terça-feira, dezembro 26, 2006

Acordem-me quando 2007 chegar



Como ainda não inventaram uma técnica de coma induzido, que permita adormecer no dia 23 de Dezembro e só acordar no ano seguinte, vou tentar simular a coisa com livros, jornais e uma chávena de chocolate de quente. Até 2007.

Meu coração bate feliz












Esta é a melhor frase-síntese da vida do Braguinha, o João de Barro, compositor de canções que aprendemos a cantar - Carinhoso, Copacabana, Pirata da perna-de-pau, A saudade mata a gente, Laura, Pastorinhas ... -, e incorporamos a belos momentos de nossa vida, sem muitas vezes nos lembrarmos do seu autor.

Quando morre alguém que viveu plenamente uma longa vida (completaria 100 anos em 2007) e criou tantas belezas, lamentamos a perda, é claro. Mas, por outro lado, sabendo que o nosso destino de criaturas viventes é a morte, devemos nos alegrar ao ver a admirável trajetória que desenhou na sua passagem terrena. Poucos viveram assim, experimentando e espalhando a felicidade.

Obrigada, Braguinha. Diante da paisagem deslumbrante da praia de Copacabana, contemplarei a "princesinha do mar" e lançarei um pensamento de beleza para você.

segunda-feira, dezembro 25, 2006

Quando nasce uma criança

ao Menino que hoje faz anos e a todas as crianças

Quando nasce uma criança, com ela também nascem uma mãe, um pai, uma madrinha, um padrinho, dois avôs, duas avós, quatro bisavôs, quatro bisavós...

Quando nasce uma criança, nasce uma relação familiar, que enlaça gerações, abraça o passado, faz sorrir o presente e lança sementes ao futuro.

Quando nasce uma criança, renasce o sonho de que o homem seja capaz de fazer do lugar que lhe coube viver um mundo melhor.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Textos-oferendas de Natal

Recebi de duas pessoas muito especiais dois belos textos em forma de cartão. Um deles é uma Crônica de Natal que cerze memórias afetivas com o fio da ficção e o outro é um conto de António Torrado.

Oferecer a alguém que amamos textos escritos pelo próprio punho ou por algum escritor que apreciemos é a melhor prenda de Natal possível, porque, no gesto de ler e de escrever, e de escolher, com os olhos, a mão e o coração, a quem dedicar, cria-se algo único, que contraria a reprodução em série. É como se susurrassem ao ouvido do amado/amigo, afagando todo o ser: tu és algo irrepetível, reconheço a tua singularidade e celebro contigo, através desta data tão especial para a humanidade, a ressurreição da esperança e a alegria de viver.

No Natal de 1998, talvez o mais difícil da minha vida, recebi de uma amiga preciosa uma singular oferenda, um texto original, para pôr no pinheirinho, ao lado das guirlandas e enfeites. Quando sentia-me esmorecer, olhava e relia o texto-oferenda e aquele estranho e raro fruto reacendia a minha luz. A vibração do pensamento afetivo dessa amiga, para mim a melhor escritora em língua portuguesa, ajudou-me a suportar a angústia de quase perder o meu companheiro de toda uma existência.

Na fulguração de gestos-instantes como esses, sentimos e experimentamos que somos eternos (Maria Gabriela Llansol).

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Velando a Amiga

querida amiga,

aqui, deste lado do Atlântico, envio-te, através dos fios de correio inteligentes, esta carta-mensagem com imagens curativas, para que em breve possas beijar o princípio espiritual da manhã e ver raiar o dia ileso

rezo-te a leitura, colho em teus textos as imagens que te relanço pelos ares, através do anjo que por toda a parte se insinua

neles li que a saúde ia voltar, e que os teus livros e cadernos (vivos, como tu dizes), assim como as figuras do eterno retorno do mútuo (em eterno nascimento através da transformação da matéria), aguardam a vibração do teu olhar, a fazer soar berlindes quando atravessas os corredores da escrita

segunda-feira, novembro 27, 2006

O direito à (e a) liberdade

Quando se depende totalmente dos outros, perde-se o direito à própria intimidade.

Ramón Sampedro, personagem de Mar adentro, 2004 (citação de memória)

quinta-feira, novembro 23, 2006

A Arte de Perder












Brighton, Novembro de 2006

"A arte de perder não é difícil de se dominar,
tantas coisas parecem cheias de intenção
de se perderem que a sua perda não é uma calamidade.

Perder qualquer coisa todos os dias. Aceitar a agitação
de chaves perdidas, a hora mal passada.
A arte de perder não é difícil de se dominar."

Eduardo Prado Coelho cita estes versos de Elizabeth Bishop numa das suas crónicas semanais no Mil Folhas, suplemento do Público. E diz assim depois: "o poema continuava, sempre cadenciado por esta ideia fundamental: perder pode parecer-nos uma calamidade, desde perder as chaves a uma pessoa que morre ou a um amor que acabou. Mas não é. A vida é feita de coisas que se perdem. Precisamos de aprender a perder. E isso é uma aprendizagem interminável."

O que me pergunto é se é mesmo possível aprender a perder alguém. Perder uma chave é aborrecido, mas fazem-se cópias. Perder gente para sempre dói demais.

terça-feira, novembro 07, 2006

Carta ao meu morto amado

Li e pensei muito em você, Pai.

A cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência de quem morreu. No avô Mariano confirmo: morto amado nunca pára de morrer .

(Mia Couto. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra)

sexta-feira, outubro 20, 2006

Da tristeza

"O tempo é a coisa mais importante das nossas vidas - até porque se nasce e morre e é nesse intervalo estreito que temos de viver. Mas o tempo quotidiano é algo que impregna os corpos por inteiro e que os programa para agir de um certo modo."

Este é um excerto de uma crónica do Eduardo Prado Coelho no Público. Não me recordo o dia em que foi publicada. Talvez nesse dia estivesse mais preocupada em ser feliz.

domingo, outubro 01, 2006

Mulheres nuas, sós ou saudosas

Edward Hopper, Eleven A. M. (1926)

"Um atributo notável da mulher nua é que, apesar de sua prisão solitária na tela, ela nunca se encontra sozinha, eis que sempre nos olha, nos encara fixamente quando a olhamos. Jamais poderemos ser voyeurs secretos, ela sempre nos observará, nos penetrará agudamente, revelando-nos como funciona o nosso desejo e, portanto, quem somos, e isso valerá tanto para homens quanto para mulheres. Sua presença é muito diversa daquela de nus pintados por pintores oniscientes da solidão, como Edward Hopper, em seus, por exemplo, Eleven A. M. (1926) e Morning in a City (1944), em que mulheres nuas, sozinhas em seus quartos, completamente distraídas de seus corpos, vistos de perfil e já marcados pelo tempo, contemplam pedaços de cidades lá fora, nesgas de edifícios, tão desolados quanto elas, as mulheres nos quadros. E se falamos em onisciência é porque o pintor, em princípio, não poderia estar no espaço delas, nem vê-las. Então é bem como no cinema, quando se oculta a técnica que nos propicia estar ali, no convívio dos personagens. O cinema, que não escapou a Hopper em New York Movie (1939): de um lado, a sala de projeção, com seus escassos espectadores que se perdem no que se passa na tela; do lado de fora, no estreito saguão, a moça de uniforme, a lanterninha, com a mão no rosto, profundamente absorvida nos seus pensamentos - ah, a eterna prisão dos pensamentos -, e quase não resistimos a ler na expressão da moça, sendo ela tão jovem, a tristeza de algum amor desfeito, ou distante: uma saudade. "
Excerto do conto "A Mulher Nua", compilado no livro O Voo da Madrugada, do escritor brasileiro Sérgio Sant´Anna (Companhia das Letras, 2003)
Edward Hopper, New York Movie (1939)

sábado, setembro 30, 2006

O salto impossível

"Mas uns cinquenta metros antes de atingir o embarcadouro, você escuta já o terceiro e o último apito da barca, solene na noite, e, ao chegar ao cais, a embarcação zarpou poucos segundos antes. Você fica tão aturdido que chega a pensar em dar o salto impossível, de uns vinte metros, que o lançaria no interior da barca. Mas, impotente, só lhe resta apoiar-se na amurada de pedra do cais, e olhar."

Excerto do conto "A Barca da Noite", que faz parte do livro O voo da madrugada, do autor brasileiro Sérgio Sant´Anna (Campanhia das Letras, São Paulo, 2003)

Convite à paz em Hyde Park

domingo, setembro 10, 2006

O Caderno dos Dias

Sinto muito a falta de Ditta. Partiu sem deixar bilhete, a não ser esta última imagem, um daguerreótipo das nossas leituras partilhadas. Fez-me ainda chegar um vaso de violetas no dias dos meus anos, a planta está viçosa na minha cozinha, como a amizade que sinto por ela. Uma última mensagem feita de clorofila.

domingo, setembro 03, 2006

poema das coisas aladas


"as coisas ensinam o chão. explicam-lhe quanto há entre terra e céu, o caminho livre do voo, a vista elevada de deus. eu vejo anjos e os anjos são das coisas aladas os sonhos mais completos. erguem-se braçados de asas a educar o vento, percursos de sopro que se abrem nas dimensões, e luzem nas nossas cabeças como homens enfim pássaros. como se as árvores pudessem ser casas nossas e nada nos acordasse na força do frio ou ou da chuva. como se nos cumprimentássemos em pleno ar, seres tão leves atarefados com mais nada. seríamos só pulmões cheios, máquinas de pairar, alegres imprecisões ao alto "

in livro de maldições, de valter hugo mãe (objecto cardíaco, 2006)

sábado, agosto 26, 2006

A estupidez não é barata

"E lá vamos nós para o Líbano – depois do Kosovo, do Afeganistão, do Iraque – ajudar a limpar a confusão deixada pelas asneiras grandiosas da corte presidencial americana. Nada sai mais caro do que a estupidez. Nada é mais perigoso do que a estupidez dos poderosos. "

Miguel de Sousa Tavares, hoje, no Expresso

domingo, agosto 06, 2006

A parte sombria de nós

"Escrevemos porque há algo em nós que não compreendemos, que ignoramos, temos um segredo, um incesto sonhado, um assassínio de traição fundamental, um pecado original. Há algo sombrio, escondido, no centro das nossas vidas e é em torno disso que escrevemos."

