sábado, dezembro 13, 2003

Mulheres de Pedro Martinelli



O fotógrafo brasileiro Pedro Martinelli acaba de lançar no Brasil a obra "Mulheres da Amazónia", que reúne 300 imagens captadas naquela região ao longo dos últimos trinta anos. Para quem não sabe, Martinelli é um dos grandes "homens de sal de prata" do país, tendo sido editor de fotografia da Editora Abril e recebido uma série de prémios. Tem imagens lindas. Quem quiser ver mais coisas dele pode ir até o No Mínimo .

sexta-feira, dezembro 12, 2003

Ainda Eduardo Coutinho

A professora universitária Consuelo Lins está a ultimar um livro ensaístico sobre a obra deste cineasta brasileiro de 70 anos. Chama-se "O Documentário de Eduardo Coutinho - Cinema, vídeo e televisão" e deverá ser publicado no Brasil em 2004 pela Zahar Editores. Num texto divulgado há sete anos, na Revista Cinemais, Consuelo Lins explicava porque Coutinho consegue as melhores confissões do seu entrevistado. É uma mistura de respeito, disponibilidade, ética e dom da palavra.

"Coutinho dá tempo a seus personagens de formularem algumas ideias sobre suas vidas e efectivamente os escuta. Faz poucas perguntas mas obtém respostas que surpreendem entrevistador e entrevistado. Tem-se a nítida impressão de que muitos estão pensando certas coisas pela primeira vez, ali diante da câmera. Como se até então não tivessem tido tempo para tal. Em um certo sentido, há nos filmes de Coutinho uma dimensão analítica: a análise é particularmente o lugar da escuta. E talvez o que mais falte na actual produção incessante de imagens, palavras, sons, informações é justamente uma escuta que possa pontuar e dar algum sentido à fala dos personagens."

Volto a lembrar que o doumentário "Edifício Master" (2002), premiado na Categoria Melhor Documentário no Festival de Gramado, no Sul do Brasil, será exibido hoje, às 22h00, na Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira. É uma oprtunidade única. Não só porque este filme não passará nas salas de cinema, nem nas Blockbusters da vida, mas também porque o autor estará presente nesta cerimónia de homenagem.

Hoje é dia de Eduardo Coutinho



A séptima edição do Festival de Cinema Luso-Brasileiro homenageia hoje, às 22h00, o realizador brasileiro Eduardo Coutinho. Será exibido no auditório da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira o documentário "Edifício Master" (2002), um trabalho muito revelador sobre a classe média carioca. O filme foi feito com dezenas de moradores de um prédio em Copacabana, no Rio de Janeiro. A câmera entra em vários dos apartamentos minúsculos do edifício, dando voz (e rosto) às vivências dos moradores. Há a garota de programa, a mulher que tem medo de olhar nos olhos dos outros, o porteiro que não sabe quem é o pai... São, enfim, relatos de pessoas comuns - Coutinho "odeia" figuras públicas -, discursos em primeira pessoa que fazem deste cineasta de 70 anos um mestre da arte de entrevistar. É o que explica o crítico Carlos Alberto Matos nas citações abaixo, que são fragmentos da introdução do livro "Eduardo Coutinho: o Homem que Caiu na Real", apresentado hoje em Santa Maria da Feira.

"A obra-prima Edifício Master chegou às telas no ano de 2002, num momento em que o documentário despontava como uma das vedetes da retomada do cinema brasileiro (como é chamado o reaquecimento da atividade após quatro anos de congelamento à época do governo Collor). Tão diversificados quanto os filmes de ficção, os documentários então conquistavam público, prestígio, espaços de exibição no cinema e na TV, mecanismos de apoio e patrocínio, repercussão em festivais etc. O discreto Eduardo Coutinho é parte importante desse renascimento e sua obra se oferece como referência de qualidade e compromisso."


