sexta-feira, setembro 05, 2003

A dor



Acabo de ler no Textos de Contracapa uma crónica do editor Nelson de Matos sobre a Inês Pedrosa. Ele fala do pai da escritora e de como a sua morte impulsionou a escrita de "Fazes-me Falta". Já se escreveu muito sobre a relação entre a dor e o processo criativo, mas o que me fascina nesta matéria é como a escrita surge como maneira de fixar um corpo ausente. Coincidentemente, pouco antes de ler a peça de Nelson de Matos, a minha mãe enviou-me fragmentos do livro que pretende tecer, texto provisoriamente chamado de "Cartas a Meu Pai".

Eu acredito que há coincidências - ao contrário da MRP, o que pode ser um bom sinal - e, quando elas acontecem, costumo ficar mais interessada no tema que lhes deu origem. Sendo assim, percorri a estante em busca de "Dor Sem Nome", um trabalho de Manuela Fleming que me foi enviado, há semanas, pelas Edições Afrontamento. E o que diz a autora? "A dor está intimamente ligada à cultura, à arte, à religião e a todas as outras formas que a espécie humana criou para simbolizar, para transformar as vivências humanas geradoras de sofrimento, de forma a outorgar-lhes sentido, a torná-las mais suportáveis ou mais inteligíveis."

Quando organizamos em palavras a dor que nos alinhava os músculos com fio de pesca, deixando-nos incapazes de caminhar e compreender o curso inelutável das coisas, temos a sensação que reconstruímos em tinta e papel o corpo que se perdeu. Não acredito que o sofrimento tranfere-se para a página em branco, muito pelo contrário, acho que se metamorfoseia, ganha novas formas de expressão. Assim, a arte funciona como meio para, como assinala Manuela Fleming, dar sentido ou coerência à dor.

É por isso que "Fazes-me falta" arrebata aqueles que enfrentaram a morte há pouco. O assombro de perder alguém está ali sob a roupagem de uma tentativa, ao mesmo tempo vã e eficaz, de um diálogo entre mundos separados. "Pensaste em mim enquanto morrias? Dava muito dinheiro por esta resposta - desde que fosse verdade", escreve Inês Pedrosa, construindo uma terceira margem para que cada ausência, já que não pode ser colmatada, perca a sua aspereza num tempo suspenso e num lugar outro. Como no conto de Guimarães Rosa.

(Como explicar a alguém a utilidade da arte?)

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