Olivier Rolin em entrevista ao suplemento Mil Folhas (Publico, 29/4/06)

quinta-feira, junho 29, 2006

A América partida

"Este é o grande problema da América de hoje: o país está dividido em dois e nenhuma das metades consegue falar com a outra. Antes das últimas eleições estive envolvido com todo o tipo de eventos para a angariação de fundos para a campanha [do candidato democrata à Presidência, John] Kerry. Fizemos leituras, workshops... Foi maravilhoso e com resultados fantásticos, mas tudo se passou em Nova Iorque, onde ninguém votou no Bush. É como pregar aos convertidos - é isso que é tão frustrante. Mas é necessário. Além disso, se agora ficássemos calados, seria um crime, um verdadeiro crime."

Paul Auster em entrevista ao Mil Folhas (Público, Junho de 2006)

sexta-feira, abril 28, 2006

Como os nossos pais

Estou ali, quem sabe eu seja apenas
a foto de um garoto que morreu.
No espaço entre o sorriso e o sapato
há um corpo que bem pode ser o meu.

Ou talvez seja eu o seu espelho,
e olhar reflete em mim algum passado:
o cheiro das goiabas na fruteira,
o murmúrio das águas no telhado.

No retrato outra imagem se condensa:
percebo que apesar de quase gêmeos
nós dois somos somente a chama inútil

contra a sombra da noite que nos trai.
Das mãos dele recolho o que me resta.
Eu o chamo filho - e é meu pai.

in Todos os Ventos - Antologia Poética (Quasi, 2005), de Antonio Carlos Secchin

quinta-feira, abril 27, 2006

Via profana

deste-me o beijo de Judas
e continuo a carregar meu fardo humano
morrerei
e não ressuscitarei
para cumprir nenhum destino divino

meu Lázaro tampouco ressuscitou
e falta demasiado na minha mesa
como jamais faltarei a alguém

nenhum lenço de Verônica
limpou-me lágrimas e suor
povo algum assistiu às minhas quedas
nem apareceu na via um compadecente Simão
para tornar mais leve a minha cruz

sequer talvez uma mater dolorosa
pranteará o meu fim

Das negativas

não mais lançarei redes sobre o mar da indiferença
sei de antemão que sequer perceberás o meu silêncio
que castiga apenas e mais mais a mim

não embalarás os meus cabelos brancos
ou talvez me visites como quem cumpre um dever
apenas por compaixão ou temor da lei do retorno

não pertenço a tua lista de prioridades
não faço parte do teu show
não sou futurível
significante
in

Fragmentos de um futuro poema

A vida sabe-me a matéria plástica
o filtro dos afetos foi poderoso demais
conheço a algidez dos laços que se desatam
nem por engano florirão as roseiras bravas
o limbo do olvido apaga-me o nome e o rastro
impossível atravessar defasagens de ritmos

meus dedos sistinos não alcançam tocar-te o âmago
minhas palavras não abrandam a secura impassível
não nasceu ainda o canto órfico capaz de franquear
a áspera inumanidade que se agiganta a cada dia
deixando-me a evidência da selva escura
na descida do caminho da minha vida

sábado, abril 22, 2006

Uma visita inesperada 2

Ontem, após um longo intervalo, recebemos novamente a visita de um sagüizinho. Desta vez ele não caminhou pelo muro da varanda: ficou apenas próximo ao tronco da grande amendoeira que espalha seus ramos em frente à varanda do nosso apartamento. A visita, há muito desejada, ocorreu quase na mesma hora da outra – por volta das dezesseis horas, quando a rua estava calma e as famílias pareciam esperar o calor abrandar um pouco para melhor aproveitar, ao ar livre, o final da tarde do feriado de Tiradentes.

Eu lia uma parte do jornal quando, de repente, senti um pequeno baque nos galhos da árvore. Provavelmente uma amêndoa madura se desprendera e batera nos ramos, antes de cair definitivamente. Olhei meio distraída na direção do ruído e, subitamente, vi a ágil criaturinha saltitando na parte central da amendoeira. Acordei suavemente o meu amor para que também pudesse rejubilar-se com o visitante. Se fosse o mesmo sagüizinho que nos visitara, decerto iria apreciar ainda mais a recepção, pois lembrei-me de que tinha bananas maduras na cozinha. Corri a pegar uma fruta e a fatiá-la. Quando voltei, pé ante pé, à varanda, ainda pude ver o macaquinho a escorregar rápido para o galho debaixo e a desaparecer entre a folhagem. Mesmo assim, depositei os pedacinhos de banana na beirada de mármore, na esperança de que retornasse, atraído pelo cheiro ou pela visão da fruta.