Fotograma de "Cabra Marcado para Morrer"

"Eduardo Coutinho tornou-se o mais importante e influente documentarista brasileiro da atualidade não somente por seu modo judicioso de proceder, mas também pelo corpo de obra que erigiu ao longo da carreira. Nela os temas evoluem como galhos de uma árvore construtivista, comunicando-se de filme a filme e passando de secundários a principais. A religiosidade popular foi objeto de sua atenção crescente em "Santa Marta: Duas Semanas no Morro", "O Fio da Memória" e "Santo Forte." A vida na favela esteve presente em "Santa Marta", "Santo Forte" e "Babilônia 2000". As rivalidades familiares no Nordeste brasileiro estiveram em foco no ficcional "Faustão" e no documentário "Exu, uma Tragédia Sertaneja". O poder no campo foi tema de "Cabra Marcado para Morrer" e "Teodorico, o Imperador do Sertão". A subsistência retirada do lixo foi tangenciada em "A Lei e a Vida" antes de passar a assunto central de "Boca de Lixo"."


Fotograma de "O Fio da Memória"

"A Coutinho interessa o Outro, o diferente social e culturalmente. Por isso é difícil imaginar que ele ainda venha a se interessar pela elite da qual, incomodamente, participa. Os condôminos de classe média baixa enfocados em "Edifício Master" parecem constituir o seu limite em matéria de aproximação da vizinhança social."


Fotograma de "Santo Forte"

"Parte integrante desse cinema de pessoa a pessoa é a exposição do processo de documentação dentro do próprio filme. As chegadas da equipe, sempre documentadas por uma câmera de apoio a duplicar o eixo da câmera principal, tornaram-se uma marca desde Cabra Marcado para Morrer. Da mesma forma, a imagem do diretor, face a face com seus interlocutores e quase completamente desligado do aparato técnico ao seu redor, aparece intermitentemente - não para torná-lo catalisador do espetáculo da informação (como ocorre com Michael Moore e Nick Broomfield), mas apenas o suficiente para sublinhar a condição de encontro e o caráter de conversa. A montagem assimila também "ruídos" de diálogo, pagamento de cachês, retalhos de conversas circunstanciais à margem da entrevista etc, elementos habitualmente escamoteados na edição de documentários tradicionais."

quarta-feira, dezembro 10, 2003

Nanook of the North



"Nanook of the north" é considerado o início da história do documentário. O filme mudo de Robert J. Flaherty, elaborado em 1922, apresenta-nos um ano da vida de um esquimó completamente alheio à vida industrial, vivendo essencialmente da caça, da pesca e de algum comércio. No texto "How I Filmed "Nanook of the North", Flaherty conta como foi despertado para a arte que, a exemplo do jornalismo, procura coleccionar fragmentos do real. Ele conta assim a sua jornada antropológica de conhecimento do Outro:

"In August 1910, Sir William MacKenzie whose transcontinental railway, the Canadian Northern, was then in the initial stages of construction, commissioned the writer to undertake an expedition to the East Coast of Hudson Bay to examine deposits of certain islands upon which iron ore were supposed to be located. […]
As a part of my exploration equipment, on these expeditions, a motion-picture outfit was included. It was hoped to secure films of the North and Eskimo life, which might prove to be of enough value to help in some way to defray some of the costs of the explorations.



While wintering in Baffin Land during 1913-14 films of the country and the natives were made as was also done on the succeeding expedition to the Belcher Islands. The film, in all, about 30,000 feet, was brought out safely, at the conclusion of the explorations, to Toronto, where, while editing the material, I had the misfortune of losing it all by fire. Though it seemed to be a tragedy at the time, I am not sure but what it was a bit of fortune that it did burn, for it was amateurish enough."

O fogo que consumiu estes primeiros registos de Flaherty acabou por deixá-lo cada vez mais interessado em filmes. Ele explica assim:
"New forms of travel film were coming out and the Johnson South Sea Island film particularly seemed to me to be an earnest of what might be done in the North. I began to believe that a good film depicting the Eskimo and his fight for existence in the dramatically barren North might be well worth while. To make a long story short, I decided to go north again- this time wholly for the purpose of making films."

