes da poesia contemporânea". Ofereceu-me generosamente, como sempre, dois títulos editados pela Quasi: "As Vinhas de Meu Pai" (2000) e "Os Invisíveis" (2002). Este é o seu primeiro livro de prosa.

Carlos Bessa escreve que ali estão reunidos 12 contos sobre a crueldade. Textos sobre gente comum. Histórias que nos fazem pensar na humilhação de "Felicidade Clandestina", da Clarice Lispector. A diferença é que o desfecho clariciano permite o encontro com o objecto amado - o livro, neste caso -, ao passo que as personagens de Ana Paula acabam por aceitarem a auto-imagem de pequenez, a propensão à melancolia e a geografia imutável da insularidade da alma.

Pinço o poema abaixo de "As Vinhas de Meu Pai" (quase escrevia da ira...)

olho à volta
em flecha sobre as coisas
à procura desse ladrão excepcional
que me roubou o livro inventado
pra me poupares o coração
à mágoa dos vivos
mas sei que é inútil
trago em alvo
apenas alfaias dométicas
com que trabalho a terra
aquela que escolhi
e sei que é inútil porque o mal tem asas
e só o vento nos salva
e nos transporta
ao lugar da árvore
junto ao rio onde me banharei três vezes
até que o galo cante
e me lembre do meu pai
a quem devo ceia e roupa branca

Ana Paula Inácio nasceu no Porto, em 1966, e vive hoje no meio do Atlântico (é o que diz a contracapa do livro, que reúne textos escritos entre 1992 e 1993). Além dessas duas obras, a autora publicou ainda "Vago Pressentimento Azul Por Cima".

quinta-feira, agosto 21, 2003

Uma Mulher-Estátua

O tempo passa como uma aragem pelos seus cabelos. Os fios estão emplastrados com tinta dourada. As mãos pousadas sobre o peito seguram uma criança ausente e, talvez por saudade da infância, assim permanecem até ao tilintar da próxima moeda. Ela é uma mulher de vestes encarnadas que não se contenta em estar suspensa sobre os relógios de uma multidão – quer mais, deseja sobrepor-se ao real com gestos singelos, mas estagnados numa era muito antiga. Tão antiga que mal podemos dela recordar uma linha. E por isso fixamos os nossos olhos nos seus, à procura de um sinal de vida qualquer: um piscar que seja, a traição de uma veia mais dilatada ou o tremor de um corpo cuja matéria-prima pode, a qualquer instante, deixar de ser pétrea e liquefazer-se em sangue.


Hãtoino de Lírio



Os pés estão firmes, hirtos sobre o plinto que lhe coloca acima do real. Diz-me que aquele pequeno cubo de madeira ajuda-o a estar sobre o mundo. Quando sobe o degrau singular para a imobilidade, esmaga vidros de relógios com os pés e inaugura a idade da quietude. Diz-me que dali, daquele palco urbano, vislumbra o todo e sustém a respiração tão fortemente a ponto de sentir o ar entrar pela pele. Erra quem vê naquele corpo coberto por uma cremosa tinta dourada apenas um homem imóvel: a estátua viva pulsa e apreende do concreto os seus aspectos mais ínfimos. Despe transeuntes com o olhar, conjuga vontades que deambulam absortas nas artérias de uma cidade que se chama Lisboa. O nosso ser de granito faz do sossego físico uma viagem estática para aquilo que pode haver de mais amplo e distante: o imaginário humano. Dessa incompreensão colectiva resulta a sua queixa, registada numa obra de apontamentos nocturnos: “Ninguém mais entende a quietude da minha criação, ninguém mais imagina montanhas para lá do céu, ninguém mais alcança a meta das minhas viagens. Todos esqueceram a procura do porquê do passado.”
Ele dizia-me, sentado num pequeno banco da sua casa no Alentejo, que quando estava imóvel pensava apenas numa imagem interior. Controlava a respiração, dominava cada brônquio das suas duas bolsas de ar. Pouco a pouco, estabelecia um diálogo entre o cérebro e o corpo. Este julgava subjugar aquele com a arma mais desleal: a dor. Mas o cérebro acaba por negociar com a carne o preço da beleza estática. O cansaço dos ossos ou a sofreguidão dos músculos são como nuvens que passam, sendo a quietude o céu que resiste. Assim diziam os ensinamentos de ioga e concentração que transportam a matéria para o espaço mais recôndito do universo humano. A mente do artista viaja para todas as paisagens que desejar. Se está frio e a vontade de espirrar é iminente, basta imaginar um lugar ensolarado onde sopra uma aragem tépida. Porque o ambiente que o rodeia é construído pelos impulsos eléctricos dos seus neurónios. E nada mais. É assim que o primeiro homem-estátua mostrou que é possível seduzir o tempo.


quarta-feira, agosto 20, 2003

Amores presos



Leio na edição da revista Focus desta semana que, na cidade húngara de Pecs, os apaixonados deixam cadeados em locais públicos. “Os objectos são fechados em grades, argolas em paredes, portões e até estátuas, como símbolo de amor eterno – são os casais de namorados que executam este ritual no meio de olhares embevecidos e beijos húmidos”, diz a notícia. Após apelos vãos, as autoridades locais decidiram erguer uma nova cerca metálica à volta de dos equipamentos mais procurados pelos enamorados.


