A retrospectiva do artista croata Mangelos já saiu do Museu de Serralves, no Porto, para dar lugar a trabalhos vindos do Moma. Os portuenses tiveram uma oportunidade única de ver uma mostra marcada pela questão da escrita. Há uma aproximação ao palimpsesto quando o artista recobre com tinta negra ou branca, de forma quase compulsiva, superfícies de livros e jornais. Isso porque ele volta a escrever sobre a página pintada, como se quisesse simular uma tábua rasa ou um eterno recomeço.
O comissário da exposição vê nesse acto de rasura e reescrita permanente um desejo de negar a pintura. É certo que há diversas iconografias impressas e assinaladas com um X vermelho, como se Mangelos as quisesse riscar do mapa. Mas acho que persiste na sua obra um desejo de reescrita, ou seja, de inserir no aspecto subjectivo da pintura algo objectivo como a letra impressa. Só que, na minha opinião, ao preconizar a objectividade da palavra escrita - a palavra é sempre a palavra, não pode ter múltiplas formas interpretativas como a arte abstracta -, Mangelos tropeça na palavra enquanto objecto estético. Ou seja, a palavra escrita em forma de caligrafia entre linhas, por exemplo, acaba por ser, no seu conjunto, uma imagem subjectiva.
E é por isso que Branka Stipancic escreve no texto de apresentação: "na tentativa de negar a pintura e de combater o seu lado irracional, Mangelos pintou letras de diversos alfabetos, acabando por as geometrizar e por as transformar em pinturas abstractas, nas quais os caracteres, por vezes, acabavam por ficar irreconhecíveis, chegando, como ele próprio afirmou com algum humor, a uma incoerência."
Acho incrível a imagem do artista que se aproxima do abismo que ele próprio cavou porque, sem dúvida, isso revela a condição da própria arte. Mangelos, um historiador da arte, esforçou-se tanto para fazer uma não-arte que tornou-se um grande artista.
PS. Ainda sobre a questão da escrita em Serralves: tanto a exposição de António Sena como a do fotógrafo norte-americano gravitam à volta da palavra como objecto estético. Viva a palavra!
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