O projecto acabou por ter o financiamento dos Revillon Freres (como se pode ver no cartaz original do filme, no topo desta mensagem). No dia 18 de Junho de 1920, o realizador partir novamente para as terras frias. Como equipamento levava 75 mil pés de rolo de filmes (não sei converter esta medida, peço desculpas), um projector, holofotes Haulberg, duas câmaras Akeley e ainda uma impressora que permitia identificar eventuais falhas técnicas durante as filmagens. Nesta expedição, conheceu Nanook, um esquimó adorável. Juntos, enfrentaram obstáculos como a falta de comida e o confronto com os desmandos da natureza - algo que os aproximou profundamente e permitiu a cumplicidade necessária para a realização do documentário. Criou-se o elo necessário para a existência daquele que "rouba" a imagem do outro e, por extensão, daquele que se deixa retratar. No fim do seu relato, Flaherty diz que "it was not all loss: I was richer by a fuller knowledge of the fine qualities of my sterling friends, the Eskimos."

PS. Não me perguntem porque, mas "Nanook of the North" me faz lembrar um outro filme, o "Dersu Uzala" (Kurosawa, 1975). Nunca esqueci a parte em que o protagonista – também ele na pele do Outro – considera imponderável (é o que nos revela o seu olhar) que se possa vender a água, algo tão elementar à vida humana. Ele via água como um direito.

sexta-feira, dezembro 05, 2003

Invasões Bárbaras

Os jornais brasileiros, os meus amigos brasileiros, a minha mãe e até o Eduardo Prado Coelho - na sua coluna de hoje do Publico - já falaram maravilhas do "Invasões Bárbaras. Ainda bem que o filme estreia hoje em Portugal. Já estava me sentindo uma outsider.

domingo, novembro 30, 2003

Keith Arnatt


Keith Arnatt está nos Universos Desfeitos. Mais coisinhas de Keith na sua floresta.

Os cárceres de Goethe



A versão primitiva de "Fausto", de Goethe (1749-1832), encantou o encenador Nuno M Cardoso sobretudo pela "relação que era estabelecida entre amor e morte, personificada pela personagem Gretchen". No texto de apresentação da peça "Gretchen", em cartaz no Teatro Carlos Alberto, lê-se:

"Gretchen torna-se, então, personagem principal, pelo desespero, pela ascese na perda, pelo acolher da morte com alegria. [...] Gretchen é também o reconhecimento da inevitabilidade da morte."

No ensaio de João Barrento - responsável pela tradução do texto -, regressamos à questão da mulher que, de alguma forma, rouba a cena ao Fausto.

"O fragmento abre com uma cena que se situa no universo claustrofóbico do protagonista (mas teremos de nos interrogar desde já sobre o "protagonismo" de Fausto numa montagem que preferiu o título "Gretchen", e que pretende claramente deslocar esse protagonismo para a figura da mulher), e fecha com a condenação e morte de Gretchen num cárcere real. [...]
No entanto, nesta primeira versão ainda sem a estrutura e o escopo épico-simbólicos da versão definitiva do Fausto, a acção decorrerá de certo modo em circuito fechado, de cárcere a cárcere: o primeiro, de Fausto, é o laboratório da cena inicial, cárcere de invenções, mas não de vida, que gera outro, o cárcere do coração fechado e morto; o segundo, de Gretchen, mãe solteira, infanticida condenada e enlouquecida, é aquele para onde a lançam a lei e as normas sociais e morais vigentes."

Temos então, parece-me, duas linhas interessantes nesta montagem de Nuno M Cardoso: a questão da mulher "pobre e seduzida" (e, no entanto, protagonista) e a ideia de um círculo fehado que encarcera o drama. E é sobre esta que recaio quando penso na cenografia de Paulo Capelo Cardoso: há várias paletes de madeira sobre o palco, umas empilhadas com rigor, outras dispersas. Formam volumes de diferentes alturas. E sugerem precisamente um ambiente fechado e ao mesmo tempo contraditório. Um armazém lacrado? Um contentor vazio de mercadorias? Mas esses espaços não são feitos para conter, armazenar? E se estão vazios não traem a sua própria essência? É esse incómodo do cenário que reaparece num outro comentário de João Barrento:

"De desejo se trata, de facto, e de uma dinâmica muito goethiana: a da oscilação dialéctica entre sístole e diástole, abertura e fechamento, liberdade e necessidade."

