sexta-feira, setembro 19, 2003

Ovo esotérico



"Emblemático desse processo de apagamento dos sentidos atribuídos às palavras (e também do processo de fusão com o objeto), o conto-ensaio O ovo e a galinha se constrói a partir do jogo de linguagem estabelecido entre o objeto “ovo” e a palavra “ovo” que o nomeia, numa aproximação lúdica e simultânea da linguagem infantil se esboçando, e da mais abstrata especulação filosófico-metafísica, na qual se busca incessantemente, através da reiteração do nome, definir o objeto, sem que, no entanto, se chegue a atingir essa meta, já que quanto mais se acumulam as definições, mais se distancia a essência do objeto.


Paralelamente a essa fúria aproximativa do objeto, contudo, há a preocupação do narrador em não entendê-lo, pois se o entender estará errando. A linguagem do conto, então, não se propõe a elucidar o mistério do ovo; quer apenas mostrar que é mistério, e o que se delineava como um processo de apreensão do objeto, no início do texto, no final revela-se como o desapego supremo, “pois o ovo é um esquivo”, e somente quando deixado livre, “impensado”, é que pode se revelar em sua verdadeira essência. "

"A PALAVRA E O SILÊNCIO: O ESOTERISMO DE CLARICE LISPECTOR", ensaio de Júlio Gomes



Clarice e o Ovo




"A galinha olha o horizonte como se da linha do horizonte é que tivesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender, se ela é a contradição de um ovo?...E me faço rir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio e não um fim tem me dado a mais maliciosa das liberdades. Não sou boba e aproveito, inclusive. Faço um mal aos outros que... francamente!"

in "O Ovo e a Galinha"

A retribuição das palavras

Eu terminei o "Abelha na Chuva" anteontem. Dei-o para uma pessoa que tem o russo como língua-mãe, mas que quer treinar português. No dia seguinte, ganhei um ovo pintado a mão. Fiquei atónita. Julia, assim ela se chama, entregou-me o ovo sem jeito, dentro de um saco plástico. Disse que era uma recordação. Eu queria que ela provasse o sabor das palavras decantadas de Carlos Oliveira, frases precisas, sem gordura adjectiva. Ela acede ao desafio e devolve-me um ovo, sim, um ovo pintado à mão.

Clarice Lispector teria achado muito bela esta retribuição das palavras. Não só porque adorava o simbolismo do ovo enquanto elemento desencadeador de mistérios e epifanias, mas também porque Clarice nasceu na Ucrânia. Houve quem dissesse que a língua presa de Clarice, a sua dificuldade de pronunciar determinadas palavras, tivesse a ver com a terra natal.

Alguém pode me explicar?

Nunca entendi por que é que os livros encomendados na Fnac e na Leitura demoram tanto a chegar. Eu gostaria de saber se há algum lugar no Porto onde os livros chegam no prazo de uma semana.
É que cada obra corresponde a um chamado de um leitor. Será que quando os volumes chegam atrasados afectam a vida daquele que lê da mesma forma que o fariam se tivessem chegado antes?

domingo, setembro 14, 2003

Caminhar sobre conchas

Por falar em criaturas da praia, leio o terceiro capítulo de Ulisses e encontro:

"Stephen fechou os olhos para ouvir as suas botas triturar crepitantes detritos e conchas. Caminhas de qualquer modo por sobre isso. Eu, passo a passo."

Também a minha blog-cúmplice Nastenka-d falava do assunto no Leitura Partilhada .

Recomendo vivamente a todos, assim que possível, um passeio de pés nus sobre areias de fim de tarde, com direito a operação cata-seixos, é claro. O dia de domingo presta-se muito bem a programas destes.

Seixos rolados



Podemos escolher pedras na areia da praia. Elas são de graça e agradeço-as por isso (o que é gratuito hoje, meu amor?). Gosto de as sentir geladas nas mãos e perceber que têm veios aqui, ranhuras ali. Trouxe hoje algumas para casa, para que fizessem companhia à "the plant", como se chama um dos vegetais que habitam o meu meu lar. Eu gosto de catar seixos rolados junto ao mar e recomendo a todos a experiência.

Carlos de Oliveira

Fui esta noite numa livraria e trouxe duas pérolas de Carlos Oliveira (1921-1981): "Uma Abelha na Chuva" e "Finisterra", editadas em Julho e Agosto pela Assírio & Alvim. Outras quatro estão no prelo, incluindo a perfeição de "Casa na Duna". Comprei-as para reler numa viagem que farei em breve. Esta iniciativa editorial permite aos jovens leitores (eu, por exemplo) fazer uma colecção novinha do autor neo-realista. Obrigada, Assírio & Alvim.

Falta pouco

Cristina Fernandes não me deixa esquecer: falta pouco para começar o Íntima Fracção. Vou aproveitar para escrever ao sabor da música. Ou desenhar com os ouvidos, com diz a nossa blog-cúmplice.