Um pouco depois, saímos para a nossa habitual caminhada. Confesso que desejei voltar logo, para verificar se ele tinha percebido a banana no beiral. Quando regressamos, já havia escurecido. Na beirada, os pedacinhos remexidos. Mas, infelizmente, não pelo sagüizinho. Pelos excrementos ali deixados, percebi o rastro de um visitante indesejado: um morcego frugívoro. Talvez o mesmo que, aproveitando-se do nosso esquecimento, penetra furtivo pelas frestas das janelas abertas e insiste em dependurar-se no lustre do quarto dos fundos. Quando nos encontramos quase face a face há sempre um terror mútuo. Como recepcionar bem uma criatura que se parece com um rato e suja o globo de vidro e o edredon? Meu amor por animais não chega a tanto.

terça-feira, abril 18, 2006

Porque ontem completarias 81 anos

Ficou vazio o teu lugar à mesa. Alguém veio dizer-nos
que não regressarias, que ninguém regressa de tão longe.
E, desde então, as nossas feridas têm a espessura
do teu silêncio, as visitas são desejadas apenas
a outras mesas. Sob a tua cadeira, o tapete
continua engelhado, como à tua ida.
Provavelmente ficará assim para sempre.

No outro Natal [aqui eu diria Páscoa], quando a casa se encheu por causa
das crianças e um de nós ocupou a cabeceira,
não cheguei a saber
se era para tornar a festa menos dolorosa,
se para voltar a sentir o quente do teu colo.

Maria do Rosário Pedreira in A Casa e o Cheiro dos Livros

segunda-feira, abril 17, 2006

Sobre um mundo de plasticina

"Quando olho à volta, e olho para a minha própria vida, essa ideia de procura de amor, que implica dor, é absolutamente recusada e diluída numa espécie de vivência que parece ter sentido mas não tem. Somos ratinhos de laboratório entre centros comerciais, emprego, modas, jornais, artigos de opinião, férias e isso rouba-nos tempo. Já não conseguimos ter tempo. Há alguns anos que anda a ser editado o livro do Proust Em Busca do Tempo Perdido que pede um outro tempo para ser lido; é muito difícil um ser contemporâneo ler aquele livro, vê-se à rasca para ler."

Excerto de um conversa entre o encenador Nuno Cardoso e o actor João Pedro Vaz, publicada no programa da peça Plasticina (Teatro Carlos Alberto/Teatro Nacional São João, Porto, 2006)

quinta-feira, abril 13, 2006

Presente de Páscoa

Bem melhor que oferecer ovos e bombons de chocolate como presente de Páscoa, é dar a ler um belo conto. Boas leituras não engordam o corpo e alimentam o espírito. Ofereço a você, meu desejado e raro leitor, uma sugestão de leitura: “Repartição dos pães”, conto de Clarice Lispector (de Laços de família), um verdadeiro achado, por apresentar, em linguagem literária altamente elaborada, uma originalíssima visão do tema pascal. Um texto para ler e repartir, sobretudo nesta época de pouca fraternidade e muito consumismo.

sábado, março 11, 2006

Desenhar com luz


Muitos portugueses já conhecem (sim, o 400 Asas já teve até direito a referência no Abrupto), mas os brasileiros também têm direito a saber da novidade: Adriano Miranda, fotojornalista do Público, já tem um blogue.

segunda-feira, março 06, 2006

Declaração de amor para uma jovem sábia, uma filha do coração

As teias da vida e do acaso (?) fizeram com que nossos caminhos se cruzassem, apesar de vivermos em países distantes, com o Atlântico no meio. Bendita hora. Desde o início percebi que você era uma pessoa muito especial e que a grande afinidade que senti de imediato ia além da coincidência do seu nome com o de alguém muito querido. Da sua boca escutei as palavras sábias e ponderadas que eu mais precisava ouvir no momento de maior dor. Elas ajudaram-me a atravessar a turbulência e a vislumbrar possibilidades de saída, quando tudo parecia desmoronar. De você veio o gesto que, agindo no tempo e no lugar certos, decidiu o futuro a favor da vida. E o caminho que esse gesto abriu deu origem a novas paisagens florescentes, cuja contemplação extasia.

Não sou poeta, mas um dia encontrarei o poema que quero lhe dar. Um poema que diga de forma plena e bela aquilo que gostaria de lhe dizer. Enquanto ele não chega, receba um buquê com algumas palavras da língua portuguesa, colhidas no instante em que as escrevo, ao sabor do adejar da memória. Escolho-as – algumas por sua sonoridade, outras por suscitarem imagens ligadas ao campo dos afetos e a coisas que tornam a vida mais digna de ser vivida – e entrego-as a você, minha filha especial, gerada no coração:

A - acalanto, afeto (como amor, amizade), alma, amora, andorinha,...
B- bebê, beija-flor (ou colibri),...
C- criança, coração, carrossel, corpo, cálice, cereja,...
D- dádiva, dom, divino, diadema, dança,...
E- estrela,...
F- fada, flor, felicidade, framboesa, ...
G- gerânio, giesta,...
H- hortênsia, ...
I- imaginação, Iansã, Iara, infante,...
J- jardim, jasmim, jangada, joaninha,...
L- lua, luz, libélula, ...
M - mãe, menininha, mar, música, miosótis,...
N- ninar, namorado, nenúfar, navio,...
O- ovelha, orvalho,...
P- pai, passarinho, poesia, pão,...
Q- querida,...
R- realejo, rosa, romã, rosmaninho, ...
S- sabiá, sol, sonho, som, silêncio, saudade,...
T- tamarindo, tecer, tiara, ternura...
U- unicórnio, ...
V- violeta, vida, vibração,...
X- xale, xamã, Xodó, ...
Z – zêlo,...

