terça-feira, agosto 19, 2003

Janela Indiscreta



Há um livro ao qual regresso com imensa frequência. Chama-se "Semear na Neve", da socióloga Maria Filomena Molder. Encontrei-o por acaso numa livraria do Porto em 2001. Não conhecia a autora na altura. E só estiquei o braço até ao escaparate porque achei muito corajosa a imagem de alguém a cultivar terras gélidas. Na contracapa, há um desenho de Adriana Molder, onde um rapaz-leitor apoia o queixo na palma da mão. Abaixo, lê-se um fragmento de um ensaio de Filomena Molder sobre as fotografias de Andre Kertesz:

"É incomensurável o poder que um livro tem sobre o olhar que nele se demora, revelando-lhe um segredo comum. (...) Rememoração, o tempo de leitura é uma actualização eminente, através da retenção do olhar, o espaço retrai-se até um limiar indeterminado, e invade e afeiçoa como a argila mais dócil, o corpo daquele que lê, imóvel, parado, suspenso."

Quando abri o volume, no entanto, percebi que além do ensaio inicial sobre "On Reading", de Kertesz, havia uma reunião de ensaios sobre Walter Benjamin. A aquisição da obra já estava garantida. O texto mais bonito, na minha opinião, é "A Paixão de Coleccionar em Walter Benjamin".

E era exactamente aqui que eu queria chegar para falar do blogue Janela Indiscreta. É que este espaço vitual construído a muitas mãos consegue materializar parte do sonho do pensador alemão. Ali estão reunidas imagens ou fragmentos textuais recortados por cada um dos membros. É certo que há por vezes comentários originais, mas boa parte dos posts são citações iconográficas ou escritas.

Maria Filomena Molder escreve que "Walter Benjamin aspirou realizar, como se alcançasse um clímax de perfeição, uma obra que fosse composta inteiramente de citações. Esse seu desejo veemente permite fazer-nos penetrar no universo do coleccionador. Ao citar, substituindo pela citação a escrita própria, transcende-se o fluxo da sua apresentação e fixa-se o citado em si mesmo, assumindo-se essa posição de intermediário por excelência, que não é só um estádio vivencial, como também envolve uma crença, transformada em teoria, sobre o universo existente."

Penso então que há nos criadores de Janela Indiscreta um desejo de coleccionar pedacinhos de beleza. Dá-me a impressão que eles recolhem, sempre segundo a lógica da selectividade, aquilo que lhes foi capaz de proporcionar fruição. Ao disponibilizar esse acervo de objectos estéticos, o grupo consegue não só partilhar generosamente com os outros a forma como focalizam e recortam o mundo, mas também construir um mosaico de citações colecctivo (e não pessoal, individual, como preconizava Benjamin). E, não é preciso dizer, esse puzzle inacabável de peças usadas torna-se, assim, uma obra completa e inédita a cada post.

PS. Curiosamente, este livro de Filomena Molder já foi citado na Janela Indiscreta. Será o mosaico de citações uma proposta estética intencional deste grupo?

PS. A imagem desta mensagem é uma citação (!) do blog ABRUPTO. Mas também é uma prenda de uma amiga especial, que quis me dar um livro muito lido "para me agitar os sentidos". Espero que JPP não se importe.

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