Saudades do Cais

Quando ficamos muito tempo sem escrever, sentimos saudade. Queria voltar ao cais o mais rápido possível, mas só agora consegui.

domingo, setembro 07, 2003

Íntima Fracção



Estou ouvindo o Íntima Fracção, na TSF, porque Cristina Fernandes pediu para que desenhássemos com os ouvidos. Estou a entregar-me aos poucos. O rádio está ao meu lado. Eu prometo que a casa está silenciosa. Nada. Nem um ruído. Há um difusor no corredor e o seu aroma está a ajudar-me a escrever letras com os tímpanos. Agora é Jim Morrison. Sussurra aqui ao lado. Vou desligar o computador e deitar. O corpo a pesar sobre a cama, inerte, suportado pela música.

PS A fotografia é de Alexandre Monteiro, fixada com maresia dos Açores.

Dia da Independência do Brasil

Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o munfo futuro.
Estou preso à vida e olho os meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, setembro 05, 2003

Seda

Acabo de ler um livro de histórias, como prefere classificar o autor Alessandro Baricco. Chama-se "Seda" (Difel, 2002) e é de uma delicadeza fabulosa. Li em poucas horas, fascinada que estava pela personagem Hervé Joncour.

Hervé é um homem francês que abandona a carreira militar para se dedicar à compra e venda de bichos-da-seda. "Corria o ano de 1861. Flaubert escrevia Salammbô, a iluminação eléctrica ainda não passava de uma hipótese e Abraham Lincoln, do outro lado do oceano, combatia uma guerra da qual nunca chegaria a ver o fim". Nesse período, Hervé tinha 32 anos e já estava casado com uma mulher, de nome Heléne e voz cristalina.

Uma grande epidemia recaía sobre os ovos de bichos-da-seda. Hervé viajava até à Síria e ao Egipto para angariar produtos sãos, capazes de alimentar as fiações da localidade de Lavilledieu. A dada altura, tornou-se muito difícil encontrar material de qualidade. Decidiu-se então que Hervé partiria para o Japão, terra que de tão fechada ao estrangeiro certamente não tinha sido ainda atacada pelo mal. Hervé partiu.

A aventura de Hervé naquele país oriental passa pela beleza de um lago, pela hospitalidade de um senhor solene e pela sedução de uma rapariguinha com olhos amendoados, ocidentais. Uma narrativa simples, como convém às lendas de viajantes, que me fez lembrar de Marco Pólo e Kublai Khan em "As Cidades Invisíveis", de Calvino.

Uma leitura singela para um fim de tarde. Uma chávena de chá de tília, uma manta macia mas não muito quente. Ao fundo, o silêncio da casa só.

Alessandro Baricco nasceu em Turim, em 1958. É conhecido como crítico literário e musical, mas já apresentou programas de televisão italianos. Escreveu ainda "Castelos de Raiva", também editado entre nós pela Difel.

A dor



Acabo de ler no Textos de Contracapa uma crónica do editor Nelson de Matos sobre a Inês Pedrosa. Ele fala do pai da escritora e de como a sua morte impulsionou a escrita de "Fazes-me Falta". Já se escreveu muito sobre a relação entre a dor e o processo criativo, mas o que me fascina nesta matéria é como a escrita surge como maneira de fixar um corpo ausente. Coincidentemente, pouco antes de ler a peça de Nelson de Matos, a minha mãe enviou-me fragmentos do livro que pretende tecer, texto provisoriamente chamado de "Cartas a Meu Pai".

Eu acredito que há coincidências - ao contrário da MRP, o que pode ser um bom sinal - e, quando elas acontecem, costumo ficar mais interessada no tema que lhes deu origem. Sendo assim, percorri a estante em busca de "Dor Sem Nome", um trabalho de Manuela Fleming que me foi enviado, há semanas, pelas Edições Afrontamento. E o que diz a autora? "A dor está intimamente ligada à cultura, à arte, à religião e a todas as outras formas que a espécie humana criou para simbolizar, para transformar as vivências humanas geradoras de sofrimento, de forma a outorgar-lhes sentido, a torná-las mais suportáveis ou mais inteligíveis."

Quando organizamos em palavras a dor que nos alinhava os músculos com fio de pesca, deixando-nos incapazes de caminhar e compreender o curso inelutável das coisas, temos a sensação que reconstruímos em tinta e papel o corpo que se perdeu. Não acredito que o sofrimento tranfere-se para a página em branco, muito pelo contrário, acho que se metamorfoseia, ganha novas formas de expressão. Assim, a arte funciona como meio para, como assinala Manuela Fleming, dar sentido ou coerência à dor.

