sábado, março 20, 2004

Raízes do Brasil



Começou hoje a ser exibido nas salas de cinema cariocas um documentário de Nelson Pereira dos Santos ("Vidas Secas") chamado "Raízes do Brasil". Trata-se de uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda, historiador que escreveu o famoso livro homónimo. A obra de Pereira dos Santos está divida em dois capítulos, ou seja, em dois filmes. Mas o Espaço Unibanco oferece o bilhete para a segunda sessão na compra de um ingresso para um dos dois filmes. Nesse caso, assisti hoje de enfiada os dois episódios. E só então entendi a oferta: o capítulo um é delicioso, com comentários da família (incluindo o filho Chico Buarque) e de alguns amigos sobre o Sérgio como pai, marido e profissional; ao passo que o segundo episódio é uma compilação de seus apontamentos para um currículo resumido, montado de forma preguiçosa e soporífera.



Vale a pena, isso sim, ver quem viveu com o autor de "Visão do Paraíso" a contar os aspectos mais humanos e curiosos de Sérgio Buarque de Holanda. É delicioso saber que ele lia desbragadamente, ao ponto de ter de fazer conluios com a empregada da família para conseguir manter o vício. Isso porque os sete filhos exigiam uma renda mensal significativa, restando muito pouco para a aquisição de volumes vindos da Inglarterra ou Alemanha. Assim, o professor comprava as obras e entregava à empregada pela janela, antes mesmo de entrar em casa. Depois, tocava a campainha e entrava com as mãos livres de embrulhos. Isso deixava a sua mulher, a sempre zelosa e companheira Maria Amélia, tranquila no que toca ao orçamento doméstico.

O capítulo um conta ainda detalhes preciosos, como o facto do professor ter a superstição de nunca deixar 13 cigarros dentro do maço de tabaco, a mania de não gostar de ver crianças rondando o seu escritório caótico, o gosto de brincar de chapeuzinho vermelho com os netos (deixando o papel mais viril, o do lobo, para as crianças) etc.

O primeiro episódio de "Raízes do Brasil" mostra-nos, numa edição limpa e de bom gosto, o retrato de um homem que soube amar as palavras e o conhecimento sem perder a candura com os amigos e a família. O segundo, no entanto, não passa de um inventário de feitos literários e académicos justaposto com imagens históricas de sucessivos presidentes brasileiros, sem uma contextualização histórica que permitisse às novas gerações compreender a evolução política do país (exactamente o contrário do que Sérgio preconizava), sem o cuidado de encontrar uma liguagem de documentário mais criativa e inovadora. Nada disso. Apenas a repetição, a declaração compassada e a alternância de vozes previsível. A leitura monótona dos textos do autor. Sem produção de significado através da montagem. Sem extrair a beleza da palavra lida. Como se fosse um programa de rádio. Nem parece Nelson Pereira dos Santos.

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