segunda-feira, dezembro 31, 2007

Coisas de pais e filhos 3

Enquanto faz a sua costumeira caminhada à beira-mar, a mãe observa os grupos de pessoas a festejarem a alegria do convívio. O calçadão da Avenida Atlântica é pura festa em épocas tradicionalmente de grande euforia, como as da passagens de Ano. Sente-se a vibração no ar, como que em uníssono.

"Devem ser familiares..., alguns decerto vieram de longe..." - pensa a mãe. "Como seria bom se em Festas especiais, como aniversários, Natal e Ano Novo, pais e filhos sempre pudessem comemorar juntos..."

Apetece-lhe imaginar que, num futuro não muito distante, com a força do pensamento, num simples fechar de olhos, poderíamos nos transportar quase instantaneamente através do espaço.

Aperta os olhos e vê-se, como que por sonho ou magia, a adentrar subitamente na festa onde estão reunidos, em outro continente, quatro seres muito amados.

Sente muita saudades deles. Gostaria tanto de lá estar! Suspira... mas depois percebe que, mesmo sem tele-transporte, de certo modo, lá está. Sim, está com eles, através do afeto que os une, um laço muito forte, cada vez mais intenso.

Então, ultrapassando a diferença de fuso horário, ergue uma taça imaginária em seu coração, celebrando aqui, com eles, a festa de lá.

Depois estende o brinde a todo o universo, pensando o quanto é magnífico haver este dia especial, em que a população do mundo celebra a renovação das esperanças. Consegue visualizar a força da gigantesca onda de energia a unir a todos, como uma imensa "ola" humana a rodar por todo o planeta, do Oriente ao Ocidente, do Norte ao Sul , progagando-se à medida que mudam os fusos horários.

É esta a imagem-pensamento que gostaria de oferecer, junto com o brinde, àqueles que mais ama.

domingo, dezembro 23, 2007

A avó, a neta e o espírito de Natal

A avó, sempre que dezembro chegava, esforçava-se ao máximo para deixar-se contagiar pelo espírito de Natal. No entanto, nessa época vinha-lhe uma certa tristeza, talvez nostalgia, não dos antigos Natais vividos e inesquecíveis, mas do que poderia ter sido e não foi. Havia sempre uma defasagem entre a expectativa, o Natal sonhado, e o efetivamente realizado. Ficava um certo travo, um sabor um tanto amargo. Incomodavam-na profundamente a febre consumista, a agitação daquele mundo de gente-que-deixa-tudo-pra-última hora; a hiper-presença de Papai Noel como garoto propaganda de shoppings e lojas (e, em contrapartida, o quase total esquecimento do aniversariante - Jesus); as interesseiras "caixinhas", por vezes acompanhadas de falsas gentilezas pré-natalinas, em geral inexistentes durante o ano; o aumento inexplicável de muitos produtos, sob o pretexto de - como não aceitava e entendia isso? - "é Natal "! ; etc.

Além disso, ou sobretudo, Natal lembrava-lhe a família distante - os filhos, a querida netinha... Difícil Dezembro. E este havia sido, justamente, o mês da perda de um dos familiares mais amados... Tudo isso conflitava com uma certa obrigatoriedade de ter-que-ser-feliz nessa data... Por isso, o Natal doía-lhe demais...

Neste ano, como nos outros anos, decidiu não tentar remar contra a maré. Mais uma vez enfeitou a árvore, armou o presépio, enviou prendas e mensagens aos seres amados, respondeu aos cartões recebidos... Desta vez, porém, mesmo sozinha, e sem temer a chuva, foi assistir à Parada Iluminada na Avenida Atlântica, na noite de 22 de dezembro.

Choveu bastante. Mas na hora do desfile, chovia levemente. Havia muitas famílias com crianças ao longo da avenida, à espera do cortejo. A garotada vibrava a cada ala que passava, em pura empolgação. E os adultos, contagiados, aplaudiam e tiravam fotos.

A avó desejou muito que a pequena neta também estivesse ali, assistindo àquela festa de luzes e cores. Imaginou-lhe os olhos extasiados, os gritinhos de alegria. Sentiu-a no colo, os braços a envolver-lhe o pescoço, a cabeça esticada para ver melhor... E mentalmente, baixinho, como quem sopra ao ouvido de alguém, foi comentando com ela as fantasias, as alegorias, as músicas, os atores...

De repente, quase sem perceber como, notou que não estava mais só. Afinal, o espírito de Natal batera à sua porta, fora de casa, no meio da multidão. Voltou para casa sorrindo. Ganhara um (in)esperado presente, uma bela imagem do Natal, no presente. Um dia, num Natal futuro, poderia contar à menina o encontro que tiveram. E dizer-lhe o que veio dizendo a si mesma, enquanto andava: valeu a pena ter aberto a porta e dar uma chance à alegria...

quarta-feira, dezembro 19, 2007

Coisas de neta e amiga

Hoje vi um grande amigo sofrer - e dói muito ver quem a gente gosta sofrer. Talvez porque precisamente hoje faz cinco anos que partiste, senti uma enorme vontade de dizer-lhe: "Eu sei a revolta que estás a sentir." Eu não cheguei a dizer isso, não cheguei a dizer nada. Apenas estivemos abraçados muito tempo.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

Coisas de pais e filhos 2

A cada ano que passa, a filha vai percebendo, emocionada, pequenas declarações de amor que o pai lhe enviara, quase sempre de forma enviezada, através de conversas com outras pessoas.

A educação austera e o temperamento contido, um tanto tímido em matéria de exteriorização de afetos, impediam-no de manifestar claramente o seu amor. Fazia-o, porém, através de gestos de acolhimento e generosidade.

A filha gostaria de poder dizer-lhe que enfim recebeu, uma a uma, as mensagens que ele, obliquamente, lhe enviou. Colhe-as, como quem colhe um buquê de flores da memória.

Sobrevivente, resta-lhe, agora e sempre, honrar o pai, não por mandamento imposto, mas por muito orgulho de ter tido o privilégio de tê-lo como ascendente. Decerto o mais querido, inesquecível.

Então, apesar da imensa saudade, debaixo da cortina de lágrimas, a filha sorri, consolada por ter tido aquele pai; por ele ter sido a pessoa que foi - um homem justo, honesto, imensamente amoroso (apesar de desajeitado); pela alegria da própria maternidade, que lhe permitiu prolongar-lhe a descendência, e ter a graça de ser, como ele, um elo na cadeia familiar.

E, comovida, agradece ao pai , enviando-lhe estas palavras em lugar dos beijos e abraços que não puderem ser dados a tempo. Quem sabe possam encontrar a desejada sincronia... quem sabe possam ultrapassar a difícil comunicabilidade entre gerações e transformar a defasagem de ritmos em simultâneas palavras de amor.

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Luc de Smet na China

O repórter belga Luc de Smet esteve na China e enviou-nos estas imagens.





Coisas de criança 9

A menininha estava aprendendo a controlar o xixi e o cocô, por isso começou a sair do infantário (creche) sem a fralda, só de cuecas (calcinha).

Assim, quando enfim chegou a vez de o papai pegá-la na escolinha, a menina chegou em casa já muito apertada, como previra a avó. A viagem até a casa demorou algum tempo: havia muito trânsito... Sem falar na hipótese de a menina já estar com um pouco de vontade de fazer xixi (fazer pipi) enquanto esperava... Por isso, assim que chegaram, a avó correu com ela até ao bacio (urinol, peniquinho), em forma de pato amarelo (a menininha adorou quando o pai o trouxe! Parecia um brinquedo de montar, como o seu cavalinho de madeira!). Ufa, foi por pouco... umas gotinhas já teimavam em sair, começando a humedecer (umedecer) a calcinha...

A menininha fez um xixizão que não acabava mais... encheu quase meio pote! Levantou-se feliz para olhá-lo e em seguida, toda senhora de si , recebeu os parabéns de todos. Mas logo voltou a sentar-se.

- Ué - pensaram todos -, será que ainda não acabou? Impossível haver mais, em alguém tão pequenino!...