É por isso que "Fazes-me falta" arrebata aqueles que enfrentaram a morte há pouco. O assombro de perder alguém está ali sob a roupagem de uma tentativa, ao mesmo tempo vã e eficaz, de um diálogo entre mundos separados. "Pensaste em mim enquanto morrias? Dava muito dinheiro por esta resposta - desde que fosse verdade", escreve Inês Pedrosa, construindo uma terceira margem para que cada ausência, já que não pode ser colmatada, perca a sua aspereza num tempo suspenso e num lugar outro. Como no conto de Guimarães Rosa.

(Como explicar a alguém a utilidade da arte?)

quarta-feira, setembro 03, 2003

Arte de Navegar



Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e a minha mão marinheiro.

Eugénio de Andrade

O mutismo das palavras

Pesquisando sobre Mangelos na internet, descobri um lugar onde se pode respirar palavras e imagens. Um lugar ao alcance de um toque.

Mangelos (2)

A retrospectiva do artista croata Mangelos já saiu do Museu de Serralves, no Porto, para dar lugar a trabalhos vindos do Moma. Os portuenses tiveram uma oportunidade única de ver uma mostra marcada pela questão da escrita. Há uma aproximação ao palimpsesto quando o artista recobre com tinta negra ou branca, de forma quase compulsiva, superfícies de livros e jornais. Isso porque ele volta a escrever sobre a página pintada, como se quisesse simular uma tábua rasa ou um eterno recomeço.

O comissário da exposição vê nesse acto de rasura e reescrita permanente um desejo de negar a pintura. É certo que há diversas iconografias impressas e assinaladas com um X vermelho, como se Mangelos as quisesse riscar do mapa. Mas acho que persiste na sua obra um desejo de reescrita, ou seja, de inserir no aspecto subjectivo da pintura algo objectivo como a letra impressa. Só que, na minha opinião, ao preconizar a objectividade da palavra escrita - a palavra é sempre a palavra, não pode ter múltiplas formas interpretativas como a arte abstracta -, Mangelos tropeça na palavra enquanto objecto estético. Ou seja, a palavra escrita em forma de caligrafia entre linhas, por exemplo, acaba por ser, no seu conjunto, uma imagem subjectiva.

E é por isso que Branka Stipancic escreve no texto de apresentação: "na tentativa de negar a pintura e de combater o seu lado irracional, Mangelos pintou letras de diversos alfabetos, acabando por as geometrizar e por as transformar em pinturas abstractas, nas quais os caracteres, por vezes, acabavam por ficar irreconhecíveis, chegando, como ele próprio afirmou com algum humor, a uma incoerência."

Acho incrível a imagem do artista que se aproxima do abismo que ele próprio cavou porque, sem dúvida, isso revela a condição da própria arte. Mangelos, um historiador da arte, esforçou-se tanto para fazer uma não-arte que tornou-se um grande artista.

PS. Ainda sobre a questão da escrita em Serralves: tanto a exposição de António Sena como a do fotógrafo norte-americano gravitam à volta da palavra como objecto estético. Viva a palavra!

terça-feira, setembro 02, 2003

A gente descobre que envelhece...

... Quando vê que o Charles Bronson morreu e, ao conferir a sua idade, percebe que ele afinal tinha 80 anos.

... Quando lê que o Johnny Depp tem 40 anos e diz que deixou de ser mau rapaz.

... Quando o rapaz que pesa as frutas no supermercado diz "senhora" e não "menina".

... Quando o seu afilhado te pede no Natal brinquedos cujo nome você nunca ouviu falar, insistindo que "é aquele que está sempre a aparecer na televisão".

... Quando o preço do seu seguro de saúde muda de escalão e a companhia manda para a sua casa uma cartinha dizendo que está "na hora de pensar no seu futuro".

Não há sala de castigo em Serralves

Eu sempre tive curiosidade de saber como são distribuídas as salas de exposição aos vigilantes do Museu de Serralves, no Porto. Há salas do prédio desenhado por Siza que costumam ficar mais vazias que outras. São aquelas que ficam na cota baixa. Via aquelas criaturinhas de fato cinzento, de olhos esgazeados e postos sobre as obras, com livros ou revistas nas mãos. Por vezes, ensaiavam curtos passeios à volta da cadeira de madeira, numa tentativa vã de esticar as pernas ou prevenir varizes futuras. Julgava que as salas do piso inferior eram uma espécie de castigo para os novatos, um lugar onde ficavam horas a fio na companhia de quadros e esculturas.

Pois bem. Ontem descobri que, apesar de existir um “ranking” informal das melhores salas, não há privilegiados. Um sistema de rotatividade permite que todos, democraticamente, passem por divisões nobres ou recônditas. E mais: conversando com duas meninas que trabalham no museu, percebi que elas criam fortíssimos laços afectivos com as exposições. As suas recordações privadas ou profissionais estão contaminadas pela fruição da arte. Elas dizem “no tempo de Andy Warhol” e “na altura de Nan Golding” como uma forma de dividir o tempo.