Ps.: Para melhor compor o ramo, ponha nas reticências as flores-palavras que mais amar.

quinta-feira, março 02, 2006

Sobre a pneumonia

Outro Poema Para o Meu Amor Doente, de Eugénio de Andrade

Outono, pássaro de melancolia
num céu sem cor que não promete nada,
mar de insónia onde o teu corpo paira
ou um aroma de terra molhada

Respiração humana

Por que choramos ao ler determinadas passagens de um livro ou ao assistir cenas de alguns filmes? Ou mais especificamente, por que a emoção por vezes vem-nos aos olhos e derrama-se em certos momentos que deixam os demais leitores ou espectadores impassíveis?

Percebo-me a chorar durante a projeção de As chaves de casa, filme sobre Paolo, um jovem com deficiências físicas e psicológicas provocadas por complicações durante o seu parto, a que se seguiu a morte da mãe e a rejeição do pai. Na cena que me provocou lágrimas, a personagem Nadine, cuja filha tem problemas ainda mais sérios do que os do rapaz, diz ao pai de Paolo, atarantado ante as dificuldades de enfim assumir o filho: faltou “respiração humana” junto ao berço do menino recém-nascido.

Esta afirmação punge-me intensamente. Ela toca-me porque nela descubro parte da minha história e que talvez nem com anos de Psicanálise pudesse aflorar. Narrativas familiares contam que minha mãe, numa época e numa região de extrema escassez, a ponto de meu pai precisar emigrar, viu-se sozinha, às voltas com o papel de maternar duas crianças pequenas – a minha irmã, de menos de dois anos de idade, e eu, recém-nascida e gravemente doente –, e acumulando ainda a função de provedora do lar. De manhã cedo até ao anoitecer, trabalhava como jornaleira (mulher-a-dias) no campo, semelhante à bóia-fria do Brasil. E, sem tempo para choro ou lamentações, ia secando as lágrimas e suportando como podia as saudades do marido distante e a dureza da vida.

Para que não percebêssemos a sua longa ausência, ela mantinha o nosso aposento o máximo possível no escuro, assim julgaríamos que era noite e dormiríamos mais. Se acordávamos e chorávamos, não havia ninguém ali para ouvir e acudir. Para nós, e em especial para mim, praticamente só havia a noite e quase nenhum colo. Nesse tempo não havia fraldas de papel, alimentação infantil industrializada nem outros recursos semelhantes. E se houvesse, ela não teria condições de adquirir. A alimentação das filhas pequenas só podia ser dada muito cedo, antes de ela sair para a lavoura, e muito tarde, quando regressava, extremamente exausta e faminta, e ainda tendo que cuidar da nossa higiene e da rotina doméstica.

Na fase do berço, minha irmã, primeira filha do casal, nascida quando nosso pai e nossa mãe iniciavam o casamento e o sonho de uma vida familiar com menos pobreza, conseguiu pegar um pouco do colo e do convívio com os dois. Quando começou a andar, ia com o meu pai para os trabalhos do campo. Admirava-se com o regato de água que irrigava os campos de milho – “ai tanta água!”, aprendeu a dizer ao nosso pai, que achava graça do espanto da menina - e distraía-se tentando pegar maçãs meio apodrecidas que caíam no caminho. Quando eu nasci, a situação de penúria aumentou, e meu pai tomou a difícil decisão de deixar a família e a terra natal, em busca de um futuro melhor para nós.

Só conheci meu pai aos quatro anos de idade, quando a família finalmente se reencontrou. Faltou-me no berço “respiração humana”, não por morte de mãe ou abandono de pai, mas por contingências da vida madrasta, que nos abandonou a todos. Entender isso conforta. Mas a quase total ausência do sopro que acalenta o bebê é uma lacuna que não poderá ser preenchida. Permanece como falta, ainda que sem culpas. E as marcas da longa noite da infância ainda permanecem, em forma de hipersensibilidade a qualquer tipo de luz: só no mais pleno escuro consigo adormecer.

terça-feira, fevereiro 28, 2006

Réquiem por um raro tesouro humano

Ele nasceu para amar a família, não a família por ele constituída através do casamento – mulher e filhos -, mas a que lhe coube por laços de sangue. Emigrou ainda jovem da terra de origem. E durante toda a vida o seu amor maior, além do interesse pelo trabalho, do gosto pela boa mesa e do prazer de jogar uma partida de cartas de vez em quando, era ajudar de alguma forma a todos. A cada Natal, a cada viagem de regresso ao seu país, seu pensamento esteve sempre voltado para essa família. Espalhou a sua imensa generosidade com grandeza de alma, sem olhar muito a quem contemplava, sem esperar nenhum reconhecimento. Fez o bem com o suado fruto do seu trabalho, não como penhor do futuro, mas pela pura intenção de fazer o próprio bem. Talvez o fizesse em nome da sua grande saudade dos pais e da casa que o viu nascer. Talvez para alguns parecesse uma criança grande, de quem se pode facilmente tirar um doce. Sua capacidade de doação era tamanha, que muitos julgaram que só podia ser um grande milionário, alguém que em terras estrangeiras tinha encontrado a ambicionada árvore das patacas. E freqüentemente se engalfinhavam para aumentar o seu imerecido quinhão.