De súbito, animadíssima, a menina levantou-se e exclamou, como quem merece - e solicita -ainda mais efusivos parabéns diante de sua obra completa:

- Olha o meu cocô, o meu cocô!

sexta-feira, novembro 23, 2007

Coisas de criança 8

A cada vez que vem passar uns dias com o pai, a menininha manifesta grande alegria ao reencontrar as suas coisinhas. Lá estão sempre à espera dela, cuidadosamente arrumados, os seus brinquedos, roupinhas, livros de histórias...

Mal chega, com um visível prazer, a menininha lança-se à redescoberta, correndo pelos aposentos. Avidamente, vai pegando e largando os brinquedos e outros trecos, como quem quer provar de tudo ao mesmo tempo. Logo logo a casa toda tem marcas da sua passagem. À noite, tudo volta ao lugar, para de manhã novamente ser posto em movimento...

De vez em quando, a pequenina lembra-se de pegar "as suas histórias". Traz todos os livros num braçado, derrama-os no chão, e distrai-se sentada a passar as páginas, de preferência bem perto dos adultos.

Um dia, a menininha encontrou na estante da sala uma caixa com álbuns de fotografias do pai. Um a um, começou a desfolhá-los, enquanto a família ia explicando quem estava nos retratos:

- Este é o seu papai quando era menino, com uniforme do colégio... Agora, é o vovô e a vovó na casa deles.... Aqui é a madrinha olhando emocionada para você, no dia em que você nasceu... Esta era a casa do papai quando vivia longe daqui...

Dali a pouco, a menininha volta a se interessar pelos brinquedos momentaneamente esquecidos. Novo intervalo, e novamente chega a vez da retomada dos livros. Desta vez, porém, a menininha incorporou à costumeira pilha alguns álbuns de retratos e começou a desfolhá-los. De repente, quem sabe devido ao formato dos álbuns ou graças talvez àquela sabedoria própria das crianças, foi dizendo, com jeito de quem sabe bem o que diz:

- Minhas histórias!

(Apetece dizer-lhe:

- Sim, pequenina! Estas "folhas" contam um pouco da história dos que te amam. Contam sobre a tua pré-história, quando ainda eras um sonho azulado... Contam também a tua história, desde o dia mágico em que abriste os olhos para o mundo e fizeste derramar lágrimas de alegria ... Sim, meu amor, estás certa, são mesmo as tuas histórias!)

quinta-feira, novembro 15, 2007

Coisas de pais e filhos 1

A filha desenvolveu maneiras muito especiais de lidar com a longa distância (geográfica) da mãe.

Uma delas foi criar este blog para juntas, em colaboração, enviarem e receberem "Notícias do cais". Ambas vão escrevendo, assim, uma espécie de "Diário de bordo", um diálogo tecido na presença-ausência, com notas de leituras, sentimentos, pensamentos...

A outra consiste em dar à mãe a sua pulseira de ouro branco a cada vez que se despedem "no cais", e dela recebê-la de volta, a cada vez que se reencontram. Ao dar início a esse rito de afeto, a filha disse:

- Leva contigo, mãe. Quando regressares, quero-a outra vez, carregada com a tua energia.

terça-feira, novembro 13, 2007

Coisas de criança 7

A menininha adora comer. Todos já sabem que não é preciso insistir com ela. Aprecia - e pede - comidas que já conhece, mas também gosta de experimentar novos sabores.

Independente, quer comer com a própria mão, de preferência sentada à mesa com os adultos. Observadora e esperta como ela só, aproveita a oportunidade para ampliar a variedade do seu cardápio, provando de tudo. E já está manifestando desejo de usar outro tipo de talher, como os demais: o garfo e a faca.

Quando está satisfeita, em geral costuma empurrar ligeiramente o seu pratinho para o lado, ou entregá-lo a algum adulto, dizendo:
- Já está.
Se por acaso sobra algum restinho (sobretudo de iogurte) e ela quer comer tudo até o fim, vira-se para o pai e pede:
- Rapa, papai.
Ou:
- Rapa vovó (ou vovô, ou madrinha...dependendo de quem estiver mais próximo).

Um dia, a menininha acordou meio diferente. Não deu a mínima quando lhe ofereceram a sua fruta irrecusável: banana. A papa da manhã teve que ser "rapada" desde o início... tudo muito estranho....Não queria nem brincar. Só queria ficar recostada no colinho do pai, quietinha, quitinha.

Pouco depois, a família encontrou a explicação para a repentina quietude e perda de apetite . Não, não era miminho: o termômetro acusava quase quarenta graus! Só mesmo estando muito doente a menininha deixaria de gostar de brincar... e de comer.

quinta-feira, novembro 08, 2007

Coisas de criança 6

Sabendo que em breve ficaria muitos meses sem ver a menininha, a avó decidiu escrever uma das canções que começou a ensinar a ela: a canção do coelhinho, trazida do seu tempo de educadora infantil. Tirou uma folha da agenda e, diante da menininha, foi cantando pausadamente, à medida que escrevia os versos :

- De olhos vermelhos/ de pêlo branquinho/ de pulo bem leve/ eu sou coelhinho...

A menina acompanhou atenta o canto-escrita da avó. No final, a avó desenhou um coelhinho, deu um beijo com marca de batom na folha e disse para a menina:

- Olha, bebê, vou dar este papel para a sua madrinha, assim ela canta com você, quando a vovó for embora.

A meninha pareceu gostar da idéia, sobretudo do carimbo colorido. Pegava a folha e dizia:

- Mais, vovó!

A avó repetiu o beijo...

- Mais, vovó!

Ela repetiu muitas vezes, até o carimbo ficar clarinho, clarinho, quase sem cor...

De tarde, já quase no final do encontro, foram passear no parque. De repente, a menina viu um grafite num banco e disse:

- Coelho.

Naquele momento, ninguém compreendeu bem o que a menina quis dizer. Só muito depois, a avó conseguiu encontrar, emocionada, uma possível explicação: talvez a menina tenha associado aquelas garatujas rabiscadas pelo anônimo grafiteiro com as letras que a avó escrevera enquanto cantava a canção do coelhinho...

O beijo ficara para sempre marcado!

terça-feira, novembro 06, 2007

Coisas de criança 5

Banana é com certeza a fruta de que a menininha mais gosta. Quando alguém lhe oferece a fruta, seus olhos se acendem, antes mesmo da boca soltar um entusiasmado SIM!

Nas primeiras férias que passou no campo, ela logo descobriu que coelhinhos comem folhagem e que também apreciam frutas, ou mais propriamente, as cascas (talvez gostem também das frutas... mas as pessoas só lhes oferecem as cascas...).

Assim que acabava de comer peras e, sobretudo, bananas , acostumou-se a entregar a casca a avó:

- Toma, vovó. É pro coelho!

A menina retornou à cidade. Meses se passaram. Ela jamais se esqueceu, no entanto, do que aprendera nas férias. Também a avó jamais se esqueceu de levar para a menina a fruta de que ela mais gostava. Assim, quando as duas se reencontravam, a avó, com um sorriso cúmplice, sempre lhe oferecia a fruta preferida. Sentada na cadeirinha do carro, a caminho de casa, a menina entretinha-se com o lanche saudável. Ao acabar, ignorando distâncias e impossibilidades, fazia questão de devolver a casca e o sorriso cúmplice à avó, entoando, com um jeitinho musical, a conhecida expressão:

- Toma, vovó. É pro coelho!

Sem saber bem como fazer chegar a casca até o coelhinho, a avó punha-se a conjecturar a possibilidade de, no convívio com outras pessoas, a menininha também lhes entregar cascas para que alimentassem os coelhinhos. E riu-se, imaginando-lhes a cara de espanto.

domingo, novembro 04, 2007

Coisas de criança 4

Foram as primeiras férias da menininha no campo. Nunca tinha convivido com coelhos, galinhas e cabritinhos de verdade. Só conhecia esses bichinhos dos livros.

A princípio, o medo era maior que o fascínio. Estacava diante do galinheiro, agarrada às pernas dos avós. Mas não desistia, e ficava a contemplar galos e galinhas durante muito tempo.

Logo depois, já puxava pela mão quem se dispusesse a ir com ela até lá. A menininha não se cansava nunca.Todos sabiam que isto significava aceitar brincar de estátua. A imobilidade só era interrompida pelos gritinhos extasiados que a menininha soltava, quando ouvia Co-co-ri-cós.

Mais algumas idas (poucas) e já dispensava a mão protetora. Segura de si, ela mesma queria dar folhas de couve às galinhas. Foi preciso encontrar uma maneira de, sem refrear-lhe a crescente autoconfiança, explicar-lhe os cuidados a observar para não levar bicadas -possibilidade que, naturalmente, a menininha ainda desconhecia.

Ao contrário das previsões dos adultos, de início não ligou muito para os coelhos. Parecia até aquela personagem da Clarice Lispector, apaixonada por galinhas. Então a avó resolveu tirar um coelhinho da toca para que ela o apreciasse de perto. Segurou-o delicadamente pelas orelhas, colocou-o no chão e deixou-a conviver com aquele bichinho de pêlo fofo e focinho trêmulo.

A menina gostou da experiência. Fez questão de ela mesma dar ao coelhinho folhas de couve. Segurava o caule firmemente, enquanto o animalzinho ia roendo, roendo... Ainda sem muita intimidade com ele, depressa encontrou um jeito de acariciá-lo: sem soltar a mão da avó, debruçava-se para vê-lo melhor e, com a outra mãozinha, conduzia a mão da avó até o interior da toca, fazendo gestos para que a avó o afagasse. Tocava-o, assim, através do corpo e do afeto de alguém em quem confiava.

A partir de então, a menininha passou a dividir o tempo da contemplação entre os seus dois novos amores.

sábado, novembro 03, 2007

Coisas de criança 3

Aquele dia foi um dia especial, repleto de mil e uma brincadeiras, com intenso convívio familiar, sobretudo na na sala e na cozinha. Cansados, felizes e sonolentos, os avós encaminharam-se para o quarto e começaram a dar boa-noite a todos, um por um, entatizando com estrelinhas nos olhos o BOA-NOITE dado à pequena netinha.

Atenta a tudo, a menininha respondeu:
- Boa-noite, vovô!
- Boa-noite, vovó!

De repente, virou-se de costas, deu uns passinhos em direção ao hall, e também com estrelinhas nos olhos, exclamou para um dos aposentos:

- Boa-noite, cozinha!

(Querida criança, apetece-me dizer-te este pensamento:
-Sim: aos teus olhos, as coisas também tem anima, claro. E quando há amor, os deuses lares mantém acesa a chama das lareiras-fogões, onde se preparam os alimentos que reconfortam o corpo e o espírito. Amanhã nos reuniremos outra vez no calor da cozinha, mesmo que não estejamos fisicamente juntos, pois o fulgor está contigo e conosco, aqui e aí.)

segunda-feira, outubro 29, 2007

O segredo da nobreza

Disseste-me, com rara sabedoria , através de uma leitura em que pensaste em mim, que deveria cultivar mais as emoções positivas, procurando alterar a perspectiva e o modo de construção do relato das experiências de vida.

Tens razão.

Significativamente, aqui deste lado do cais, quem sabe ao mesmo tempo que tu, eu também lia algo que me fazia pensar em ti, e tive também a idéia de te dar a ler essa leitura-pensamento.

A matéria versava sobre a difusão do "segredo" pelo mundo, apontando alguns possíveis praticantes, como Madre Teresa de Calcutá, que jamais apoiaria uma campanha antibélica, mas sim uma a favor da paz.

Então eu digo sim, para a tua sageza, para a nobreza do teu coração. Tentarei mudar de lentes.

Coisas de criança 2

Extasiada, vendo um avião sobrevoar o céu e desaparecer no horizonte, a menininha volta-se para a avó e comenta:
- Oh, o avião foi embora ...
Em seguida, virando significativamente as duas mãozinhas para fora, explica:
- Ele foi nanar, vovó!

domingo, outubro 28, 2007

Por um mundo melhor

Perguntaste-me, de súbito, na noite do emocionado reencontro entre avós e neta, separados geograficamente há quase um ano:
- Qual a a sensação de ser avó?
E respondi-te, igualmente de súbito, com palavras que nasceram-me do coração:
- É acreditar que o mundo pode ser melhor.

domingo, setembro 23, 2007

Coisas de criança 1

A menininha senta-se alegre para comer e a vovó lhe diz:
- Queres comer ovo? É de galinha!
- Não é - responde depressa a menininha.
- É sim - insiste a vovó. É ovo de galinha, meu amor.
- Não é da galinha, vovó - explica a menininha. - É da "nina"*.

* Tradução: o ovo é meu, é da menina.

quinta-feira, setembro 13, 2007

Novos Horizontes


O cais é o porto de espera. Ontem estive na estação do lago, hoje vi estátuas no mar. Há qualquer traço que nos liga à terra; há qualquer movimento na água que nos traz a memória. O tempo passa, e as estátuas permanecem e o olhar distante que termina no horizonte não obtém resposta. A espera é infinita, o retorno dos que escolheram o mar fica na fala das gentes, atravessa os continentes e renasce no outro lado. São novos horizontes que irrompem onde o cais acaba e o sonho começa.

quinta-feira, julho 19, 2007

Os mortos, o silêncio

Dizem que a colossal vaia ao Presidente da República do Brasil, na abertura dos Jogos do Pan, foi "orquestrada pela oposição". Mas ninguém poderá dizer que foi orquestrado o silêncio das pessoas que passavam pela habitualmente ruidosa Avenida Washington Luís, local do acidente com o airbus da Tam, assim como o silêncio da equipe de resgate, dos moradores das imediações e da população em geral. Silêncio de consternação e respeito pelas vidas interrompidas (quase duas centenas) desta "tragédia anunciada", conforme ecoam as manchetes dos jornais. Silêncio de solidariedade pela dor dos parentes e amigos. Silêncio de indignação diante das conseqüências do descaso geral. Silêncio compungido mas também acusador, diante do covarde silêncio das autoridades em reconhecer a sua parcela de responsabilidade e conveniente tagarelice em lançar para outras instâncias o ônus da irresponsabilidade e desgoverno que imperam no país.

Comove-me pensar que todos os passageiros, quando o avião pousou, respiraram aliviados (sobretudo os com medo de viagens aéreas), imaginando ter chegado ao destino, e já decerto sonhando com abraços e rencontros, jamais cogitando que morreriam instantes depois. Comove-me a inimaginável angústia do piloto naquele momento, percebendo e tentando desesperadamente evitar a tragédia. Comove-me pensar que funcionários da Tam Express e do posto de gasolina, atentos ao seu trabalho, foram subitamente envolvidos pelas chamas. Comove-me ver imagens, como a do bombeiro, recolhendo dos escombros pertences e malas chamuscados, que certamente traziam lembranças de viagem e prendas para os que ficaram. Comove-me ver os rostos dos mortos desconhecidos estampados nas páginas dos jornais. Comovem-me histórias de famílias destroçadas, de sonhos abortados, como a da aeromoça grávida de quatro meses, a das duas crianças que viajavam desacompanhadas, a do rapaz que deixou órfão um filhinho de três meses, a de outro que deixou dois filhos pequenos, a do funcionário da Tam Express que, desesperado, lançou-se do prédio em chamas...

Respeitosamente, envio o meu pensamento, em forma de silenciosa prece, para os familiares e amigos das vítimas, para os incansáveis bombeiros e demais profissionais que ajudam nos trabalhos.

Indignadamente, envio o meu protesto diante deste evitável acidente causado pela incompetência das "autoridades competentes". Se quiserem, podem chamar de vaia - uma ruidosa vaia, certamente não orquestrada, mas justificada, merecida.

quarta-feira, julho 18, 2007

Para onde foram as coisas que desapareceram no Porto?

Gente, desculpa, mas não é todo o dia que as nossas amigas maravilhosas aparecem aqui. Fica então indicado o atalho para conhecer um pouquinho do trabalho que a bailarina Vera Santos tem desenvolvido em Lisboa. E por que é que esta artista nascida e "residente" no Porto (e loucamente apaixonada pelo Porto) passa mais tempo em Lisboa do que no Porto? Boa pergunta.

sexta-feira, julho 13, 2007

Garton Ash no Rio de Janeiro

O britânico Timothy Garton Ash está no Brasil, mas precisamente no Rio de Janeiro. Já foi à Cidade de Deus, conversou com a antropóloga Alba Zaluar, com o músico MC qualquer coisa (desculpem, tenho péssima memória) e descobriu só agora as várias e criativas formas que os brasileiros têm de definir a sua própria cor (geralmente por ocasião do censos): café com leite, torradinho e marrom bombom são apenas alguns exemplos.
Na sua crónica habitual no The Guardian, publicada ontem, diz o seguinte:
It is precisely this mixing that has helped tomake Brazilians among the most handsome human beings on earth. What is foreshadowed here - but I repeat, only if Basil can correct its dreadful social and economic imbalances, including a heritage of discrimination - is the possibility of a world in which skin colour is nothing more than a physical attribute, like the colour of your eyes or the shape of your nose, to be admired, calmly noted, or joked about. And a world in which the only race that matters is human race.

segunda-feira, julho 09, 2007

Uma varanda para o futuro

Deda, Melgaço, 2006

“A vida, minha filha, pode ser
de metáfora outra: uma língua de fogo;
uma camisa branca da cor do pesadelo.
Mas também este bolbo que me deste,
e que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos.”

(Excerto de “Um pouco só de Goya: Carta a minha filha:”, in Imagias, de Ana Luísa Amaral, 2001)

sexta-feira, junho 29, 2007

O fim do "No Mínimo"

Gente, o site brasileiro No Mínimo despede-se hoje. Não por falta de leitores, não por falta de qualidade. Por falta de dinheiro mesmo. Onde é que eu já ouvi esta história?
Aqui fica o epitáfio:

"Editores, blogueiros, colunistas, funcionários, colaboradores assíduos ou ocasionais, enfim, todos os nomes abaixo relacionados que ajudaram a criar o site de jornalistas mais querido do Brasil comunicam sua morte súbita neste 29 de junho de 2007, vítima de inanição financeira decorrente do desinteresse quase geral de patrocinadores e anunciantes em sua sobrevida na web. NoMínimo deixa órfãos cerca de 150 mil assinantes entre os mais de 3 milhões de visitantes que, em média, se habituaram a passar por aqui todo mês nos últimos 5 anos. Seus realizadores também sentem muito o triste fim desse espaço livre, democrático e criativo de trabalho, mas se despedem com a sensação de dever cumprido com o jornalismo e a camaradagem que nos une. Foi bom, foi muito bom enquanto durou. Quantos no país têm a oportunidade de tocar seus próprios projetos com prazer, independência e alegria? Aos leitores, nossas desculpas pela falta de talento empreendedor, o que talvez pudesse transformar o site num bom negócio financeiro. Fica para a próxima. Até breve."

segunda-feira, junho 25, 2007

Partidas e Chegadas

O Notícias do Cais completa hoje quatro anos de vida. Já não são duas mãos solitárias como no início, agora há duas outras que escrevem a partir do Rio de Janeiro. Houve uma ponte entretanto, sinal de que parte do desejo se cumpriu.

quinta-feira, junho 21, 2007

A importância de ter a própria verdade

"Pela qualidade e grau de beleza da obra que construímos se saberá se sim ou se não vivemos com verdade e dignidade. É necessário que aqueles que vão construir amem o espaço, a luz, o próximo."

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, junho 13, 2007

Na data natalícia do poeta Fernando (Antonio Nogueira) Pessoa

Aos meus três Antonios
(no dia do poeta e do santo de seu nome)


"Tanto que me lembro, vivi sempre com ele.
Sempre fui entendendo que se tratava de uma intimidade exposta aos olhares dos outros. E, agora, também exposta ao seu olhar. Fui percebendo que existias comigo, e além de mim. Chamei-lhe ser. Ao teu movimento, dei nome. Como o sentia íntimo e distante, fiz saber que não era um instrumento, mas órgão. Que não servias, mas expressavas. O que dissesse, fazia. Nem que demorasses.
Até modelar o corpo humano.
(...)
Fui dizendo que valia a pena.
Fui-lhes dizendo que te via, ser. Que se habituara a mentir, impostor que eras por manha, excepto com a rapariga que temia essa impostura da língua.
Disse-lhes que podias ser, que havia a possibilidade de que fôssemos a outra coisa, a restante vida, uma variedade de causa amante,
que havia caminho entre a sebe e o ser."

LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 2. O ensaio de Música. Lisboa: Rolim, 1994, p. 20.

Mais imagens de Luc de Smet




terça-feira, junho 12, 2007

Sobreimpressões de retratos & sorrisos

Luc de Smet

Um sorriso aberto alarga-se por todo o teu rosto, ilumina-te os olhos, irradia-se como uma aura que transcende o tempo. No registro deste instante fulgurante do teu ser reencontro potencialmente aberto o futuro.

Desloco o olhar para outro retrato em que uma criança sorri. Reencontro-te na semelhança do sorriso. Na luz que emana deste sorriso reencontro também Clara Serena, a filha do pintor Rubens, "figura de companhia" no estudo sobre a obra de Maria Gabriela Llansol.

Sorrio diante da potência destas imagens sobreimpressas. Talvez essas figuras não estejam no passado nem no presente. Talvez venham do futuro e já estejam entre nós, batendo à porta dos afetos, à espera de serem acolhidas. Nelas leio /ouço o apelo à construção de um outro modo de conceber o tempo.

Pela mão da escrita de Llansol, abro a porta, que já estava aberta. E saúdo-vos, imagens queridas, com o convite: " - [Vinde] contruir um amor comigo" (O senhor de Herbais, p. 311).

sábado, junho 09, 2007

Porto Youth Center


Mais um olhar de Luc de Smet para o Porto. Nas suas próprias palavras: "I liked the play of fore- and background, the rythm of the tiles, takes on by the red cage, the through look and the reflections of laundry and more cages, the invisible faces, all that little stuff and the balance".

sexta-feira, junho 08, 2007

Nascimentos que nascem

Nasci num dia de Corpus Christi, em Portugal. Era dia santo, dia para "se guardar", mas a minha mãe não pôde ir à missa, como costumava fazer e até hoje ainda faz.

Tenho , contudo, outras datas e lugares de nascimento, a julgar pelas palavras de Marguerite Yourcenar: "o verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente sobre si mesmo: as minhas primeiras pátrias foram os livros".

Nasci em outros lugares e tempos: nos encontros com o corpo do companheiro, na alegria indescritível da maternidade, na paixão de ensinar, no prazer da interlocução com os alunos, nas delícias de ser avó, na cumplicidade com os verdadeiros amigos, nas lágrimas diante da beleza de um quadro, uma música, um filme, um livro...

Morri um pouco cada vez que duvidei da potência desse olhar inteligente sobre mim mesma. Morri mais ainda quando esqueci da claridade desses nascimentos. Felizmente renasço cada vez que me entrego à minha queda humana. Sei que por vezes esmoreço. Mas logo levanto-me e ando. Estou viva. Sempre ávida por nascer.

Sei que um dia morrerei. Não sei quando nem onde. Mas talvez morrer seja apenas ter outro lugar de nascimento. Que seja inteligente, com claridade serena.

domingo, junho 03, 2007

"elle s´appelle... Tristesse"


O repórter belga Luc de Smet escreve sobre ciência, mas não só. Tira fotos lindas. Esteve recentemente no Porto com a mulher, a magnífica Ann, e recolheu imagens de uma cidade que eu desconhecia (que é a mesma cidade onde trabalho, cidade que escolhi para viver e ser feliz). Esta é uma imagem abstracta de Luc, faz-lhe pensar no fado e na saudade. Por isso, recebeu o seguinte nome: "elle s'appelle... Tristesse"

sexta-feira, junho 01, 2007

Pai escrito I

"naquela mesa está faltando ele,
e a saudade dele,
está doendo em mim"
(Sérgio Bittencourt, em homenagem ao pai, Jacob do Bandolim)

Fragmento que encontrei no interior de um livro:

Portugal, 8 de novembro de 2004

Pai querido,

sento-me no teu lugar privilegiado - a cadeira na varanda, onde costumavas ler. Olho a paisagem que muitas vezes deves ter olhado. E escrevo.

A tua ausência física ainda dói em mim. Na verdade, dói cada vez mais porque cada vez mais cresce a certeza de que não mais te verei, não com olhos humanos. Sei que pouco a pouco a memória do timbre da tua voz, dos detalhes do teu rosto, enfim, da tua presença em movimento, tenderão a desvanecer-se .Temo que a passagem do tempo esmaeça traços de tua personalidade e do teu semblante, ainda tão vivos em mim. Não, não quero uma imagem fixa de ti, não quero te aprisionar num único instante, congelado, como na reprodução fotográfica. Por isso evito olhar os teus retratos. Porque aquela imagem te trai , porque não estás ali. Procuro então apreender-te através do fluir da escrita, na seqüência de instantes-já, como diria Clarice (Água Viva).

Ao escrever a ti, escrevo-te: construo-te num outro tempo-espaço, ergo-te em palavras, traço a traço, letra a letra. E sinto que vens te sentar outra vez à mesa, comigo, em mim.

quinta-feira, maio 24, 2007

Pântanos


"Morvan Tree talk", de Luc de Smet, França, 2007

"No Verão de 1863, Apollo Korzeniowski escreve a um primo que Vologda é um buraco pantanoso em que ruas e caminhos são feioz com troncos de árvores caídos. As casas, e também os palácios da fidalguia provincial são feitos de madeira pintada com cores, assenta em estacas enterradas no pântano. Tudo em redor se alaga, aprodrece e s corrompe. Só há duas estações do ano, o Inverno verde e o Inverno branco. Durante nove meses, desce um ar gelado do Mar do Norte. O termómetro desce a temperaturas tão baixas que nem se imaginam. Tudo em redor são revas sem fim. Durante o Inverno verde chove ininterruptamente. A lama entra por baixo das portas. A rigidez cadavérica transforma-se num marasmo atroz. No Inverno branco tudo está morto, no Inverno verde tudo está a morrer."

Os Anéis de Saturno, de W.G. Sebald (p.105)

segunda-feira, maio 21, 2007

Envelhecer juntos, por muito amor

Há versos e frases que, muito depois de fechado o livro, ficam repercutindo em nós. "Não envelheceremos juntos", transbordamento de dor de Paul Éluard, diante da perda repentina da sua amada, é um desses versos que me pungem.

Penso, comovida, na dádiva do tempo que eu e o meu companheiro recebemos. Foi-nos concedido o tempo de uma longa e intensa convivência, quase sempre com grande cumplicidade.

Os filhos vieram, cresceram e já partiram, tão depressa que quase não nos apercebemos (pareceu-nos que num "piscar de olhos", como é costume suceder a todos os pais).

Perdemos alguns dentes, ganhamos rugas e cabelos brancos.

Alguns projetos se desfizeram, outros novos surgiram.

Mudamos de casa algumas vezes.

A maior parte das prendas de casamento já não existem, quebradas, dadas ou desgastadas pelo uso e o passar dos anos.

Não temos mais as alianças originais: há muito foram roubadas e perdidas. Acordamos tacitamente que não vale a pena adquirir outras novas para expô-las à cobiça dos ladrões.

Mas a nossa relação persiste. Apesar de alguns baixos e graças a muitos altos. Ou, lembrando Clarice Lispector, talvez muitas vezes tenha sido o "apesar de", tanto ou mais que o "graças a", que nos impulsionou. Sons e silêncios, ruídos e melodias, graves a agudos são igualmente necessários ao grande concerto da vida.

Permanecemos. Não por inércia ou acomodação. Mas pela qualidade das mudanças. Por uma espécie de sabedoria do amor, capaz de conciliar mudança e permanência. Por um saber-sentimento que intui e acolhe a necessidade das mudanças - a própria e a do ser amado -, sem contudo desvirtuar a qualidade do afeto.

Rara e bela é a arte de amar, ao mesmo tempo fácil e difícil. Arte-saber que não pré-existe à relação, constituindo-se no seu exercício, codidianamente. Amar na afirmação do amor do mútuo (Maria Gabriela Llansol), por respeito mútuo. Respeito, no seu sentido fundamental, conforme lição da saudosa Francisca Nóbrega: ação de voltar (re) o olhar (spect) para.

Amar assim talvez seja uma das mais belas afirmações do princípio "ama ao próximo como a ti mesmo", por vezes tão mal compreeendido. Um amar que pressupõe amar-se e amar o outro, tanto quanto. Verbo-ação com pré-requisitos e bitransitividade. Amar-te-me.

terça-feira, maio 15, 2007

Os anjos e as nuvens


Foto de Paulo Pimenta / PÚBLICO

“Quando eu era criança gostava muito de olhar as nuvens. Havia umas redondinhas muito luminosas que se amontoavam por vastas áreas do azul do céu que os meus olhos percorriam encantados. Uma vez perguntei: o que é aquilo? São anjinhos, responderam-me. E eu acreditei porque era verdade.”

“Tisana 349”, Ana Hatherly

domingo, maio 13, 2007

Primavera para as mães

Hoje é Dia das Mães no Brasil. Nas ruas e esquinas, uma Primavera fora de época. Ambulantes vendem flores em quiosques e bancas improvisadas na calçada. E nas imediações dos cemitérios, uma infinidade de barracas, talvez em maior número do que na época de Finados, oferecem flores aos visitantes saudosos. Ontem, o vigia do meu prédio saudou-me simpaticamente, parabenizando-me pelo Dia das Mães. E o anônimo trocador do ônibus, também imaginando que sou mãe, respeitosamente homenageou-me, ao entregar o troco. Agradeci a ambos, comovida. Gestos como esses conseguem ir além dos interesses puramente comerciais que criam e exploram certos “Dias”.

Numa época em que quase não há mais valores, “mãe” é um valor que ainda resiste, como mostrou o documentário Falcão: meninos do tráfico, de MV Bill. Num ambiente profundamente corrompido e degradado, em que praticamente inexiste a figura do pai e em que as crianças raramente chegam à vida adulta, “mãe” é palavra que carrega sozinha toda a esperança e poder de transformação.

Li, não sei aonde, que se para quem perde o pai ou a mãe há a palavra órfão, não há nenhuma palavra que possa designar a situação e o sentimento de quem perdeu um filho. Dor inominável. Stabat Mater dolorosa (estava a Mãe dolorosa...), como lembra o sofrimento de Maria, diante da crucificação de seu filho Jesus... Mães pobres e ricas, mães de santos e bandidos, mães alegres e tristes, mães de sangue e do coração, todas se igualam no amor por seus filhos. Nenhuma mãe gera filhos para vê-los mortos nas guerras e batalhas da vida. Nenhuma mãe quer ver o filho morto, ainda mais precocemente, sem nenhuma chance de “chegar lá”, como cantou Chico Buarque em “O meu guri”. Porque todos os filhos são “eternos infantes”, “menino[s] de sua mãe” (Fernando Pessoa).

sábado, maio 05, 2007

Uma lição materna II

Jardim da Infância, Escola Meneses Vieira, Bairro do Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. Hora do recreio. Abro ansiosa a minha mochilinha de pano branco, e inocente e feliz, mostro à minha irmã um montão de brinquedinhos com que poderíamos brincar juntas em casa. Não me lembro que brinquedos eram. Deveriam ser comuns e baratos, desses que talvez hoje em dia as crianças até desprezam, tal é a abundância. Mas para uma infância quase sem nada, eram a maravilha das maravilhas.
Só me recordo dessa cena e das suas conseqüências. O resto - se consegui brincar em casa com eles ou não - se apagou. Aliás, a cena da reação da minha mãe ainda é mais viva do que a primeira. Penso até que a imagem da hora do recreio só permaneceu na memória, graças à segunda. Lembro-me da minha mãe muito aborrecida, a arrastar-me com uma mão firme (creio que me puxava a orelha) até à escola, levando na outra mão a tal mochilinha. Procurou alguém responsável (não sei se a professora ou a diretora) e disse, cheia daquela nobreza de caráter muito comum em gente humilde e de boa formação: “ó senhora professora, desculpe, eu vim aqui para devolver isto que a minha filha levou para casa. Olhe que nós somos muito pobres, mas somos muito honestos, e não queremos nada que não seja nosso!”.

Nada sei sobre a reação da professora. Penso que deve ter sido de espanto com a atitude tão determinada da minha mãe. Decerto também de profunda compreensão por uma criança tão pequena ter ficado encantada com brinquedinhos e ter desejado prolongar a brincadeira mais tarde. Não me lembro de nenhuma reprimenda por parte dela nem de nenhuma humilhação na escola por causa disso. Na verdade, naquela fase tão tenra da vida, sequer tinha a noção de “meu” e “alheio”. Não houve a mínima intenção de furto, porque sequer havia a consciência dessa noção. Havia apenas, num lugar familiar, brinquedos atraentes e olhos e mãos infantis desejosos de vê-los e tocá-los. Casa e escola mantinham uma espécie de continuidade, inclusive porque ficavam na mesma rua, e decerto pareciam-me espaços comuns, interligados.

Essa lição de honradez, apesar de duríssima, deixou bons frutos. Jamais a esqueci. Até porque minha mãe, ao longo da vida, sempre demonstrou muita coerência entre palavras e atos. Nunca transigiu em contas. Hoje em dia, em que princípios como o da honestidade cederam lugar aos do “vamos levar vantagem sobre os outros, a qualquer preço”, pode parecer até risível que alguém, por exemplo, devolva um simples carretel de linha à própria filha, acompanhado de um veemente e sincero pedido de desculpas pelo atraso: “filha, ficou sem querer na mala, é teu - não te lembras, quando fui te visitar? -, desculpa por não tê-lo devolvido há mais tempo!”
Hoje, abro a minha mochila cheia de amor e admiração e ofereço-a àquela que me deu muito mais do que um desejado montão de brinquedos. Sei bem que ela, em tempos de tanta pobreza, não os poderia oferecer. E desde então cada vez mais entendo que não poderia consentir que ficássemos com eles. Obrigada, minha mãe. Parabéns pelo seu Dia.

sexta-feira, maio 04, 2007

Uma lição materna I

Chamava-se Maria Joaquina, apelido Mariquinhas da Vessada. Era uma mulher de compleição física rija e de forte personalidade, uma típica figura daquelas antigas matriarcas, que dirigiam com mão firme os rumos e as finanças da família. Não por tirania ou autoritarismo, mas porque era preciso. Decerto cumprindo determinadas funções e papéis que, no acordo tácito que costuma haver entre os cônjuges, por exigências do feitio, temperamento ou outra razão, lhe coube desempenhar.

Conheci-a em 1962, quando meu pai decidiu que passaríamos uma longa temporada em Portugal, fazendo com que eu e a minha irmã perdêssemos o ano letivo, para espanto geral dos professores, que não entendiam o porquê dessa interrupção, sobretudo tendo em conta que éramos alunas muito estudiosas. Creio que a justificativa dele era a de que, se tentasse conciliar o período das férias escolares com a viagem, nunca poderia passar na terra natal o seu aniversário nem a Páscoa. Não me lembro qual foi a nossa reação na época, mas deve ter sido a de acatar, sem discussão, as decisões paternas. Era esse o modelo familiar vigente: subserviência da esposa, obediência total dos filhos, sem direito a nenhum “mas”. Só recordo que, no regresso ao Brasil, enfrentamos com desconforto e até com uma certa humilhação a situação de estar um ano atrás dos antigos colegas de turma. Hoje, apesar de reconhecer que foi uma opção questionável em relação ao interesse escolar dos filhos, penso que nosso pai nos proporcionou uma oportunidade maravilhosa (e que se revelaria única) de conhecermos os avós paternos e maternos. Perdemos um ano no colégio, mas ganhamos algo bem mais precioso em termos de convívio humano. Feitas as contas, o saldo foi extremamente positivo.

Chegar à casa da avó Joaquina deve ter sido uma longa aventura. Guardo na memória algumas imagens daquela noite: andamos com malas por caminhos estreitos e sinuosos, acompanhados de vozes e vultos de familiares recém-conhecidos, depois passamos por um regato (onde haveria agrião, mas que só no dia seguinte poderíamos ver), até que enfim subimos umas escadas e encontramos uma casa com a porta da sala aberta, uma mesa posta à nossa espera e um inesquecível cheiro de arroz caseiro, preparado com carinho por nossa avó, decerto entre ais de saudade e o bater forte do coração, com a alegre expectativa pelo reencontro. Para camponeses pobres como eles, que tiravam o principal sustento das batatas e do porco (consumido regradamente, para durar um ano), arroz era um luxo, fina e rara iguaria. Até hoje sinto o cheiro convidativo daquele arroz “lourinho”, tão simples e tão saboroso. Vem-me intensamente à memória quando sinto o aroma de cebola refogada que sai pelas janelas dos apartamentos ou quando leio as descrições gastronômicas das comidas provincianas que seduziram definitivamente Jacinto, em A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós.

Minha avó era moleira respeitadíssima. Os fregueses vinham à porta procurá-la ou chamavam-na de longe, com um pregão característico: “Ó senhora Mariiiiiquinhas, venha ao “munho”! E lá ia ela, suspendendo as tarefas domésticas, e seguindo por aquele estranho caminho que nos trouxera de noite, e que agora parecia-nos tão familiar.Às vezes eu a acompanhava, e achava tudo fascinante: a vegetação em torno do moinho, a água caindo e fazendo girar a mó, o processo de transformação do milho, o cheiro da farinha, enfim, adorava aquele lugar pitoresco e romântico (da perspectiva de quem contempla, provavelmente não do ponto de vista de quem dele tira boa parte do sustento), que me fazia lembrar o cenário de certas histórias da infância...

A lição mais importante que dela me ficou, e que minha mãe fazia questão de sublinhar, nas inúmeras vezes em que se dispunha a contar histórias e “causos” de família, foi a sua invulgar honestidade. Seu lema era: antes ficar prejudicada do que prejudicar. Era tão justa, tinha tanto medo de prejudicar alguém e de perder a alma por isso, que pesava o milho dos fregueses antes de moer, para comparar o peso inicial com o do final da moagem. Sem levar em conta as previsíveis perdas durante todo o processo, completava a diferença com a sua própria farinha, até que o peso do saco de farinha do freguês atingisse o peso dos grãos.

Querida avó, penso, com alegria, que com certeza alguns de teus muitos filhos aprenderam a tua bela lição. Teu filho Antônio (meu pai), por exemplo, procurou seguir os teus ensinamentos, mas naturalmente adaptando-os ao seu próprio ideal de justiça. Era um homem profundamente íntegro, e creio firmemente que jamais prejudicou alguém. Ajudava as ex-empregadas a “pôr a telha” (a terminar a construção das suas casas) e emprestava dinheiro a alguns sobrinhos, afilhados e amigos. Mas não gostava de ser prejudicado. Reagia muito mal à injustiça (traço que herdei dele). Quando percebia que as pessoas não estavam agindo conforme o combinado, perdia o sono, aborrecia-se, tinha crises de estômago e alterações de humor. Por vezes via-o cabisbaixo na sua poltrona, com a mão a apertar o abdômen, meio dobrado sobre si mesmo, e pensava que eram problemas digestivos. Em geral não eram: debatia-se com a angústia de perceber que o caráter das pessoas não correspondia à confiança que nelas depositara. Sofria quase silenciosamente, não desabafava, não queria reconhecer que se equivocara, sobretudo em relação às pessoas da família, porque tinha em alto apreço o bom nome e os valores familiares.

Avó Joaquina, tantas vezes mãe, avó e bisavó: lá no "assento etéreo" (Camões) onde certamente te encontras, espero que só te cheguem as boas notícias da tua descendência, aquelas que estão à altura das belas ações que aqui praticaste. Espero que jamais possas saber de certos desvios de caráter, de algumas ações pouco dignificantes da tua linhagem. Apraz-me imaginar que, nesse céu dos justos, já deves ter encontrado meu pai...

Neste Dia das Mães em Portugal, meu pensamento vai também para ti (e para o teu filho, pois sou tua neta, por parte de pai): avozinha, do meu ramo nasceram dois bisnetos e uma trineta. Contarei para eles a tua história, para sempre ligada à nossa história, pois ela é um bem precioso, a mais valiosa herança que lhes quero legar.

quarta-feira, abril 18, 2007

terça-feira, abril 17, 2007

Palavras-fulgor de ti

ao meu morto querido, que vive em mim, com muita saudade

Abril
Páscoa
casa
família
netos
bisnetos
desejo de viver
integridade
confiança nas pessoas
generosidade
Vasco
Benfica
sueca
amigos
construção
vindimas
gatos
pássaros
cerejas
pão
passeio no Douro
Arouca
Portugal

domingo, abril 15, 2007

Dar corda ao mundo


Deda, Noruega, 2006

"Imaginei-me transformado em pássaro de pedra, sulcando o céu de Verão, pousando no ramo de uma árvore enorme, dando corda ao mundo. Se era certo que o pássaro de corda tinha desaparecido, alguém tinha de desempenhar as suas funções. Alguém tinha de dar corda ao mundo por ele. Caso contrário, a corda iria diminuindo e o delicado mecanismo acabaria por parar. E o que acontece é que eu seria o únco ser humano a ter dado pelo seu desaparecimento."

Haruki Murakami in Crónica do Pássaro de Corda (Casa das Letras, 2007, p. 274)

quinta-feira, abril 12, 2007

O tempo transborda

Leio Éluard, Llansol e Guimarães Rosa, e penso em ti, em virtude do muito amor, na proximidade da tua data natalícia:

"Eis o dia

que veio a mais: o tempo transborda"
(Paul Éluard, Últimos Poemas de Amor, tradução de Maria Gabriela Llansol)


"A. Nómada devia fazer hoje sessenta anos. Mas o tempo, contado pela terra, já é inútil para ele. Ele caiu agora onde fica o segredo da contagem"
(Maria Gabriela Llansol, Amigo e amiga. Curso de silêncio de 2004)

"Saudade é ser, depois de ter"
(Guimarães Rosa, citação de memória)

domingo, abril 08, 2007

Domingo de Páscoa

Penso em ti, minha adorada ausente de escrita,
e preparo meu coração para suportar as saudades,
porque sei que em breve trocaremos mensagens,
e manteremos correspondência,
nestas nossas notícias do cais.

Penso também muito naquele que está lá onde o amor
já não pode morrer nem ser quebrado,
e que tanto amava tapetes de flores
e uma mesa de doces iguarias,
para bem-receber o compasso com a cruz...

Enquanto penso, ouço com o meu amado,
que amorosamente prepara o almoço pascal,
belas canções que elevam a alma
(poemas musicados de San Juan de la Cruz, na voz de Amancio Prada)
e músicas cubanas (do Buena Vista Social Clube),
que mitigam e renovam as saudades de ti.

Penso nisso tudo
e, apesar da dor da saudade,
percebo que ouço, vejo, falo, sinto, escrevo,
estou viva,
sou feliz...
E comovo-me,
celebrando pequenas grandes alegrias,
como a desta hora, deste dia, deste domingo.

segunda-feira, abril 02, 2007

O artesanato do Mundo



Folheie as mãos nas plainas enquanto desusa a gramática da madeira, obscura
memória: a seiva atravessa-a.
Que a mão lhe seja oblíqua.
Aplaina as tábuas baixas e sonolentas - torne-as
ágeis.
Leveza, oh faça-a como a do ar que entra nelas.
Por súbita verdade a oficina se ilude: que,
de inspiração,
o marceneiro transtorne o artesanato do mundo.
Aparelha, aparelha as tábuas cândidas.
A sua vida é cada vez mais lenta.
Como entra o ar na gramática!
Que Deus apareça.

Herberto Helder

quinta-feira, março 15, 2007

Carta a um jovem especial

aqueles que te amam
- os que estão neste mundo e, com certeza, também os que já partiram -
enviam-te a força que emana do afeto,
a energia capaz de atravessar distâncias e fronteiras,
a rede de sustentação necessária,
para que consigas manter a serenidade e o equilíbrio,
e prosseguires ileso
na alegria de viver, na vocação de ser feliz,
no dom de dar a receber amor,
fim último para o qual nascemos.

Velando a amiga II

querida amiga

encontrarás a serenidade e o bem-estar de que precisas
em meio à natureza do grande jardim

mãos experientes cuidarão de ti
e o olhar afetuoso de teus amigos sempre te acompanhará

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Ah, Marisa Monte

“Enquanto isso, navegando eu vou
Sem paz
Sem ter um porto
Quase morto, sem um cais
E eu nunca vou te esquecer, amor”

Excerto da canção “Veja bem, meu bem”, de Marcelo Camelo

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Para uma menina guerreira


Pequenina Amillia, seja bem-vinda a este mundo insano e maravilhoso. Parabéns pela espantosa capacidade de lutar pela vida. Você é um milagre da ciência dos médicos e do amor de seus pais. Que doravante tudo seja menos difícil para você.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Contextualizando a morte de João Hélio

Os três posts abaixo - acalantos enviados por Tuki a partir do Rio de Janeiro - referem-se a um crime recente que, embora noticiado em Portugal, apareceu sobretudo em textos genéricos sobre criminalidade no Brasil. João Hélio era uma criança de seis anos que morreu ao ser arrastada, ao longo 15 minutos e de sete quilómetros, a reboque de um carro roubado por cinco homens armados (um deles menor de idade) à mãe da vítima.
O assalto decorrido no passado dia 7 de Fevereiro deixou o Brasil mais uma vez chocado com a sua incapacidade de deter o avanço da delinquência juvenil. Propuseram-se mais uma vez alterações legislativas, debateu-se mais uma vez a redução da maioridade penal para os 16 anos, uma vez que, como refere o texto de Nuno Amaral no Público de ontem, "os menos de 18 no Brasil estão sujeitos apenas a sanções educativas até três anos".
"Nas principais cidades, a maioria dos assaltos é cometida por adolescentes pobres ou vítimas das redes de tráfico e consumo de droga."
"Num país imenso onde um terço da população vive abaixo do limiar da pobreza e a maioria da população empregada recebe um ordenado mínimo que não chega aos 130 euros, o número dos que vivem em favelas não pára de aumentar, sobretudo em cidades como São Paulo, Belém e Rio de Janeiro."

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Acalanto para a mãe dos assassinos de João Hélio

Mãe (que preferiu não se identificar) do Carlos Eduardo (que dirigia o carro roubado que arrastou o menino João Hélio pelas ruas do Rio) e do menor Ezequiel (que estava no banco traseiro), imagino o que sentes, duas vezes mater de outra dor, não menos dolorosa, entendo o teu desejo de pedir desculpas aos pais do menino morto pelo crime que não praticaste e também entendo o gesto do teu marido, ao entregar à polícia o próprio filho.
Acredito na sinceridade de tuas palavras, transcritas nos jornais:
"-Minha dor é tanta que seria mais fácil se eu estivesse a enterrar o Ezequiel".
Não conheço muito da tua história de lutas e desesperos ante o caminho trilhado por teus rebentos.
Mas sou tentada a concordar quando não acreditas na recuperação dos infratores através do sistema penal vigente: teu filho mais velho não cumpriu as regras do regime semi-aberto e tornou-se reincidente, arrastando consigo o irmão.
Não sei o que oferecer ao teu coração sobressaltado, despedaçado, desesperançado.
Só posso te dar a minha solidariedade materna e humana, sabendo que nenhuma mãe escolheria um destino assim para seus filhos.

Acalanto para a irmã de João Hélio

Aline, doce menina-moça,
duplamente vítima, alvo e testemunha do horror, como amenizar a dor de teus treze anos para sempre abalados, congelados naquele terrível instante?
Como confortar o teu desespero?
Como dizer-te que não tens que sentir culpa, que não tens que pedir perdão, por não teres conseguido salvar o teu irmãozinho?
Que tua fé e a da tua família te sustente nessa travessia, que o tempo suavize a imagem do sofrimento e avive as das boas lembranças, na certeza de que o amor que vos une continua.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Acalanto para João Hélio

Meu menino, apetece-me embalar-te e adormecer a dor de teus pais, dilacerados pela pavorosa violência da tua partida. Queria poder recuar o tempo, e devolver-te a eles inteiro, vivo. Mas os jornais insistem em estampar a inimaginável realidade.E, indignada, a cidade chora por ti, por tua família, por todos nós.Consola-me imaginar que foste acolhido com festas no céu,como o poeta imaginou a chegada de Mozart, e que agora lá enfeitas com teus desenhos,as paredes e murais diáfanos, e ainda corres e brincas e falas com teu jeito singular.Contudo, aqui na terra, a dor maiúscula ficará, a clamar por justiça, a implorar por um mundo mais humano,em que as crianças possam ser crianças,em que a vida seja o valor maior,em que crianças e jovens e adultos não matem friamente,diferente deste mundo que te levou tão cedo,e gerou a insensibilidade dos teus assassinos.

domingo, fevereiro 11, 2007

Ganhou o bom senso

Apesar da elevada abstenção, parece que o bom senso ganhou à lei hipócrita. Oportunidade para recordar texto de Helena Matos escrito em 3/2/07 no Público:

"O que está em causa neste referendo não é o que nós fazemos, faríamos ou fizemos quando e se confrontados com o dilema de interromper ou não uma gravidez. O que está em causa é o nosso direito a impor uma gravidez [a uma mulher]. Pessoalmente, não creio que qualquer um de nós tenha ou possa ter este direito."


sábado, fevereiro 03, 2007

O sim de Pulido Valente

Vasco Pulido Valente escreveu ontem na última página do Público (o seu espaço habitual) um texto espantosamente lúcido. Sem fel, sem desejo de contrariar por contrariar. Sem a amargura que já é quase marca registada do colunista. Vale a pena recordar algumas passagens (sobretudo para os brasileiros, que raramente têm acesso aos artigos de opinião do jornal):

"A actual lei portuguesa sobre o aborto não respeita aquilo a que os partidários do "não" costumam chamar "o valor absoluto da vida": admite o aborto em caso de violação, malformação fetal e grave perigo para a vida ou a saúde física ou psíquica da mãe.

[...]

O mal do referendo está, e sempre esteve, no facto de que as pessoas nunca, ou quase nunca, discutem, informada e razoavelmente, os méritos da questão a voto e que depois nunca, ou quase nunca, votam sobre ela.

Votam em nome de um princípio religioso, de uma ideologia ou de um sentimento. Se têm "razões", têm "razões" fabricadas para a circunstância, que não se aplicam, ou só com muito boa vontade se aplicam, ao problema em causa.

Pior ainda: o motivo mais comum para votar "sim" ou "não" é da relutância (ou o medo) de não seguir o grupo a que imaginariamente se pertence: a Igreja, a direita, a esquerda, a profissão ou a família.

[...]

O "não", sem defender o regime presente, alega que esta medida irá aumentar e "normalizar" o aborto. E, para evitar esse perigo, aceita que milhares de mulheres paguem um preço de sofrimento e de humilhação (a maioria infelizmente por ignorância e miséria).

O "sim" prefere acabar com o mal que vê e pensar depois no mal que vier, se de facto vier. O referendo é um acto político, que se destina a mudar a sociedade (idealmente, para melhor) e não resolver um debate. Claro que, se o "sim" ganhar, o Estado, na prática, "oficializa" o aborto. Mas triste de quem espera do Estado uma fonte de legitimidade moral. Por mim não, espero. E voto "sim".

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Pimenta nos olhos dos outros é colírio


Duas coisas importantes para dizer. O Paulo Pimenta, fotojornalista do Público, tem um blogue há vários meses. Estão lá expostos alguns dos seus trabalhos pessoais. Lindos, porque ele já nasceu com o um rectângulo dentro da íris. Ele diz que não. Que fotografa com o coração. Essas coisas de artista modesto, gente que fica corada quando recebe elogio.
Mas vamos ao segundo ponto. O Paulo Pimenta tem uma exposição em cartaz na Fnac de Santa Catarina, no Porto, chamada "As Três Primeiras Músicas". Quem for lá e ler o texto de apresentação da Inês Nadais vai entender o porquê. Até 15 de Março. Entrada livre, é claro.

domingo, janeiro 28, 2007

A despensalização do aborto

Estávamos a sair da redacção, à noite, quando encontramos algumas centenas de pessoas com uma vela na mão a caminhar ao longo da Avenida Marechal Gomes da Costa, no Porto. A minha amiga A. decide parar o carro. Estávamos intrigadas com tão estranha cena às 23h de uma sexta-feira. Abro a janela do carro e indago uma das pessoas que seguiam em fila indiana acerca do propósito da procissão.

__ "É contra o aborto", responde a senhora.

Ficamos esclarecidas.

Defendo obviamente a manifestação livre pelas mais diversas e discutíveis causas. Mas choca-me que as questões sejam colocadas nestes termos. Teria regressado em paz para casa se me dissessem simplesmente: "estamos a fazer uma procissão contra a despenalização do aborto". Sim, porque é disto que estamos a falar. Aquilo que se perguntará aos portugueses nas urnas, no próximo dia 11 de Fevereiro, é se concordam ou não que uma mulher interrompa voluntariamente a gravidez, até às dez semanas de gestação, sem que esteja sujeita a ir parar no banco dos reús.

Despenalizar não é sinónimo de ser a favor do aborto.
Despenalizar não é sinónimo de ser contra a vida.

Espero que os brasileiros que leiam notícias sobre este referendo em Portugal compreendam qual é a questão que está a ser colocada aos eleitores.

sábado, janeiro 27, 2007

Saudades de Tom



Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro, estou morrendo de saudades...

Tom Jobim completaria oitenta anos no dia 25 de Janeiro. A alma do Rio, cidade também de Janeiro, canta a saudade do olhar do seu maestro soberano, Antonio Brasileiro.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Infância

E jogava ao pião com Deus
Enquanto minha mãe estendia a roupa
E o meu pai mendigava pão

E minha alegria nesse tempo era muito próxima
Da dos meninos
E de Deus que ganhava sempre

E não sei quem perdi primeiro:
O pião ou Deus
Apenas sei que Deus continua
A jogar com outros meninos

E que no Outono quando saio à praça
Nos sentamos e falamos muito
Do suave rodopiar das folhas

Daniel Faria

(Poema escolhido pela Quasi Edições para o cartão de Boas Festas 2006)

terça-feira, janeiro 09, 2007

Para o novo ano

"Para o novo ano - Ainda vivo, ainda penso: é ainda necessário que eu viva, porque é ainda necessário que eu pense. Sum ergo cogito:cogito ergo sum. Hoje todos se permitem exprimir os seus desejos, o seu mais caro pensamento: vou, portanto, dizer eu também, o que mais desejo hoje e qual foi o primeiro pensamento que desejei realizar este ano; vou dizer qual é o pensamento que deve tornar-se a razão, a garantia e a doçura de toda a minha vida! É aprender cada vez mais a ver o belo na necessidade das coisas: é assim que serei sempre daqueles que tornam as coisas belas. Amor fati: seja esse de agora em diante o meu amor. Não quero fazer a guerra ao feio. Não quero acusar, nem mesmo os acusadores. Desviarei o meu olhar, será essa, de ora em diante, a minha única negação. E, numa palavra, não quero, a partir de hoje, ser outra coisa senão um afirmador. "

Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, aforismo 276

segunda-feira, janeiro 01, 2007

A hora nova

e de novo um ano da nossa alma começa (Hölderlin)

Bem-vindo, primeiro dia do novo ano, com todas as esperanças que a renovação do tempo traz.