As paletes empilhadas trazem em si não só a carga simbólica do consumo - comparece aqui a burguesia de que fala Goethe -, mas também a diáléctica asfixiante de Gretchen. Traduzem-se em uma oscilação entre cheio e vazio, em um movimento cíclico. As paletes estão em constante movimento para o transporte de mercadorias ,de um lado para o outro, mas o seu carácter funcional não se altera com a mudança de sítio. E, de resto, obedecem a um ritmo de carga e descarga sem ruptura possível. Como o círculo fechado e inevitável que aprisiona Gretchen. Essas ideias são depositadas no cenário subliminarmente, a par com a óbvia plasticidade da madeira traçada: cruz, grade, cárcere e caixão.

Hoje é o último dia para ver "Gretchen", de Goethe, no Teatro Carlos Alberto, no Porto.

sexta-feira, novembro 28, 2003

A biblioteca ideal

Ivan diz que a sua biblioteca ideal teria apenas sete livros. E explica o porquê:
“Há um indicador infalível que me diz que ando meio-chateado: se compro muitos livros. Tenho as prateleiras cheias de livros que nunca li. Se andasse sempre feliz, suponho que a minha biblioteca teria uns sete volumes. Os outros leria emprestados de amigos, tomados a bibliotecas; e, reciprocamente, ofereceria os livros já lidos a amigos e a bibliotecas. (Isto já eu faço às vezes). Há pessoas que se orgulham de ter colecções pessoais com 12 mil livros. Nunca terei uma biblioteca desse tamanho: se isso estivesse para acontecer ter-me-ia, seguramente, suicidado primeiro.”

terça-feira, novembro 25, 2003

André Kertész (V)


"Ernest", Paris, 1931

"A data faz parte da foto, não por denotar um estilo (isso não me diz respeito), mas porque ela faz erguer a cabeça, faz o cômputo da vida, da morte, a inexorável extinção das gerações: é possível que Ernest, jovem colegial fotografado por Kertèsz em 1931, viva ainda hoje (mas onde? como? Que romance!). Eu sou o ponto de referência de toda a fotografia e é nisso que ela me provoca o espanto, ao pôr-me a questão fundamental: por que razão vivo aqui e agora?"

"A Câmara Clara", Roland Barthes (p. 119, Edições 70)


"One of the portarits in "Enfants" is Ernest who was photographed in his classroom in 1931. This and other photographs in the book give us wonderful glimpses of French childhood in the 1930s. Ernest is pictured wearing his black school smock and very long flannel short trousers. A schoolmate in the background does not appear to be wearing a smpck so it does not appear to have been a school rule. The photograph not only shows us how French school children dressed in the 1930s, but what their school room with the heavy wooden desks looked like."

André Kertész (IV)


"A Balada do violinista", Abony, Hungria, 1921

"Por muito fulgurante que seja, o punctum possui, mais ou menos virtualmente, uma força de expansão. Essa força é muitas vezes metonímica. Kertèsz tem uma fotografia (1921) que representa um cigano cego, a tocar violino, conduzido por um miúdo; ora aquilo que vejo, através desse olho que pensa e que me faz acrescentar qualquer coisa à fotografia, é a calçada de terra batida: a terra dessa calçada dá-me a certeza de estar na Europa Central. Percebo o referente (aqui, a fotografia ultrapassa-se realmente a si própria: não será essa a única prova da sua arte? Anular-se como médium, deixar de ser um signo, passando a ser a própria coisa?), reconheço totalmente os povoados que atravessei quando, há tempos, viajei pela Hungria e pela Roménia."

"A Câmara Clara", de Roland Barthes (p. 71, Edições 70)

André Kertész (III)


"On the quais", Paris, 1926

"Os redactores da [revista] Life recusaram as fotos de Kertész quando ele chegou aos Estados Unidos, em 1937, porque, segundo afirmavam, as suas imagens "falavam demasiado"; elas faziam reflectir, sugeriam um sentido – um sentido diferente da palavra. No fundo, a Fotografia é subversiva não quando assusta, perturba ou até estigmatiza, mas quando é pensativa."