Silenciosamente ele adoeceu. Foi-se apagando aos poucos a chama da sua vida. Viver foi perdendo o sentido. Por amar demasiada e desinteressadamente os seus, perdera aquilo a que também chamamos anima. Decerto percebeu as artimanhas e astúcias, algumas escancaradas, para arrancar-lhe mais e mais patacas. Decerto apercebeu-se da crescente desagregação familiar. E foi ficando mudo, vagaroso, quase imóvel, como se o movimento do corpo correspondesse ao da tristeza da alma.

Quando partiu de repente, manifestando ainda, através da dor da perda de um familiar, um gesto de amor, um último gesto de amor à família, alguns – poucos - o choraram muito sentida e discretamente. Choraram ao ver partir, de morte só aparentemente súbita, um ser incomum, mas consolava-os porém entender que assim pararia de sofrer a sua morte em vida. Outros, por trás da fingida comoção, disfarçadamente exultaram ante a possibilidade de enfim receber sua parte dos ovos de ouro. Outros ainda sequer disfarçaram, não se preocupando em esconder seu desamor. Muito poucos perceberam que aquele que partia era o verdadeiro tesouro, um raro tesouro humano neste nosso tempo de indigência ética e amorosa.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Abraço da amendoeira

Quando estava muito debilitada, com o corpo doente, sufocada pelos acessos de tosse, senti necessidade de tomar um pouco de ar na varanda. Percebi que um galho da amendoeira se projetava em minha direção, como alguém que estende os braços, fraternamente, desejando dar alento ao outro. Por impulso, agarrei com as duas mãos o galho que se me ofertava, fechei os olhos, e recebi a energia que a árvore –mãe me enviava. No dia seguinte, já um pouco melhor, segurei novamente o generoso ramo, desta vez para agradecer a mensagem de vida.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Poema para o meu amor doente

Estava debilitada, febril, praticamente de cama, e recebi de alguém muito amado uma mensagem eletrônica com este título - Poema para o meu amor doente - e tendo como conteúdo este poema, de Eugénio de Andrade:

Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.


As dores do corpo não desapareceram de imediato, mas uma sensação de conforto afetivo inundou-me o corpo e a alma, formando uma espécie de halo que se irradiou e se estendeu, como braços invisíveis, para me afagar.

Preciso dizer à doadora: colho embevecida as mãos que se me oferecem em buquê.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

vestigia lectionis

O Paulo escreve coisas belíssimas, recorda-nos, por exemplo, que quem lê nunca está só. É verdade. Talvez por isso as pinturas ou fotos de pessoas a ler transmitam tanta serenidade. Ou prazer, pela aquisição do conhecimento. Sem perceber, Paulo organizou um pequeno inventário da iconografia da leitura.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Já confundimos tanto as nossas pernas, diz com que pernas eu devo seguir

Foto de Andre Kèrtesz


"Aquele ciclo banal de adormecer e acordar no escuro, por baixo da roupa, com outro ser, um mamífero pálido, suave e terno, de faces encostadas num ritual de afecto, sedimentado por breves instantes nas necessidades eternas de ternura, consolo, segurança, de membros entrelaçados para estarem mais próximos - uma simples consolação diária, quase demasiado óbvia, fácil de esquecer com a luz do dia. Será que alguma vez foi descrito por um poeta? Não uma ocasião em particular, mas a sua repetição ao longo dos anos."

Sábado, de Ian McEwan (Gradiva, 2005)


segunda-feira, fevereiro 06, 2006

A dor da indiferença

Pesquisadores norte-americanos concluíram que perceber o sentimento ou atitude de indiferença por parte de quem amamos (amigo, amado ou outro ente querido) provoca no cérebro uma reação semelhante à provocada no lado que sente a dor física.

A indiferença e o esquecimento pungem, fazem sangrar a alma. Não faz sentido causar dor a alguém, especialmente a quem amamos. Não faz sentido sofrer dor, sobretudo se for causada por um ser amado.

sábado, fevereiro 04, 2006

Todas as cores do nome de amor

Quem não fica extasiado ao contemplar um arco-íris no céu? A física explica esse fenômeno do arco-íris atmosférico que transforma a luz branca em cores brilhantes. Os Dicionários da Língua Portuguesa o definem e registram vários sinônimos: arco-celeste, arco-da-aliança, arco-da-chuva, arco-de-deus, arco-da-velha. Simbolicamente, esta ponte imensa que liga a Terra ao Céu, por ser efêmera e de difícil visibilidade, representa algo mágico, maravilhoso, mas difícil de ser atingido.

Imagine um lugar em que crianças crescem-em-educação e, junto com as professoras, constróem pontes entre o real e o imaginário, mantendo vivas todas as cores do nome de amor – o amor de ler, o amor de ensinar/aprender (mantháno, como os gregos chamavam o movimento de ensinar e aprender). Ele lugar existe e persiste, impulsionado pelo sonho e pela ação de duas diretoras (Centro de Educação e Crescimento Arco-Íris, Vassouras, Estado do Rio de Janeiro).

