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Há um pintor russo, cujos pais foram deportados e eliminados durante a Segunda Guerra Mundial, que foge para Manchester porque julga que ali esquecerá o passado.
Mas a nossa pré-história é um sobretudo muito comprido, nós fechamos a porta num estrondo e o tecido não deixa o trinco bater. Então nós puxamos a roupa de forma febril, puxamos tudo para conseguir enfim cerrar, selar e trancar a sete chaves essa porta que deixa o turbilhão da lembrança se abater sobre nós. Suspiramos de alívio. Mas quando olhamos à volta, vemos que arrastamos com a cauda do sobretudo os nossos fantasmas e esqueletos mais terríveis. Entramos em desespero e tentamos despir esse casaco inglório, arrancar a peça que nos aquece e congela a alma ao mesmo tempo, mas tudo é vão porque o sobretudo está costurado à pele com uma linha de aço.
O velho pintor só percebe isso muitos anos depois, quando vislumbra em Manchester tudo aquilo que deixou para trás: as cartas dos pais que nunca mais chegaram, a humilhação recorrente, o diário da mãe que só teve força para ler apenas duas vezes. Esta é uma das quatro histórias pungentes que Sebald conta em "Os Emigrantes", um livro recheado de fotos e recortes, elementos que em vez de limitarem a capacidade imaginativa do leitor instigam-na ainda mais. Vale a pena a leitura.
Para quem quiser saber mais sobre este autor alemão, há aqui um artigo interessante de Michael Thorpe sobre como Sebald confronta com os seus textos a amnésia colectiva. Algo que nos faz pensar sobre os recentes atentados de Madrid e Nova Iorque.
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