Sérgio Vieira de Mello

Estava a chegar à Praia da Memória, ontem, quando soube que um atentado suicida tinha deixado o meu conterrâneo Sérgio Vieira de Mello sob os escombros de instalações ocupadas pela ONU no Iraque. Quando a sua morte foi confirmada, não pude deixar de ficar arrepiada pelo significado daquele acto extremo de brutalidade. Como diz a manchete do PUBLICO, aquilo que aconteceu “marca a entrada num novo patamar de violência”.

Penso então no poema “Eu Falo das Casas e dos Homens”, de Adolfo Casais Monteiro:

(...)
Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa a ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa...

(...)
Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?

(...)


terça-feira, agosto 19, 2003

Janela Indiscreta



Há um livro ao qual regresso com imensa frequência. Chama-se "Semear na Neve", da socióloga Maria Filomena Molder. Encontrei-o por acaso numa livraria do Porto em 2001. Não conhecia a autora na altura. E só estiquei o braço até ao escaparate porque achei muito corajosa a imagem de alguém a cultivar terras gélidas. Na contracapa, há um desenho de Adriana Molder, onde um rapaz-leitor apoia o queixo na palma da mão. Abaixo, lê-se um fragmento de um ensaio de Filomena Molder sobre as fotografias de Andre Kertesz:

"É incomensurável o poder que um livro tem sobre o olhar que nele se demora, revelando-lhe um segredo comum. (...) Rememoração, o tempo de leitura é uma actualização eminente, através da retenção do olhar, o espaço retrai-se até um limiar indeterminado, e invade e afeiçoa como a argila mais dócil, o corpo daquele que lê, imóvel, parado, suspenso."

Quando abri o volume, no entanto, percebi que além do ensaio inicial sobre "On Reading", de Kertesz, havia uma reunião de ensaios sobre Walter Benjamin. A aquisição da obra já estava garantida. O texto mais bonito, na minha opinião, é "A Paixão de Coleccionar em Walter Benjamin".

E era exactamente aqui que eu queria chegar para falar do blogue Janela Indiscreta. É que este espaço vitual construído a muitas mãos consegue materializar parte do sonho do pensador alemão. Ali estão reunidas imagens ou fragmentos textuais recortados por cada um dos membros. É certo que há por vezes comentários originais, mas boa parte dos posts são citações iconográficas ou escritas.

Maria Filomena Molder escreve que "Walter Benjamin aspirou realizar, como se alcançasse um clímax de perfeição, uma obra que fosse composta inteiramente de citações. Esse seu desejo veemente permite fazer-nos penetrar no universo do coleccionador. Ao citar, substituindo pela citação a escrita própria, transcende-se o fluxo da sua apresentação e fixa-se o citado em si mesmo, assumindo-se essa posição de intermediário por excelência, que não é só um estádio vivencial, como também envolve uma crença, transformada em teoria, sobre o universo existente."

Penso então que há nos criadores de Janela Indiscreta um desejo de coleccionar pedacinhos de beleza. Dá-me a impressão que eles recolhem, sempre segundo a lógica da selectividade, aquilo que lhes foi capaz de proporcionar fruição. Ao disponibilizar esse acervo de objectos estéticos, o grupo consegue não só partilhar generosamente com os outros a forma como focalizam e recortam o mundo, mas também construir um mosaico de citações colecctivo (e não pessoal, individual, como preconizava Benjamin). E, não é preciso dizer, esse puzzle inacabável de peças usadas torna-se, assim, uma obra completa e inédita a cada post.

PS. Curiosamente, este livro de Filomena Molder já foi citado na Janela Indiscreta. Será o mosaico de citações uma proposta estética intencional deste grupo?