Oxalá existam outros arco-íris como este espalhados pelos diferentes lugares do Brasil e do Mundo, e que as crianças possam crescer para a apetência de beleza.

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

A leitura dos corpos


Aqui encontra-se imagens belíssimas da leitura, com um olhar semelhantes àquele que mostramos há tempos (On reading, de André Kértesz). As posições que o corpo encontra para se debruçar sobre um livro constituem um kamasutra mais erótico do que se possa imaginar. Quem duvida, deve ler O prazer do texto, de Roland Barthes.

domingo, janeiro 29, 2006

Anjos da América

"O corpo é o jardim da alma."

Mesmo que fosse só para ouvir uma Emma Thompson alada a dizer a frase acima já valeria a pena espreitar esta excelente série da HBO, recentemente lançada em DVD. Numa caixa estão condensados os seis primeiros episódios, o equivale a quase sete horas de puro prazer sobre o sofá. Fundamental para compreender a América dos anos 80, atordoada com Reagan no poder, a Sida e o orgulho desmedido de ser "a" terra da liberdade. Fundamental para compreender como a América é o que é no século XXI.

Para que você saiba 2 – Milhões de anos e alguns raros encontros

Procuro, em Inquérito às Quatro Confidências, de Maria Gabriela Llansol, a melhor forma de dizer o quanto cada vez mais me apercebo da raridade do nosso encontro. Esse Diário é uma despedida, uma longa carta de amor a Vergílio Ferreira, que está para partir (como a obra de Vergílio é, no fundo, uma interminável Carta a Sandra ), escrita porém não à maneira da epistolografia comum, mas à luz da estética do fulgor:

Quando ele partir,
ficarei ainda mais longe das referências da compreensão, da ponderabilidade das coisas, dos segmentos certeiros e eficazes do ler comum. Augusto que me ouve tenta centrar-me, à revelia do que sinto: - São milhões de anos, e alguns encontros. Sempre assim foi, Maria Gabriela. Escusam de gemer. Vocês os dois, tiveram uma oportunidade raríssima.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Escondidinho


O novo filme do austríaco Michael Haneke, Caché, consegue ser melhor do que o anterior, A Pianista. As nossas vidinhas comezinhas estão todas lá: a editora de livros (Juliette Binoche) e o apresentador de magazine literário (o já acabadote mas ainda charmoso Daniel Auteuil), membros oficiais da elite cultural, apavoram-se quando percebem que o seu quotidiano está a ser monitorado por alguém.

Fitas de vídeo mostram-nos a entrar e sair de casa. Fitas de vídeo que surgem, como que caídas do céu, à porta da moradia do casal. Não vêm sozinhas, mas sim embaladas em mensagens pictóricas (aliás, tudo no filme é imagem, não estamos nós na sociedade da imagem?): desenhos infantis com manchas escarlate sugerem uma criança ou um galo a deitar sangue.

E como reagem estas pessoas tão letradas diante do desconhecido que vem bater à porta? Um incógnito que não vem com legenda ou resumos de contracapa? Reagem como humanos que são. Sentem medo.

A personagem de Auteuil, mais precisamente, assume comportamentos agressivos. O homem letrado é também um animal acuado pelo passado. Ameaça Majid, um argelino com quem privou na infância e que esteve a um passo de ser adoptado pela sua família. Majid é o seu suspeito, o presumível autor das chantagens imagéticas.

O crítico João Jopes escreveu que "aquilo que Haneke filma é um modo de vida em que as imagens, mais do que um duplo da realidade, passaram a existir como uma nova realidade, fortíssima e incontornável, enredada em todas as componentes da nossa existência". Mas não é só isso. Aquilo que Haneke filma somos nós, cobertos pelo verniz da cultura que supostamente nos torna mais compreensivos e civilizados.

Nós, os cultos que têm medo do Outro - o negro que passa de na bicicleta na rua, os argelinos que gostariam de ser franceses, os filhos dos argelinos que se acham franceses e queimam carros. Nós, os cultos que exortamos o encontro com o Outro e o pluralismo. Nós e a nossa culpa.

Mostra! Mostra!

Descubro hoje (lendo a nova revista do DN, a Sexta) que Jorge Reis-Sá vai lançar o seu primeiro romance pela D. Quixote. Estamos à espera.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Entre Calais e Dover

Recebo no início do ano, quando chego de viagem, um livro azul - a capa parece um vidro fumado, distorcendo a silhueta de uma mulher saída do século XIX. As pinturas são de Luís Noronha da Costa e os poemas de Jorge Reis-Sá. Encontro ali as palavras que ficaram por dizer no dia em que partiste, não são minhas, mas sim do poeta. Mas eu não sou poeta e apetece-me dizê-las do mesmo jeito ao teu ouvido:

A vida inteira esperei por
alguém como tu

Mesmo sabendo que não sei como és

E mesmo que
ainda não se tenha passado a vida inteira.

in Quase e outros poemas De Querença (Quasi, 2000, 1ª edição; 2005, 2ª edição)

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Para que você saiba 1 – Meu pé de laranja lima

Zezé, protagonista de Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, a certa altura, quando chora a perda do “Portuga”, descobre que o seu pé de laranja lima era, na verdade, o amigo morto.

