quinta-feira, janeiro 22, 2004

Ítaca feminina

A Inês tinha hoje um livro lindo nas mãos. Chama-se "Poesia" de Daniel Faria (Quasi, 2003) . Resolvi trazer um dos poemas para o cais.

"Ítaca"

O que dói
É não poder apagar a tua ausência
e repetir dia após dia os mesmos gestos

O que dói
é o teu nome que ficou como mendigo
Descoberto em cada esquina dos meus versos

O que dói
é tudo mais aquilo que desteço
Ao tecer para ti novos regressos

Gostei deste poema por vários motivos. Primeiro porque se trata de uma Ítaca feminina. Explico melhor: a terra mítica e pedregosa, nestes versos, não é aquela que Ulisses almeja saudosamente rever, mas sim o espaço onde Penélope resiste sem notícias. O ponto de vista não é daquele que parte, mas sim de quem fica. Então a poesia não está no tom épico de aventuras de mares desbravados, pelo contrário, está na dor da permanência, no compasso de espera, na repetição dos gestos, na angústia da espera. "O que dói".

Há quem diga que Ulisses fez um belíssimo negócio. Viajou loucamente, fez amor com várias mulheres e, vinte anos depois, passou por ser o bonzinho que regressava para o lado da sua amada. Não foi cobrado pelas suas traições. Enquanto isso, a Penélope ficou que nem uma idiota a recusar pretendentes e a destecer uma manta inacabável. Há quem diga.

Claro está que as aventuras também implicaram muito sofrimento e, acima de tudo, quando Ulisses chegou a Ítaca nada escondeu da mulher. Relatou desde a sua vitória aos Cícones, passando por terras férteis como Lotófagos, até aos "variados artifícios de Circe". Falou ainda da "mansão bolorenta de Hades", das vozes das sereias e da ilha de Ogígia, onde encontrou a ninfa Calipso. Ulisses relata que esta fez de tudo para que ele se tornasse seu marido, prometendo até mesmo a imortalidade, mas, como fez questão de frisar, o rei de Ítaca preferiu a finitude de uma vida ao lado de uma Penélope envelhecida. Tudo isto é muito belo e sempre que leio esta passagem fico emocionada. Mas também é verdade que Ulisses saboreia bem a bela Calipso antes de tomar a decisão. Aliás, eu acho que é justamente o facto dele preferir uma "velhice feliz" na sua saudosa Ítaca que redime as suas traições aos olhos do leitor.



"Mulher, já tivemos ambos a nossa cota de sofrimentos:
tu chorando aqui em casa por causa do meu regresso difícil;
e eu porque Zeus e os outros deuses me ataram com desgraças,
longe da terra pátria, embora a ela eu quisesse regressar."

("Odisseia" de Homero, tradução de Frederico Lourenço, Cotovia, 2003, versos 350-354 do canto XXIII)

O que Daniel Faria expõe é a Ítaca dolorosa, muito diferente de outras que já foram cantadas. Manuel Alegre, por exemplo, reitera a ideia de uma Ítaca como um porto seguro - apesar de contemporânea, lusitana e urbana -, para onde se pode sempre regressar após o contacto com o mundo exterior. Uma zona de calmaria onde há sempre alguém à espera, um corpo fiel a zelar pelo trono e pela família. Alguém que cuida de filhos, que ajuda o marido a tirar o casaco.

"Penélope ou o Terceiro Poema do Português Errante"

Todos os dias pergunto por Penélope
todos os dias procuro o seu tapete
às vezes chego cansado ao fim da tarde
com todos os regressos bloqueados
e no meio das filas de trânsito procuro
o caminho perdido para Ítaca.

E quando bato à porta molhado até aos ossos
encharcado de chuva de tédio e de desastres
eis que por vezes surges de entre os filhos e as rotinas
aquela a quem perguntei se queria vir
quando bordava um tapete e eu tinha um barco.
Então eu lembro a casa no exílio
a pequena gravura de Ítaca
o poema de Cavafy
lembro o primeiro filho as fraldas o receio
de lhe pegar no colo e dar-lhe banho.

Passaram tantas luas tantos mares
mas tu abres a porta e estás à espera
ajudas-me a despir o sobretudo
e de repente eu sei que estou de volta
como Ulisses à tão amada Ítaca.

(in "Livro do Português Errante", Publicações D. Quixote, 2001)

Confesso que estou à espera de uma Penélope que não fica à espera. Como Molly Bloom. Uma Penélope em versos que, no auge da sua juventude, desenvolve a sua sexualidade, experimenta guerreiros e súbditos interessantes. Que tece uma manta apenas para aquecer a própria alma. E, quando Ulisses voltar, que coisa linda. Ambos terão histórias para contar um para o outro, em pé de igualdade. E se amarão ainda mais talvez sobre o leito famoso feito de uma oliveira, com a certeza de que terão um tempo de felicidade um ao lado do outro.

Sem comentários: