Chamava-se Maria Joaquina, apelido Mariquinhas da Vessada. Era uma mulher de compleição física rija e de forte personalidade, uma típica figura daquelas antigas matriarcas, que dirigiam com mão firme os rumos e as finanças da família. Não por tirania ou autoritarismo, mas porque era preciso. Decerto cumprindo determinadas funções e papéis que, no acordo tácito que costuma haver entre os cônjuges, por exigências do feitio, temperamento ou outra razão, lhe coube desempenhar.
Conheci-a em 1962, quando meu pai decidiu que passaríamos uma longa temporada em Portugal, fazendo com que eu e a minha irmã perdêssemos o ano letivo, para espanto geral dos professores, que não entendiam o porquê dessa interrupção, sobretudo tendo em conta que éramos alunas muito estudiosas. Creio que a justificativa dele era a de que, se tentasse conciliar o período das férias escolares com a viagem, nunca poderia passar na terra natal o seu aniversário nem a Páscoa. Não me lembro qual foi a nossa reação na época, mas deve ter sido a de acatar, sem discussão, as decisões paternas. Era esse o modelo familiar vigente: subserviência da esposa, obediência total dos filhos, sem direito a nenhum “mas”. Só recordo que, no regresso ao Brasil, enfrentamos com desconforto e até com uma certa humilhação a situação de estar um ano atrás dos antigos colegas de turma. Hoje, apesar de reconhecer que foi uma opção questionável em relação ao interesse escolar dos filhos, penso que nosso pai nos proporcionou uma oportunidade maravilhosa (e que se revelaria única) de conhecermos os avós paternos e maternos. Perdemos um ano no colégio, mas ganhamos algo bem mais precioso em termos de convívio humano. Feitas as contas, o saldo foi extremamente positivo.
Chegar à casa da avó Joaquina deve ter sido uma longa aventura. Guardo na memória algumas imagens daquela noite: andamos com malas por caminhos estreitos e sinuosos, acompanhados de vozes e vultos de familiares recém-conhecidos, depois passamos por um regato (onde haveria agrião, mas que só no dia seguinte poderíamos ver), até que enfim subimos umas escadas e encontramos uma casa com a porta da sala aberta, uma mesa posta à nossa espera e um inesquecível cheiro de arroz caseiro, preparado com carinho por nossa avó, decerto entre ais de saudade e o bater forte do coração, com a alegre expectativa pelo reencontro. Para camponeses pobres como eles, que tiravam o principal sustento das batatas e do porco (consumido regradamente, para durar um ano), arroz era um luxo, fina e rara iguaria. Até hoje sinto o cheiro convidativo daquele arroz “lourinho”, tão simples e tão saboroso. Vem-me intensamente à memória quando sinto o aroma de cebola refogada que sai pelas janelas dos apartamentos ou quando leio as descrições gastronômicas das comidas provincianas que seduziram definitivamente Jacinto, em
A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós.
Minha avó era moleira respeitadíssima. Os fregueses vinham à porta procurá-la ou chamavam-na de longe, com um pregão característico: “Ó senhora Mariiiiiquinhas, venha ao “munho”! E lá ia ela, suspendendo as tarefas domésticas, e seguindo por aquele estranho caminho que nos trouxera de noite, e que agora parecia-nos tão familiar.Às vezes eu a acompanhava, e achava tudo fascinante: a vegetação em torno do moinho, a água caindo e fazendo girar a mó, o processo de transformação do milho, o cheiro da farinha, enfim, adorava aquele lugar pitoresco e romântico (da perspectiva de quem contempla, provavelmente não do ponto de vista de quem dele tira boa parte do sustento), que me fazia lembrar o cenário de certas histórias da infância...
A lição mais importante que dela me ficou, e que minha mãe fazia questão de sublinhar, nas inúmeras vezes em que se dispunha a contar histórias e “causos” de família, foi a sua invulgar honestidade. Seu lema era: antes ficar prejudicada do que prejudicar. Era tão justa, tinha tanto medo de prejudicar alguém e de perder a alma por isso, que pesava o milho dos fregueses antes de moer, para comparar o peso inicial com o do final da moagem. Sem levar em conta as previsíveis perdas durante todo o processo, completava a diferença com a sua própria farinha, até que o peso do saco de farinha do freguês atingisse o peso dos grãos.
Querida avó, penso, com alegria, que com certeza alguns de teus muitos filhos aprenderam a tua bela lição. Teu filho Antônio (meu pai), por exemplo, procurou seguir os teus ensinamentos, mas naturalmente adaptando-os ao seu próprio ideal de justiça. Era um homem profundamente íntegro, e creio firmemente que jamais prejudicou alguém. Ajudava as ex-empregadas a “pôr a telha” (a terminar a construção das suas casas) e emprestava dinheiro a alguns sobrinhos, afilhados e amigos. Mas não gostava de ser prejudicado. Reagia muito mal à injustiça (traço que herdei dele). Quando percebia que as pessoas não estavam agindo conforme o combinado, perdia o sono, aborrecia-se, tinha crises de estômago e alterações de humor. Por vezes via-o cabisbaixo na sua poltrona, com a mão a apertar o abdômen, meio dobrado sobre si mesmo, e pensava que eram problemas digestivos. Em geral não eram: debatia-se com a angústia de perceber que o caráter das pessoas não correspondia à confiança que nelas depositara. Sofria quase silenciosamente, não desabafava, não queria reconhecer que se equivocara, sobretudo em relação às pessoas da família, porque tinha em alto apreço o bom nome e os valores familiares.
Avó Joaquina, tantas vezes mãe, avó e bisavó: lá no "assento etéreo" (Camões) onde certamente te encontras, espero que só te cheguem as boas notícias da tua descendência, aquelas que estão à altura das belas ações que aqui praticaste. Espero que jamais possas saber de certos desvios de caráter, de algumas ações pouco dignificantes da tua linhagem. Apraz-me imaginar que, nesse céu dos justos, já deves ter encontrado meu pai...
Neste Dia das Mães em Portugal, meu pensamento vai também para ti (e para o teu filho, pois sou tua neta, por parte de pai): avozinha, do meu ramo nasceram dois bisnetos e uma trineta. Contarei para eles a tua história, para sempre ligada à nossa história, pois ela é um bem precioso, a mais valiosa herança que lhes quero legar.