Penso o quanto sou imensamente feliz por nós duas estarmos vivas e eu saber claramente, sem precisar perdê-la, que você é o meu pé de laranja lima. Não, quando eu partir, você não entoará um canto em forma de requiém, como a filha de Walter, em O Vale da Paixão, de Lídia Jorge. Porque nosso afeto encontrou o tempo certo, a palavra justa. Ultrapassamos os clariceanos laços de família e podemos viver esse sentimento pleno e raro: a amizade. Ela vence a distância física, os comuns defasamentos de ritmos entre os seres e se adensa cada vez mais. Por vezes beiramos a quase total coincidência e nos assustamos com esses profundos encontros de alma. E é a graça desta comunhão, por exemplo, que me permite afirmar: Deus existe.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

A catedral verde


Sempre que ando a pé com o meu amor pela nossa rua, contemplo as arcadas verdes das árvores, onde irrequietos passarinhos de várias espécies soltam os seus trinados, como quem celebra a alegria de viver. Alguns ignoram os limites das moradias e, em sinal de familiaridade, inspecionam as plantas das varandas, buscando alimento ou fiapos para tecerem seus ninhos. Às vezes espécies raras de aves pousam nos galhos mais altos da amendoeira em frente ao nosso apartamento e deixam-se admirar serenamente, numa convivência harmoniosa. Até um pequeno sagüi já fez-nos uma visita inesperada.

Na calçada do edifício ao lado, dois pés de acerola florescem. As frutinhas nem chegam a ganhar o seu alaranjado característicao e logo são colhidas pelos passantes.

Mais uns edifícios adiante, e eis-nos já na pracinha, onde as crianças a brincar fazem lembrar o canto alegre dos pássaros.

Não, não é um paraíso utópico. Para deleite dos privilegiados moradores, este oásis existe em plena Copacabana, no Bairro Peixoto.

Todos os dias louvo a beleza desta catedral verde onde há quase trinta anos escolhi viver.

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Havana bela e sórdida


"Quando o fim-de-semana chegou estava cansada das caminhadas e do calor que ainda persistia; e talvez a minha exaustão aprofundasse um desespero crescente – o de caminhar outra vez pelas ruas de uma Havana bela e sórdida, que oferecia todas as variações floridas da decadência, todas as versões da destruição, tal como um paciente com uma doença impressionante ao qual não conseguimos virar as costas."
Por Amor a Che, de Ana Menéndez (Civilização, 2005, tradução (cuidada) deHelena Serrano)

Este é o primeiro (e belo) romance da escritora norte-americana, filha de cubanos exilados. Ana Menéndez trabalhou seis anos como jornalista no Miami Herald e iniciou a actividade literária com o livro de contos In Cuba I Was a German Shepherd. A sua nova obra apresenta-nos uma narradora em busca da sua própria história: criada pelo avô em Miami, nunca conheceu os pais.

Uma intensa forma de amar


Ser avó/avô é uma das formas de amar mais intensas que podemos experimentar. O amor de avó/avô, despojado da preocupação de educar - árdua tarefa que, a princípio, cabe aos pais e que é nitidamente orientada para o futuro -, pode realizar-se numa espécie de presente amplo. Como se o coração enfim rompesse os limites físicos e se unisse à alma, numa experiência à beira do inefável, próxima talvez à da plenitude da experiência mística.

domingo, janeiro 08, 2006

O céu de Cuba



Quando há água por todos os lados e não se tem forças para remar contra a maré, resta olhar para o céu. Do chão até ao fim da atmosfera - este é o atalho imaginário para a liberdade, só a viagem vertical permite esquecer que o mundo ao alcance das mãos é só um atlas de papel.

sábado, janeiro 07, 2006

A Indiferença

V. escreveu-me hoje. Agradecia-me por algumas palavras (eu é que lhe devo um obrigada, eu, que já falhei tantos convites seus para tertúlias literárias). E disse-me que não está tudo de pernas para o ar.

"Está pior: está indiferente. A indiferença está a corroer a cidade. Em termos lineares, claro (e ainda bem que há excepções), os novos que pensavam que sabiam tudo e estão atarantados e amedrontados porque chegaram à conclusão de que sabem muito pouco. Os velhos estão atormentados e etilizados: o uísque corroi-lhes a coragem e serena-lhes a impotência. Com tudo isto, raramente as pessoas páram para saborear os pequenos momentos. Por exemplo, já reparaste que raramente vês um pai (quem diz pai diz mãe) a passear com um filho, na cidade, a um dia da semana? Como pode uma cidade respirar saúde se não não há pais a passear, sorridentes, com os filhos nas suas ruas? E como podem os filhos mais crescidos achar piada a uma cidade do Porto cada vez mais velha e suja?"

quinta-feira, janeiro 05, 2006

De pernas para o ar

Regresso ao Porto e tenho a sensação de que anda tudo de pernas para o ar. Uns desligam o telemóvel ad eternum, outros dizem que desistiram de desistir. Ninguém num estado verdadeiramente deplorável, todos tentando manter a linha, agir em conformidade, mas com um giganstesco aviso de SOS colado às costas. O que se passa? Por que é que os amigos não procuram o regaço dos amigos?