"A Câmara Clara", de Roland Barthes (p. 61, Edições 70)

domingo, novembro 23, 2003

Ainda Dogville



Contributos para a discussão sobre "Dogville":

1) O repórter Luiz Carlos Merten, do jornal brasileiro "O Estado de São Paulo", escreve que von Trier é "um demiurgo, apontador de caminhos". Achei a designação feliz se pensarmos na palavra demiurgo à luz do seu berço grego: criador do universo, magistrado. Demiurgo também é o nome dado pelos filósofos platónicos ao criador do homem. Assim, von Trier figuraria como um criador de universos (e não do universo, é claro). Um homem capaz de construir a partir da sua arte um sistema coerente, um sistema dotado de elementos que se regem segundo uma orgânica própria.
A aldeia gizada no chão do estúdio, ou seja, a aldeia cinematográfica de "Dogville" consegue ser um universo próprio, um espaço que se teletransporta do ecrã para o espectador. Essa construção em nós de uma imagem mental, uma paisagem que retrata um sítio específico, é formidável. Eu sou capaz de sentir o cheiro das maçãs que rolam sobre o camião. Eu sou capaz de sentir o cheiro bafiento da casa do ceguinho, sempre com as cortinas fechadas. Isto é estética da recepção. É conseguir construir um mundo a partir de muito pouco, de exíguos recursos cenográficos. Assim sendo, concordo com Carlos Merten: von Trier faz filmes com mãos de demiurgo.

2) Lutz escreve-me a dizer que "Dogville" "é um grande filme", mas uma obra que faz "uma generalização inaceitável". Na sua casa recém-inaugurada - a "Quase Em Português" -, Lutz explica que "o filme é de um anti-americanismo de fazer sombra ao Bin Laden. Se não fossem os últimos minutos dos créditos, com a sequéncia das fotografias conhecidissimas das vítimas da grande depressão americana dos anos 30, com a banda sonora de "Young Americans" de David Bowie, ainda seria possível entender todo o resto, o setting numa aldeia no interior da América puritana, a referéncia aos classicos filmes de gangster, como um dispositivo do dramaturgo para fazer o seu ponto, ou seja ficava a hipótese que podia ter havido outro setting qualquer. Mas von Trier faz questão de não deixar aqui dúvidas."

3) A MVG mandou uma mensagem com um comentário muito interessante. Tomo a liberdade de reproduzi-lo neste cais:

"Não nos podemos esquecer que von Trier respondeu às acusações dizendo que também ele era americano. Uma pequena coisa em que discordo, porém, é a da identificação do espectador com Kidman ao ponto de a querer vingar. Penso que há ali um grande trabalho de ironia (no sentido romântico de distanciação), dada não só pela voz do narrador, mas também pelo cenário esteticizado e até pelo genérico final com as imagens que remetem para um tipo de fotografia americana dos homens desperdiçados (que as imagens, no entanto, parecem cristalizar com uma nota de compaixão e quase esperança) dos anos 30 e 40, dando a impressão de um arrependimento tardio e, por isso, desacreditado.
Julgo que é o facto de ser impedido ao espectador sofisticado qualquer tipo de identificação (e de catarse libertadora) que torna o filme mais inquietante: constantemente nos perguntamos qual a atitude a tomar face ao que nos é apresentado."

segunda-feira, novembro 17, 2003

De olhos bem fechados



Por vezes tenho a sensação de ver os filmes de olhos bem fechados. Apreciei "Kill Bill", como já aqui escrevi. Depois li que o Carlos Vaz Marques achou o filme "oco", sem substância. Valorizo profundamente o trabalho de CVM e, portanto, se calhar o problema é meu.

Hoje aconteceu o mesmo com "Dogville". Chamaram-me atenção para o texto de Augusto M. Seabra nas páginas do Publico, divulgado no passado dia 10 de Outubro. Bem, a sua coluna "Inclinacões" simplesmente arrasa com von Trier. Diz que o cara não fez rigorasamente nada que prestasse (excepto "Ondas de Paixão"). E acusa esta última obra de ser "um programa ético sobre a miséria humana", uma "teologia de pacotilha", "um antiamericanismo cultural". Enfim, eu não reparei em nada disso quando vi o filme. Mais uma vez, o problema dever ser meu.

No meu modesto ponto de vista, von Trier causa uma estranheza no seu "Dogville" - a aldeia marcada a giz no chão - para depois conduzir o seu espectador à sua própria condição humana. Queremos vingar Nicole Kidman todo o tempo, mas, por outro lado, sabemos perfeitamente que é dessa maldade que somos feitos. "Dogville" fala também de como acolhemos o estranho que chega à nossa aldeia, de como sugamos dele tudo aquilo que podemos e como o tememos ou o dispensamos quando nos convém. Não é assim quando falamos de imigração? Não é isso que criticamos em Bush e na sua politiquinha western "dead-or-alive"?

Vasco Câmara escreveu no Y que "Dogville" é "um tratado filosófico, pessimista, sobre a bestialidade humana, quando os homens estão isolados do mundo e vivem segundo as suas próprias leis, como se fossem deuses de uma moral que inventaram". Ora, mas não é exactamente isso que criticamos na administração Bush? Eu também nunca pus os pés nos EUA e penso isso mesmo sobre este Governo (e não sobre o povo americano, o que seria uma generalização burra).

A crítica antiamericana, contudo, é o que menos me interessa em "Dogville". Despertou mais os meus sentidos aquilo que se prende com a crueldade humana. E com a capacidade criativa do realizador. O que von Trier fez ao gizar uma aldeia nas Montanhas Rochosas, nos anos 30, foi imaginar uma história num lugar. Não é o que todos fazem? Quando falamos de arte cinematográfica não nos reportamos para o pacto da representação? Pois bem, ao saber que von Trier treme só pensar em entrar num avião e que, por isso mesmo, nunca foi à terra do Tio Sam, eu fiquei ainda mais contente!

Isso quer dizer que "Dogville" nasce de uma imagem mental, por vezes contaminada por estereótipos ou pela inexperiência do lugar, é certo, mas obviamente liberta do passo irreversível que é o conhecimento. Pois é sabido que não se pode "des-saber" algo que já se conhece, não se pode anular um acontecimento já transcorrido. Nunca ter estado nos EUA permite um sem número de possibilidades de representação desse mesmo país e, por outro lado, não reduz o criador à angústia de estar a ser influenciado pela parte que conheceu de um todo.

Lars von Trier encerra em "Dogville" uma imagem própria, parcial dos EUA - é a primeira fita de uma trilogia - que, na minha opinião, é tão legítima como tantos outros retratos que já se fizeram sobre os Estados Unidos, tanto no cinema como na literatura.

quarta-feira, novembro 12, 2003

Jorge Marmelo

Eu gostava de ter escrito mais cedo este texto (não gosto muito da palavra post, quer dizer, também não desgosto, mas evito). Esta tarde, na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, o escritor Jorge Marmelo apresentou a sua nova obra: um livro infantil escrito a quatro mãos com Maria Miguel, a sua filha de 10 anos. Também gostava de ter lá ido, mas não pude. Mas, enfim, o que importa é que "A Menina Gigante" (Campo das Letras, com ilustrações lindas de Susana Traina) é um livro belo, que fala de coisas como a adopção, a crueldade embutida nas crianças e a questão da diferença durante a infância.

sexta-feira, novembro 07, 2003

A iconografia da leitura



Na sequência das imagens de Kertèsz, que registavam o acto de leitura como algo muito corporal, encontrei esta ilustração de Jorge Colombo. Interessa-me imenso a inconografia sobre a leitura. Como as pessoas lêem? Como seguram os livros? Começam pelo fim, pelo início ou folheiam antes de mergulhar na leitura? Robert Scholes fala um pouco sobre isso no seu precioso "Protocolo de Leitura" (edições 70), onde faz uma detalhada análise de um quadro de Georges de La Tour. Nesta pintura, Santa Ana aparece ensinando Maria a ler, sob a luz insuficiente de uma vela. Scholes escreve:

"Se acaso se trata de Maria aprendendo a ler, o nosso desejo de plenitude narrativa incita-nos a procurar um nível de especificidade idêntico quanto a outros pormenores do texto. Isso leva-nos a identificar a mestra como sua mãe, Santa Ana, e a tecer conjecturas sobre qual será o livro lido em voz alta com tamanha gravidade. Considerando-a futura mãe de Jesus, distinguimos também nesse curioso gesto da mão direita uma postura conhecida, pois figura em muitas pinturas que representam Cristo ou os santos. O gesto constitui um sinal hierático que acompanha os milagres e as revelações quando é pronunciada a Verdade ou quando esta se revela em acção. Mas é também, claro, um guarda-luz da chama da vela, um reflector cor de carne que talvez saliente o brilho do texto. Este qual é, porém? Que lê Maria?"