PS. A imagem desta mensagem é uma citação (!) do blog ABRUPTO. Mas também é uma prenda de uma amiga especial, que quis me dar um livro muito lido "para me agitar os sentidos". Espero que JPP não se importe.

sexta-feira, agosto 15, 2003

Insónia dos anjos



Sempre achei que os anjos dormiam de bruços para não magoar as asas. Hoje encontrei um anjo grávido. Se eu fosse um poeta como Caetano Veloso diria que o tempo parou para olhar para aquela barriga. Um ventre muito convexo, prateado. Não hesitei em pensar como repousava aquele anjo que prepara outra pessoa (um bebé alado?). Talvez durmam de lado os anjos grávidos. Ou então simplesmente quedam suspensos no céu, fazendo do ar leito macio. Quando não descobrem a posição correcta para o encontro com os sonhos, acabam por sucumbir à força da gravidade. Poucos sabem, mas assim sucedeu a primeira queda de um anjo. Houve quem dissesse que as mulheres aladas e grávidas eram expulsas do espaço celeste por conspurcarem a pureza dos querubins. Mas é mentira. Elas apenas sofriam de insónia.

quinta-feira, agosto 14, 2003

Estatuária viva



O blog Janela Indiscreta (cuja estrutura de referências imagéticas e textuais merecerá uma mensagem futura) faz uma interessante reflexão sobre a imobilidade das estátuas. E refere especialmente uma dessas obras, uma das poucas que têm o dom de dançar. Partilho do mesmo sentimento e, por isso, tenho um fascínio enorme pelos homens-estátua. É que eles conseguem, na sua inércia de carne e osso, construir um jogo perfeito entre a estética e o estático.

São figuras minerais como estas que distinguem as ruas da cidade. Uma vez por ano, voam com asas muito largas até Espinho e ali reúnem-se numa praça. Retomam o cinzel e esculpem mais uma vez uma matéria única, orgânica é certo, mas estática. Seres híbridos que distribuem-se como um povo em silenciosa diáspora. Quem escreve a história dessa população imóvel?

quarta-feira, agosto 13, 2003

A desertificação das aldeias

Uma imagem do fotógrafo Paulo Pimenta sugere o abandono a que está votado o interior de Portugal. Se pudesse traduzir em palavras a delicadeza do trabalho do artista, seria assim:

As ervas crescem ao ritmo do abandono. É o único ritmo deste lugar. A velocidade da seiva que nutre caules verdes do esquecimento. São silvas que crescem robustas e espinhosas. Os homens envelheceram. As suas cabeças, cobertas por grinaldas de cabelos brancos, tombam sobre o peito – como a minha. Sinto o cansaço de quem ficou quando todos partiram. Resta pousar a mão sobre o joelho, neste banco de madeira tornada áspera pelo tempo. Resta esperar que novos relógios venham substituir este sol suspenso. A expectativa da chegada de ponteiros electrónicos, de metal brilhante, capazes de trazer horas rápidas. Para já, tudo é incompleto: a fábrica encerrada acima, a leira queimada abaixo e as videiras por podar no nosso quintal. Os nossos filhos sempre alertaram para a inevitável despedida, mas tu não acreditaste. Achaste que a terra natal é solo de todo dia, onde se planta o pão e se cria os filhos. Mas agora que tu partiste, estou só com as silvas.

domingo, agosto 10, 2003

Quem atira a primeira pedra em Morvern Callar?



Sim, ela parece bizarra. Por vários motivos. Porque abre as prendas de Natal impávida e serena, como se não estivesse ao lado de um cadáver. Porque corta o namorado suicida em pedacinhos. Porque usa o dinheiro do funeral para viajar com uma amiga até Ibiza. Ela chama-se Morvern Callar e trabalha na secção de hortaliças de um supermercado. É quem dá espessura ao novo filme da britânica Lynne Ramsay. Mas a actriz que lhe empresta corpo, Samantha Morton – nomeada para o Oscar por “Através da Noite”, de Woody Allen –, não vê tanta estranheza assim na personagem. Já confessou que apenas considera Morven “um ser primário”, que lida com a morte de uma maneira singular, instintiva e nada ocidental.
Numa sociedade que se habituou a conferir uma imagem da limpeza clínica ao processo fúnebre – e o historiador Phillipe Ariés mostra isso muito bem nos seus estudos sobre a morte –, alguém como Morvern distingue-se como uma transgressora de valores culturais. E o que o filme “A Viagem de Morvern Callar” oferece é o confronto com uma outra forma de dizer adeus. Uma despedida feita com uma faca, numa banheira ensanguentada, ao som da cassete que ele lhe gravou com desvelo. Segue-se um enterro íntimo numa terra simbólica, com uma sepultura cavada com as próprias mãos. São comportamentos que gravitam à volta de um núcleo de espanto, é certo, mas o espectador que avançar com a primeira pedra arrisca-se a não embarcar na viagem de Morvern Callar. Quem julgá-la não irá conhecê-la.