O Corvo

Imperdível a tradução de Isa Mara Lando para "O Corvo", de Poe. Ela é brasileira e está hospedada numa casa portuguesa .

O lago de Virginia Woolf



"Antes de ir com Angelica para o roseiral, Virginia demora-se mais um momento, ainda de mãos dadas com Vanessa, observando os filhos da irmã como se eles fossem uma lagoa na qual poderia ou não mergulhar. Isto, pensa, é a verdadeira realização, isto continuará a viver depois de o ouropel das experiências na narrativa ter sido encaixotado e abandonado juntamente com as velhas fotografias, os vestidos de baile de máscaras e os pratos de porcelana nos quais a avó pintava as suas melancólicas paisagens inventadas."

"As Horas", de Michael Cunningham

terça-feira, novembro 04, 2003

Nahuas, México

Eu não sei se estiveste ausente.

Eu deito-me contigo, e levanto-me contigo.

Nos meus sonhos tu estás junto a mim.

Se estremecem os brincos das minhas orelhas

eu sei que és tu que te moves no meu coração.


Este poema da "Rosa do Mundo" é uma prenda cândida de uma amiga.

segunda-feira, novembro 03, 2003

Inspirado por André Kertèsz


Colorado State University
Fort Collins, USA (1988)

O fotógrafo Don Eddy, inspirado por André Kertèsz, criou uma série de imagens também elas dedicadas ao tema da leitura. Algumas delas são muito bonitas. Don Eddy escreveu sobre a experiência com o livro "On Reading" e também sobre o encontro com o próprio Kertèsz. Reproduzo abaixo o texto:

"Regarding the On Reading series

Accidentally one day I stumbled upon a small book of photographs taken by André Kertész. The book encompassed a great many of his photographic years and were images of not only people reading, but birds, statues, and paintings! They were taken, for the most part, on purpose for depicting "reading". Not too long after seeing the little book, I was going over many of my old contact sheets and discovered that I had also captured many people "reading", but quite by chance. So I put together this series of my “On Reading"

I’d met André, a quiet and simplistic photographer, while he was with six other Magnum photographers covering the Xerox stockholders’ meeting near Rochester, NY in an outdoor setting under huge, white tents. At the time I was the staff photographer at the George Eastman House and was asked by Beaumont Newhall if I’d like to give a tour of the House to several Magnum photographers who were in town. André was not on the tour and I did not know the extent of the photographers until they asked if I’d like to assist them while they covered the meeting. Who could have refused!

At the event Inge Bondi asked me to have a hundred copies of model releases made at another tent that Xerox had set up just for the purpose. At the time, 1966, Xerox was heading the high speed copy equipment market. The attendant said he would be happy to and for me to have a seat on a supplied garden bench they’d placed nearby. I watched as he set the copier into action. It began scanning the original I’d given to him and spitting out copies at the rate of maybe 10 per minute!

I took a seat.

There was an elderly gentleman sitting there to my right. He seemed to be resting and perhaps was a stockholder—but he looked familiar. I’d seen him before or at least thought I had. Then it struck me, he might be André Kertész. I turned to him and said in a questioning way, "You’re André Kertész . . ."

He turned, smiled with a twinkle in his eye and responded quietly, "I know that", with a slight emphasis on I."

Saudades do Cazuza



Vi esta foto hoje no Palavras da Tribo e senti uma enorme saudade do Cazuza. Não consegui deixar de pensar que, se a doença tivesse sido diagnosticada hoje, ele poderia recorrer a um coquetel de medicamentos. Teria oportunidade de lutar contra o vírus. Quantas mais canções não teria escrito?